Editorial:

As cidades e os muros
Carlos Vogt

Reportagens:
Prós e contras da revitalização urbana
Enfim o Estatuto da Cidade
Programa Habitat procura desenvolver a qualidade de vida nas cidades
Ocupações revelam déficit habitacional
Fórum Social propõe uma outra cidade possível
Novas metrópoles, velhos problemas
Conflitos entre centro e periferia
Qualidade das águas é cada vez pior
Lixo é problema ambiental com agravantes sociais
Transporte em São Paulo: conflitos e soluções
Poluição sonora piora ambiente urbano
Preservação ambiental: destino alternativo para o litoral sul de São Paulo?
Cidade tenta unir tecnologia com inclusão social
Educação para uma nova cidade
Brasília contrastes de uma cidade planejada
Vilas significaram distância entre patrões e operários
Artigos:
Dimensões da tragédia urbana
Ermínia Maricato

Aprovação do Estatuto da Cidade
Geraldo Moura

O passado nas cidades do futuro
Cristina Meneguello
"As cidades nos países subdesenvolvidos" em um mundo globalizado
Tatiana Schor
Cidades e seus fragmentos
Rogério Lima
Cidade, língua, escolae a violência dos sentidos
Cláudia Pfeiffer
A cidade como objeto de estudo
Maria Josefina Gabriel Sant'Anna
Poema:
Manual do novo peregrino
Carlos Vogt
 
Bibliografia
Créditos

 

 

Prós e contras da revitalização de centros urbanos

Os projetos de recuperação e preservação de centros históricos, associados a processos de reestruturação urbana, têm sido uma constante no Brasil, principalmente a partir do final da década de 80 e início de 90. Pelourinho em Salvador, Bairro do Recife na capital pernambucana e o corredor cultural no Rio de Janeiro são alguns exemplos nacionais de locais que vêm sofrendo este tipo de intervenção. Barcelona, Nova Iorque, Boston, Manchester, Paris e Buenos Aires estão entre os exemplos internacionais que marcam o fenômeno mundial de revitalização ou remodelação urbana.

Apesar de ocorridos em diferentes localidades e de possuírem peculiaridades, os projetos são semelhantes no fato de terem obtido investimentos vultosos em locais com grande potencial turístico, que abrigam interesses históricos e que, em períodos anteriores, tiveram um apogeu relacionado a uma atividade econômica específica.

Certamente existem as mais variadas combinações entre o que deve ou não ser realizado na remodelação urbana, mas o fenômeno, no Brasil, é marcado por duas posições que mais se destacam no debate sobre o tema. Em linhas gerais, de um lado, defende-se a necessidade de reestruturação de centros urbanos dada a caracterização desses locais nos últimos anos pela violência, marginalidade, decadência das construções etc. Esse grupo afirma que investimentos do setor público e privado podem reverter esse quadro, tornando os locais mais atrativos, inclusive para novos investimentos, o que impediria que se iniciasse um novo empobrecimento após a recuperação. A principal aposta é na preservação do patrimônio histórico e nos investimentos culturais.

De outro lado, acusa-se as iniciativas de revitalização dos centros urbanos de reproduzir um processo de "gentrificação", isto é, o enobrecimento de locais anteriormente populares. O resultado desse processo seria a produção de uma cidade desigual, com a expulsão da população de baixa renda das regiões revitalizadas em prol de interesses econômicos das elites, que se beneficiariam. Nessa visão, a cultura torna-se apenas um captador de investimentos, uma mercadoria em torno da qual formula-se (importa-se) um consenso sobre o que deve ser a cidade, financiado pelo capital privado e internacional.

