Reportagens






 
O contra fluxo da pesquisa com células-tronco

Apesar de muitos cientistas desconsiderarem movimentos contrários a utilização de embriões humanos em pesquisas, a influência desses grupos, religiosos ou não, não é pequena. Sua atuação e opinião contrárias influenciam muitos países católicos, e fazem grande diferença para a formulação de legislações e decisões políticas. Segundo a advogada do Movimento em Prol da Vida (Movitae), Telma Queiroz, que defende a liberdade de pesquisa no Brasil; a força do Vaticano no parlamento italiano é tão grande, que há um certo pessimismo para regulamentar em prol da utilização de embriões humanos em pesquisas. "Eles [os pesquisadores italianos] não conseguem enxergar possibilidades de regulamentação, tamanha é a força do Vaticano no parlamento. Os cientistas estão deixando a Itália e lamentando ser esta uma decisão clerical e política", diz a advogada.

O argumento contra a utilização de embriões humanos em pesquisa científica, que parte dos católicos, é de que os embriões devem ser considerados como seres humanos, pois a vida começaria no momento da concepção. A opinião, que não é exclusiva de religiosos, encontra repercussão em partidos democrata-cristãos que, na Alemanha, por exemplo, junto com o partido verde formou forte oposição à utilização de verbas públicas da União Européia para a pesquisa com células-tronco embrionárias.

Algumas ONGs também defendem a oposição à pesquisa com embriões baseando-se nesse argumento. Soma-se à ele a afirmação de que é possível realizar pesquisas com células-tronco que não utilizem embriões humanos. Um exemplo desse posicionamento é a HazteOir, uma ONG espanhola, de orientação católica, que procura promover a participação dos cidadãos na vida política acerca de variados temas, dentre eles, o da pesquisa com embriões. Além de estar presente na esfera política, a opinião também encontra respaldo entre cientistas. Um exemplo, também espanhol, é o grupo Hay Alternativas formado por pesquisadores, cientistas, profissionais da saúde, especialistas em bioética e juristas, que condenam "a promoção de uma campanha em prol da utilização de células embrionárias humanas, como estando ligadas a interesses de setores da indústria biotecnológica".

No Brasil, um grupo representante desse posicionamento é o Núcleo Fé e Cultura, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, que publicou recentemente o "Manifesto contra a utilização de embriões humanos em pesquisa", assinado por dois de seus membros, Alice Teixeira Ferreira, também coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Biotética da Unifesp e Dalton Luiz de Paula Ramos, da Universidade de São Paulo e membro correspondente da Pontifícia Academia Pro Vita.

Alice Ferreira explica que o manifesto foi redigido para apresentar a posição institucional do Núcleo, e também para responder a um abaixo-assinado distribuído pelas biólogas Mayana Zatz e Lygia Pereira, na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, procurando angariar assinaturas a favor da liberação de experimentos com embriões humanos e da clonagem terapêutica. Segundo Ferreira, o manifesto expressa sua posição contra a clonagem terapêutica e a utilização de embriões humanos em pesquisas - mesmo aqueles que sobram (extra numerários) nas clínicas de reprodução assistida. "Nós achamos que a reprodução assistida em si já é uma complicação. Tanto é que o Sistema Único de Saúde(SUS) não financia a reprodução assistida, e não há dinheiro público no Brasil que financie isso. Os embriões são descartados nessas clínicas porque no Brasil é proibido por lei congelar embrião humano", diz Teixeira.

No manifesto, propõe-se a promoção da proteção desses embriões humanos dos processos de fecundação assistida. "O erro cometido por ocasião da produção e do armazenamento dos embriões não justifica, agora, um outro erro: a utilização desses embriões em pesquisas, reduzindo-os ao status de coisas ou objetos", afirma-se no manifesto.

Mas não são apenas a idéia de sacralidade da vida ou o estatuto do embrião (se deve ou não ser considerado humano) que permeiam as posições contrárias à pesquisa com embriões humanos. De acordo com Alice Teixeira, existem ainda várias questões legais envolvidas, pois a liberação da clonagem terapêutica poderia abrir caminho na legislação para que seja exigida, por exemplo, uma clonagem humana para resolver um problema de saúde de determinada pessoa. "A questão legal é uma outra razão pela qual fizemos o manifesto, para opor-se a uma tentativa de imposição de uma legislação sobre algo que não deve haver lei. Existem coisas que dependem da consciência de cada indivíduo", afirma Teixeira.

