Reportagens






 
Reforma agrária de mercado e movimentos sociais:
aspectos da experiência brasileira

Leonilde Servolo de Medeiros

Um dos pontos centrais do debate em torno da reforma agrária no Brasil tem sido a questão das terras a serem utilizadas, mecanismos para obtê-las e a extensão política e juridicamente possível de uma intervenção fundiária. No entanto, como procuramos indicar a seguir, a densidade política do tema impede sua redução a esses termos, impondo-lhe constantes resignificações.

Nos anos 80, com a abertura política, o tema das transformações fundiárias voltou à ordem do dia, em razão da intensidade das mudanças no meio rural, do acirramento dos conflitos no campo e do aparecimento de novas organizações e identidades ligadas à demanda por terra (seringueiros, atingidos por barrragens e, principalmente, os sem terra). Na década de 90, num contexto de descentralização político-administrativa e crescente privatização de funções antes exercidas pelo Estado, reforçou-se uma tendência embrionária mas já visível desde o debate sobre a Proposta de Plano Nacional de Reforma Agrária, em meados da década de 80: a defesa de uma mudança fundiária por meio da adesão voluntária das partes a um contrato, de um programa gerido pelas regras do mercado, em que o Estado estabelecesse alguma forma de regulação, mas abrisse mão de sua força interventora, configurada nas desapropriações, percebidas como instrumento de punição.

É nesse quadro que se iniciam no Brasil experimentos que já vinham sendo estimulados em outros países pelo Banco Mundial (entre eles, Filipinas, Colômbia, África do Sul), visando facilitar o acesso à terra através do mercado. Esses ensaios tinham raízes em críticas que os técnicos dessa instituição financeira vinham formulando aos processos de reforma agrária nos quais o Estado desempenhava um papel central. Eles eram tidos como coercitivos, centralizados e confiscatórios, na medida em que as terras eram muitas vezes pagas abaixo dos preços de mercado e parte em dinheiro, parte em títulos públicos, dificultando o pleno funcionamento do mercado fundiário. Como alternativa, propugnavam que a transferência de terras fosse feita com a concordância dos proprietários, o que a tornaria mais rápida, eficaz e menos sujeita à corrupção.

Seguindo as orientações do Banco Mundial, o primeiro passo nessa direção foi um projeto piloto no Ceará, com base em um Fundo Rotativo de Terras, criado em 1996, com apoio do governo estadual. No ano seguinte, o governo federal implantou um programa de mais fôlego, mas ainda experimental, a ser desenvolvido nos estados do Maranhão, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e no próprio Ceará, denominado Cédula da Terra, por meio de um vultoso empréstimo feito pelo Banco Mundial, destinado a obter terras, permitir aos beneficiários o acesso a financiamentos para a implantação do projeto e contratação de assistência técnica adicional à oferecida pelo governo. O ponto de partida era a constituição de uma associação de pequenos produtores ou de sem-terras, mas com tradição de trabalho na agricultura. Essa associação deveria procurar um agente financeiro ou o órgão fundiário do estado com uma proposta para assentamento. Analisado o pedido, ser-lhe-iam fornecidos recursos para compra de terras, cujo valor seria negociado com os proprietários. Os órgãos governamentais avaliariam a adequação da qualidade da terra, a compatibilidade do preço proposto com os praticados no mercado da região e a solidez jurídica da cadeia dominial. Feito isso, seria dada uma carta de crédito à associação que, por intermédio de um agente financeiro estatal, adquiriria, em condições de mercado, a propriedade.

O financiamento seria reembolsável, tendo a associação inicialmente prazo de até dez anos para amortizar a dívida, com uma carência de até três (posteriormente, esse prazo foi estendido para 20 anos). Além desse empréstimo, o programa previa recursos, a fundo perdido, para investimentos comunitários em infra-estrutura (principalmente melhoramento do que já existisse), produção (visando priorizar o aumento da capacidade de produção do imóvel, a elevação da produtividade, nível de emprego e renda dos envolvidos) e melhoria das condições de vida.

O suposto desse desenho era o da racionalidade estratégica e fundada em valores de mercado dos trabalhadores. Como a própria avaliação feita por encomenda do Banco Mundial demonstrou, não era necessariamente essa racionalidade, própria ao homo economicus, que prevalecia na transação, mas sim, muitas vezes, uma relação afetiva com a terra, o desejo de não sair do lugar onde sempre se morou etc, indicando a necessidade de introduzir outros elementos na análise, de forma a incorporar tanto elementos culturais quanto políticos que perpassam a relação com a terra. Somente essa abordagem permite entender as razões que levaram as associações a comprar determinadas terras, sem muita preocupação com preço, localização ou qualidade.

Antes que a avaliação do projeto piloto fosse finalizada, foi criado o Banco da Terra, programa que estendia os princípios que presidiram a criação do PCT a outros estados do país. Cercado por uma forte propaganda na imprensa escrita e televisiva ("uma reforma agrária feita sem burocracia, sem conflitos, sem necessidade de recorrer à Justiça"), a iniciativa foi duramente criticada pelo MST, Contag, CPT e diversas organizações não governamentais.