O professor Silvio Mendes Zanchetti, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e a professora Norma Lacerda, diretora geral de urbanismo da prefeitura de Recife, avaliam a revitalização de áreas históricas como uma estratégia de desenvolvimento local. Segundo eles, em função do declínio da economia e da crise fiscal e financeira que caracterizou a economia no início da década de 80, o governo central desobrigou-se das políticas públicas, transferindo responsabilidades para outras instâncias, como os municípios. Nesse contexto, deixou-se de manter o modelo de investimentos em infraestrutura urbana e as prefeituras foram obrigadas a gerar recursos e elaborar novas estratégias de desenvolvimento.

Para Zanchetti e Lacerda da UFPE, num mundo globalizado o que decide o jogo da competição por investimentos produtivos são as especificidades das localidades, sustentadas pelos atributos ambientais, culturais e históricos das cidades. "As antigas áreas urbanas assumem um papel importante na construção de políticas locais de desenvolvimento. São políticas de desenvolvimento voltadas, em geral, para a revitalização de áreas urbanas deprimidas, subutilizadas ou abandonadas, que perderam vitalidade econômica", dizem.

Mas as questões sobre a revitalização urbana não encontram apenas esse tipo de avaliação. A professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, Ermínia Maricato (veja artigo nesta edição), abordou outro ponto de vista durante a abertura da conferência "Cidades, populações urbanas" no segundo Fórum Social Mundial. A professora da FAU - USP apontou a disseminação de modelos internacionais de urbanismo, que atropelam condições ambientais e culturais específicas de cada sociedade, especialmente nos países periféricos"

A crise econômica e financeira da década de 80 e a consequente transferência de responsabilidades do governo central para outras instâncias, apontadas por Zanchetti e Lacerda, são pensados a partir do desmonte do Estado provedor relacionado ao processo de globalização. As conseqüências disso são a perda de direitos sociais econômicos, a privatização de serviços públicos e o fortalecimento da ditadura do mercado, entre outras. Em "Cidade do Pensamento Único", os professores Ermínia Maricato, Carlos Vainer e Otília Arantes chamam atenção para esse processo. Arantes destaca ainda a mercantilização e a centralidade da cultura, num processo comandado pelo capital, que caracteriza os modelos europeu e americano de cidade-empresa-cultural importados pelo Brasil. Ainda segundo Ermínia Maricato, as cidades de países periféricos e semi-periféricos acabam, constituindo ilhas em determinados locais que mimetizam o Primeiro Mundo, onde residem os detentores do capital, cercados de "cidades ocultas" ignoradas pelo Estado.

Para Carlos Vainer, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os debates sobre revitalização de áreas urbanas, centros urbanos ou áreas históricas das cidades incorrem num grande equívoco. "A discussão está fundada na idéia de que estas áreas não possuem vitalidade. Na verdade, essas áreas têm uma extraordinária vitalidade, mas foram, em muitos casos, ocupadas por grupos sociais de baixa renda. O que está sendo feito é renegar um tipo de vitalidade e recuperar essas áreas para determinados grupos sociais", afirma ele.

Vainer defende que o problema dessas áreas não é a de falta de vitalidade mas a falta de investimento público, justamente porque são locais ocupados pelas camadas menos favorecidas. Ele contradiz a afirmação de que as classes de baixa renda não valorizam áreas históricas ou as áreas urbanas em que vivem. "A sobrevivência da riqueza patrimonial dessas regiões se deu graças aos grupos de baixa renda e não a outros. É como expulsar os índios da floresta para preservá-las, sendo que, graças a eles, ela ainda está preservada. Mesmo assim, retiram os índios e fazem reservas indígenas", diz ele.

Outra acusação de Vainer é em relação às parcerias entre os setores público e privada, nas quais ocorre transferência de investimentos do primeiro para o segundo. "Se não fosse o investimento público, o investimento privado seria praticamente inviável. O público entra com o dinheiro e o privado com os benefícios decorrentes da valorização imobiliária e de projetos de natureza econômica", diz. Ele classifica como escandaloso o projeto Estação das Docas para revitalização da zona portuária da cidade de Belém, promovido pelo governo do estado. Segundo ele, o projeto construiu um shopping e restaurantes luxuosos, financiados com vinte milhões de reais do dinheiro público. "Um projeto que só se sustenta com dinheiro público e que é destinado à parcela mais rica da cidade de Belém", conclui.