A equipe do Núcleo Fé e Cultura afirma ainda que não existem resultados que comprovem maior eficiência ou melhores resultados de células-tronco embrionárias, em comparação com células-tronco extraídas da medula óssea, por exemplo. "O coordenador do nosso grupo de pesquisa no Instituto de Bioengenharia, Ricardo Ribeiro dos Santos, acaba de ganhar o prêmio Zerbini trabalhando com células-tronco não embrionárias para tratar pessoas portadoras de doença de Chagas", argumenta Teixeira

Biopatentes, eugenia e lucros
Para Fátima Oliveira, médica e diretora da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos, o posicionamento religioso, acerca da sacralidade da vida, deve ser respeitado, mas não é representativo de consensos, já que existem vários manifestos críticos apresentados em congressos e encontros de bioética, baseados em outros fundamentos. Na opinião de Oliveira a polêmica em torno das células-tronco relaciona-se também com um certo aspecto mercadológico, o da industrialização da vida, e com a manipulação biológica como passo inicial para essa faceta da bioindústria. "A clonagem terapêutica é também de produtos de células embrionárias na medicina de aprimoramento, uma medicina cuja base doutrinária, a eugenia, é racista. A pesquisa básica e aplicada, assim como as biopatentes e a mercantilização de embriões humanos são negócios rentáveis e com perspectivas de muitos lucros. Tenta-se acalmar os ânimos, falando-se, retoricamente, em clonagem reprodutiva e terapêutica, cujas fronteiras são uma abstração", diz ela.

Além desses questionamentos, a precaução com relação à clonagem reprodutiva e terapêutica, por parte das feministas, deve-se à possibilidade das pesquisas afetarem a saúde das mulheres, sua autonomia sobre o próprio corpo e seus direitos reprodutivos. Sob esse aspecto, Oliveira vê proximidade entre as posições do governo norte-americano e da igreja católica. "Vaticano e Bush são a mesma coisa quando se referem à clonagem e ao direito de decidir das mulheres - ambos aspiram legislar sobre o território dos nossos corpos em todo o mundo", critica Oliveira.

Apesar desse posicionamento de precaução, as feministas concordam com a pesquisa de células-tronco provenientes de adultos, do cordão umbilical e até de embriões, desde que não sejam criados exclusivamente para pesquisa, como exemplifica Oliveira ao citar o Manifesto do Coletivo do Livro de Saúde das Mulheres de Boston sobre a Clonagem Humana, de junho de 2001.

Por outro lado, também aproximam a questão da clonagem com a das novas tecnologias reprodutivas. "A Plataforma Política Feminista (Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras), de junho de 2002, afirma em seu capítulo V sobre a liberdade sexual e reprodutiva, sua posição contrária à clonagem reprodutiva. Tal parágrafo é precedido por um outro criticando as Novas Tecnologias Reprodutivas Conceptivas. Participei da elaboração da plataforma e defendi essa resolução. Embora não seja uma apoiadora convicta da clonagem terapêutica, entendo que ambas são faces da mesma moeda e colocam para a humanidade inúmeros desafios, mas sobretudo as perguntas - precisamos disso tudo? E porquê?", argumenta Oliveira.

Apesar de seus questionamentos, Oliveira afirma que a tendência brasileira é de liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias em nome da corrida da ciência. "Há uma pressão enorme de parte expressiva da comunidade científica para isso. Além da pressão sobre o governo por parte dos cientistas, existem os grupos organizados em torno de determinadas doenças, que podem se beneficiar de possíveis sucessos das pesquisas", diz a médica.

A diferença de opinião entre Teixeira e Oliveira espelha também diferentes concepções da bioética no debate sobre células-tronco. Para Teixeira, a bioética é um neologismo que apareceu em 1971, e o objetivo dela consiste em estudar a moralidade da conduta humana no campo das ciências da vida. "Nós temos que nos preocupar com moral e ética, e não com política. A ética é um comportamento que procura respeitar a pessoa humana, e nesse ponto de vista não cabe a visão política. A religião sim, pode ajudar a bioética, mas não a política. Parto do princípio de Kant, o ser humano não deve ser usado como meio para atingir outro objetivo que não seja sua própria humanidade. Então excluímos qualquer instrumentalização do ser humano para um objetivo que não seja sua própria existência", diz Teixeira.

Já a médica Fátima de Oliveira entende a bioética como movimento social que procura caminhos para a participação qualificada nos debates e nas decisões relativas à biotecnologia. Para ela, a bioética não tem como finalidade solucionar impasses, mas sim levantar questionamentos. "A bioética não é apolítica. Assim como a ética também não é. Ambas sofrem historicamente interferência de classe ou de gênero", diz Oliveira. Segundo a médica, a bioética deve ser entendida como um consenso possível, temporário e mutável entre diferentes moralidades. "Consenso não é unanimidade, nem visão única. No processo de estabelecimento de consensos, mas em especial de um consenso ético, as relações de poder político vêm à tona. As diferentes facções ideológicas presentes na bioética movimento social e na bioética disciplina, fazem política. E mais, buscam hegemonizar a bioética", argumenta ela.

Cada vez mais os embates trazidos pelas novas tecnologias colocam em evidência os limites e a liberdade do fazer ciência, e trazem à tona uma série de rupturas de conceitos e interesses de distintos grupos da sociedade. Estão em jogo interesses políticos, religiosos, científicos e econômicos. A articulação dessa série de interesses, sinaliza mais claramente para o fato de que a ciência não é neutra, nem objetiva, e que as decisões em torno de suas aplicações e rumos certamente não poderão ser puramente científicas.

(MK)

 
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Atualizado em 10/02/2004
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