Se há grupos prontos a aderir ao chamado às ocupações feitas pelos entidades organizativas, em especial pelo MST, há também trabalhadores disponíveis politicamente e sensíveis à possibilidade de acesso à terra sem risco e conflitos. Assim, apesar das restrições colocadas no governo Fernando Henrique Cardoso às ocupações de terra, elas continuaram mostrando vitalidade, agregando não só trabalhadores do campo, como também aqueles que vivem nas periferias das cidades e não mais encontram ali condições de trabalho. No entanto, sindicalistas e militantes do MST perceberam que, ao mesmo tempo em que se faziam críticas ao Banco da Terra, formavam-se filas nas portas dos sindicatos e prefeituras quando ele era anunciado. Com isso, possibilitava-se o rearranjo das alianças políticas em função de uma dinâmica que passou a ser dada pelas iniciativas governamentais, configuradoras de uma nova institucionalidade para a reforma agrária.

Num quadro de acirramento das disputas, o Fórum pela Reforma Agrária e Justiça no Campo, que agregava tanto entidades de representação dos trabalhadores (Contag e MST), a CPT bem como uma série de outras entidades que historicamente de posicionaram no campo político favoravelmente à reforma agrária (Abra, Fase, Inesc etc), passou a promover articulações nacionais e internacionais para reação à proposta, dando maior projeção à resistência ao programa.

As principais críticas do Fórum, fundadas na avaliação preliminar do projeto piloto Cédula da Terra, giravam em torno dos seguintes pontos: o poder público estava abrindo mão da condução da reforma agrária, deixando-a sob o controle dos proprietários de terra; estes estavam sendo premiados, na medida em que recebiam o valor da terra em dinheiro e à vista, transformando terras improdutivas em ativos financeiros; o funcionamento do programa tenderia a acarretar um aumento dos preços da terra; os trabalhadores envolvidos teriam que pagar não só o financiamento, como buscar recursos para a produção, inviabilizando sua reprodução; muitos deles estavam desinformados sobre as regras do programa e os compromissos que estavam assumindo; havia risco de uso do projeto pelas oligarquias locais para formação de currais eleitorais etc.

Visando ampliar a discussão, o Fórum promoveu a realização de audiências públicas no Senado Federal, pediu um Painel de Inspeção ao Banco Mundial, promoveu manifestações, mobilizou entidades internacionais. Do ponto de vista dos resultados dessas ações, dois aspectos devem ser destacados. No plano nacional, em acordo entre governo, Contag e Banco Mundial, foi aprovado um programa de crédito fundiário, que além de ter melhores condições de pagamento, também explicitava que terras passíveis de desapropriação estariam excluídas do programa. Mais recentemente, com a mudança de governo, o próprio Banco da Terra teve seu funcionamento paralisado, mantendo-se apenas, em estudo, o crédito fundiário. No plano internacional, o Fórum passou a ter um papel ativo nas críticas à reforma de mercado e no revigoramento de uma campanha internacional pela reforma agrária.

Os desdobramentos políticos do Banco da Terra são bastante sugestivos para a reflexão sobre o significado das redes que se constituem entre os movimentos sociais, as organizações de representação de trabalhadores, as organizações não governamentais, na sua relação com o Estado e as agências multilateriais, tanto em nível nacional quanto internacional. Essas redes estão adquirindo papel central na discussão de determinadas questões, tirando-as do espaço local e projetando-as para outras esferas que permitem a constituição não só de novas alianças e a visibilidade de determinadas ações, como também de ressemantização de problemáticas. Elas são, antes de mais nada, geradoras de oportunidades para a expansão e fortalecimento dos movimentos sociais e das suas demandas, para além do contexto específico em que surgem. Em função delas, questões tidas como nacionais e locais, como é o caso da reforma agrária, adquiriram outra dimensão.

Se organismos multilaterais vêm retomando a reforma agrária como um componente central de seus "projetos de alívio à pobreza", independentemente da forma que esses projetos assumam, não por acaso é o termo "reforma agrária", carregado de historicidade e marcado por intensas disputas políticas, que vem sendo invocado para nomeá-los. Dessa forma, realimenta-se o debate, projetam-se atores, atualizam-se significados. A trajetória do MST é emblemática como exemplo dos efeitos da globalização sobre as redes de relações entre organizações da sociedade civil. De movimento localizado, em pouco tempo se nacionalizou e, através de suas bandeiras e formas de ação, revigorou o debate sobre a reforma agrária no plano nacional e contribuiu para que isso se desse também no internacional. Cruzando fronteiras, tornou-se reconhecido e legitimado por diversas entidades, provocando a formação de teias de solidariedade e cooperação em vários países, o que lhe permite se fortalecer no campo das disputas políticas internas.

São esses elementos que permitem pensar como a demanda por reforma agrária se tornou o lema de uma campanha global que, mesmo que tenha alcance limitado, reintroduziu o tema no imaginário político, alimentando lutas diversas que passam a se abrigar sob essa bandeira, procurando superar barreiras linguísticas e de costumes, sem no entanto, ignorá-las. Combatendo o que é tematizado como "reforma agrária de mercado", negando a mercantilização da terra, agrupam-se formulações que reúnem desde argumentos ambientais até o direito à alimentação (o que significa não só acesso à terra, mas também preservação das sementes, da água e dos demais recursos naturais), adquirindo novos espaços de legitimação e possibilidades de novas alianças e oposições.

O presente artigo sumaria algumas conclusões do livro Movimentos sociais, disputas políticas e reforma agrária de mercado no Brasil, Rio de Janeiro, Unrisd e Editora da UFRRJ, 2002.

Leonilde Servolo de Medeiros é professora e pesquisadora do Curso de Pós-graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

 
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Atualizado em 10/06/2003
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