A revitalização do Bairro do Recife

A revitalização do Bairro de Recife, apesar de suas peculiaridades, pode ser um exemplo do fenômeno de reestrutração urbana no Brasil e do embate que o cerca.

O Bairro do Recife (ou Recife Antigo), situado no centro da capital pernambucana, margeado pelo mar e pelo rio Capibaribe, segundo avaliação dos professores Norma Lacerda e Sílvio Zanchetti, era considerado pela opinião pública, em 1986, uma das principais áreas-problema da cidade. As ruas e espaços públicos eram ocupados pelos ambulantes e, somada à degradação física das edificações e dos espaços públicos, deu à região o estigma de local perigoso e marginal.

No entanto, essa mesma localidade foi o centro econômico da cidade do Recife do século XVII ao início do XX. Segundo Zanchetti e Lacerda, a partir de 1930, a região sofreu um processo de esvaziamento, devido ao deslocamento do centro econômico para o bairro de Santo Antônio, passando a abrigar cabarés, boates e prostíbulos. A expansão comercial e residencial para outras áreas, somadas a políticas públicas mal sucedidas e à crise da década de 80 culminaram, segundo eles, no deslocamento da população de baixa renda para o centro e a consequente proliferação de vendedores ambulantes e marginais. "Criou-se um círculo vicioso entre desvalorização imobiliária e a expansão das atividades de armazenagem. O Bairro tornou-se uma periferia central", dizem os pesquisadores.

Várias foram as propostas de revitalização da área, mas o Plano de Revitalização do Bairro Recife (PRBR), na avaliação de Lacerda e Zanchetti, elevou a atratividade do bairro para o investimento privado e constituiu um exemplo de requalificação do patrimônio construído, demonstrando que as áreas históricas da cidade têm grande potencial de desenvolvimento, que deve ser ativado pelo poder público em parceria com atores econômicos locais.

A implantação do plano começou, em 1993, com o governo municipal em parceria com vários agentes privados - como a Fundação Roberto Marinho e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Em 1996, segundo os pesquisadores, o quadro de degradação da área estava completamente revertido.

No entanto, essa não é a opinião de Rogério Proença Leite, pesquisador-associado do Centro de Estudos de Migrações Internacionais (Cemi) da Unicamp. "Parece-me válida qualquer intervenção que melhore as possibilidades de usos dos espaços públicos da cidade. Mas o que ocorreu no Bairro do Recife, caracterizou um processo de "gentrificação", acarretando forte exclusão social, na medida que espacializou as atividades de lazer do bairro, numa espécie de zoneamento da diferença", diz o pesquisador.

Rogério Proença Leite aborda essa questão em sua tese de doutorado Espaço público e Política dos lugares, afirmando que é preciso questionar a quem se destinam as intervenções urbanas. "As cidades históricas têm em sua maioria forte apelo comunitário pelo que representam para a identidade cultural das pessoas. As intervenções deveriam contabilizar a necessidade de manter a dimensão pública dos espaços urbanos e promover ações que possam tornar mais democráticos os usos da cidade", afirma ele.

A reforma certamente transformou a paisagem urbana de Recife, mas o pesquisador associa a mudança ao que ocorreu segundo ele, em Nova Iorque. "Na revitalização de Recife, antigas prostitutas foram removidas de suas casas e no local foram estabelecidos sofisticados bares e restaurantes - numa operação que relembra a experiência de limpeza social do Times Square. Hoje, o bairro transformou-se em um agitado ponto de encontro, com ampla visibilidade pública da cidade", aponta Rogério.

As muitas vozes do centro

Esse tipo de reforma urbana, que acaba excluindo a população pobre moradora de áreas a serem revitalizadas, vêm encontrando a resistência organizada da sociedade civil

O Fórum Centro Vivo, fundado em dezembro de 2000, congrega movimentos populares urbanos, pastorais, universidades e entidades de defesa dos direitos humanos, educação e cultura em São Paulo. Surgiu em maio de 2000, durante o encontro "Movimentos populares e Universidade", organizado por estudantes da USP, pela Central dos Movimentos Populares (CMP) e pela União dos Movimentos de Moradia (UMM).

Segundo Mariana Fix, arquiteta, pesquisadora da FAU-USP e participante do Fórum, o objetivo é articular as pessoas e grupos que lutam pelo direito de permanecer no centro da cidade de São Paulo, contrapondo-se ao processo de renovação urbana e exclusão que vem ocorrendo. Entre outras ações, destaca-se o envio de propostas de reformulação e debate do Plano Reconstruir o Centro, da prefeitura de São Paulo.

De acordo com sua carta princípios, o Fórum busca fortalecer as lutas sociais em prol do uso democrático do espaço público, garantindo a ampla acessibilidade ao centro, combatendo as formas de segregação social e defendendo a função social da propriedade, contra a especulação imobiliária. A idéia de defesa da preservação da história e da memória também está presente entre os princípios do Fórum, mas como patrimônio vivo, e portanto, contra a sua monumentalização e museificação.

Essa visão choca-se com algumas posições adotadas pela Associação Viva Centro, fundada em São Paulo, em 1991, por entidades e empresas vinculadas à região. A associação defende a reformulação do centro de São Paulo visando inseri-lo de forma competitiva no conjunto das "cidades mundiais". Para a Viva Centro, o centro de São Paulo é o local privilegiado de cultura, história e desenvolvimento urbano da metrópole e é entendido como potencial alternativa para a reorganização funcional e espacial da metrópole que, com padrões de eficiência e qualidade, pode passar a abrigar as principais corporações e organizações nacionais e supranacionais.

Júlia Andrade, geógrafa e participante do Fórum Centro Vivo, analisou as intervenções urbanas em São Paulo em "Da Cultura da Intervenção à Intervenção da cultura", afirmando que a idéia de São Paulo como uma cidade mundial advém da reinvenção de seu centro sustentada por uma coalizão inédita de parcerias público-privadas. Segundo ela, nesse processo, a cultura torna-se uma peça central no processo de valorização e ocupação da terra urbana. Júlia Andrade explica que, sob o signo de investimentos ou intervenções culturais, cria-se um consenso em torno da necessidade de se fazer essas intervenções e mobilizam-se uma série de interesses da iniciativa privada e dos governos locais para reativar o turismo de negócio ou outros negócios ligados a cultura. "O discurso do governo e do BID associa diretamente cultura e economia. Como consequência das intervenções a população local que vivia naquelas regiões antes degradadas, vai sendo direta ou indiretamente expulsa, muitas vezes sem indenização", afirma Júlia Andrade

Para Carlos Vainer, a esfera da cultura também é encarada nesse processo como uma esfera econômica. "Temos como exemplo a abertura de um Museu Guggenheim no Rio de Janeiro. O Guggenheim exporta franquias para vários lugares como uma cadeia de fast foods. Um vende comida, o outro vende exposições", afirma Vainer.

A cidade, para ele, passa a ser um espaço relevante, pois é o locus onde determinado conjunto de eventos e atividades do mercado cultural atualizam-se e alteram-se como espetáculo. "Quase sempre isso acaba operando como um mecanismo de homogeinização artística e cultural que asfixia manifestações culturais tradicionais. Instalado um mercado cultural, vige nele, como nos outros mercados, as regras da competência, do capital acumulado, em que apenas os maiores têm capacidade de competição", afirma Vainer.

(MK)

Leia também sobre o Programa de Preservação do Patrimônio Cultural Urbano - Monumenta, para saber mais sobre recuperação urbana e preservação de centros históricos.


Atualizado em 10/03/2002

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