Reportagens






Editorial:
Os Ciclos da Vida
Carlos Vogt
Reportagens:
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Artigos:
Aquecimento Global
Isaac Epstein
Mudança Climática e Energias Renováveis
André Santos Pereira
Energia e Mudanças Climáticas: barreiras e oportunidades
Gilberto Jannuzzi
As mudanças climáticas globais e seus efeitos nos ecossistemas brasileiros
Enéas Salati, Ângelo dos Santos e Carlos Nobre
A Mata Atlântica e o aquecimento global
Carlos Joly
O Aquecimento Global e a Agricultura
Hilton Pinto, Eduardo Assad, Jurandir Zullo Jr e Orivaldo Brunini
O papel do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas
Fábio Feldmann
Poema:
Paradoxo
Carlos Vogt
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Créditos
  Mudanças Climáticas
Os Ciclos da Vida

Carlos Vogt

I

É possível manter os atuais padrões de produção e de consumo e ainda assim acreditar ser possível o desenvolvimento sustentável da economia, da sociedade e das relações do homem com a natureza?

Tudo indica que não, ao menos se se levarem em conta os indicadores que vêm sendo publicados por instituições como a Organização da Nações Unidas (ONU), ou o Fundo Mundial para a Natureza (WWF - sigla em inglês para World Wildlife Fund).

O Relatório Planeta Vivo 2002, da WWF, afirma que já estamos excedendo em 20% a capacidade da Terra para responder à demanda do consumo de alimentos e, portanto, bastante além da capacidade de reposição do planeta.

Como a população na Terra deverá passar dos pouco mais de 6 bilhões de habitantes para mais de 8.5 bilhões até 2050, tem-se aí, em traços grossos, o desenho do cenário da catástrofe global que vem se anunciando, desde os fins dos anos 1960, e que deu origem à consciência, cada vez mais aguda, de que é preciso replanejar, com clareza, e praticar, com urgência, novas formas culturais de relacionamento produtivo do homem em sociedade e da sociedade com a natureza.

II

Em julho de 1972, deu-se, na Suécia, a Conferência de Estocolmo que viria a acrescentar, definitivamente, às questões prioritárias discutidas pela ONU, criada em 1945, - a paz, os direitos humanos e o desenvolvimento com igualdade - o tema da segurança ecológica. Desse modo, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, mundialmente conhecida como Conferência de Estocolmo, passou a ser o marco de referência para as discussões sobre o que, na seqüência, viria a constituir-se numa das questões mais complexas e mais cruciais da história recente da humanidade, ou seja, a questão do desenvolvimento sustentável.

Vários encontros e documentos foram produzidos no interregno de 20 anos entre a Conferência de Estocolmo e a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD/UCED), realizada no Rio de Janeiro, em junho de 1992, conhecida também por vários apelidos - Cúpula da Terra, Eco 92 -, sendo um deles - Rio 92 - o mais difundido e talvez o mais referendado.

Nessa Conferência tem origem o documento Agenda 21, aprovado e assinado por 175 Nações presentes no encontro. Ao mesmo tempo, e paralelamente, ocorreu, promovido por entidades da Sociedade Civil, o Fórum Global 92, do qual participaram cerca de 10 mil Organizações Não-Governamentais, e que, por sua vez, deu origem a outro importante documento - a Carta da Terra - para pautar, pelos olhos críticos e pelos interesses legítimos da cidadania, as ações globais dos governos e dos órgãos oficiais em prol do desenvolvimento sustentável.

Dez anos se passaram, desde a realização da Rio 92. No meio tempo, houve a Rio+5 e agora, o Brasil e as nações do globo se preparam para a Conferência Mundial do Meio Ambiente, em Joanesburgo, África do Sul, também conhecida como Rio+10, e que terá lugar no final do mês de agosto, início de setembro.

Vários outros eventos de repercussão internacional vêm ocorrendo, reforçando criticamente a necessidade de medidas que avaliem a questão dos limites do crescimento e as conseqüências dos modelos concentradores de produção e riqueza vigentes, hoje, na economia globalizada. É o caso, por exemplo, do Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, nas edições de 2001 e 2002, e que atraiu mais de 50 mil participantes.

III

Desse modo, o Brasil parece ter se preparado, tanto pelas ações governamentais, como pelas ações da sociedade civil, para desempenhar um papel importante entre as lideranças da consciência ecológica mundial que deverão, pelos documentos, pelas declarações, pelas análises críticas, pelo exemplo, enfim, constituir-se em exemplaridades éticas das políticas de meio ambiente e de desenvolvimento sustentável a serem efetivamente adotadas para garantir condições de qualidade de vida presentes, projetando-as, para a preservação da vida com qualidade das futuras gerações.

Por decisão do presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, o Brasil teve, no final de julho deste ano, promulgada sua adesão ao Protocolo de Quioto para controle da emissão de carbono a fim de procurar conter o aquecimento global da Terra e, desse modo, interferir diretamente nos mecanismos de mudanças climáticas ocasionadas pelo modelo de desenvolvimento econômico em vigência no mundo, altamente predatório ao meio ambiente e à paz social, tão decantada retoricamente, e tão pouco praticada na efetividade da distribuição da riqueza e da justiça social. Basta, desse ponto de vista, considerar que os EUA, responsáveis por 36% das emissões de carbono, não são signatários do protocolo, levando consigo, para a mesma posição de intransigência econômica, países como o Canadá e a Austrália. É verdade, em compensação, que o Japão, a Rússia e os 15 países que formam a União Européia aderiram ao Protocolo, dando medida de quanto é política, além da ética, a luta para a mudança na cultura de gestão do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável nos diferentes países do mundo e o quanto os interesses econômicos interferem na gestão dessas políticas.

O conjunto de ações e de políticas de proteção ambiental que integram a Agenda 21 resultaram de um amplo processo de diálogo e de discussão e de cerca de 6 mil propostas, do qual participaram mais de 40 mil pessoas em todos os Estados do país.

A Agenda 21, a ser apresentada na Rio+10, como o documento oficial do governo brasileiro, compreende 4 seções:

· Dimensões Sociais e Econômicas, que trata das relações entre meio ambiente e pobreza, saúde, comércio, dívida externa, consumo e população;
· Conservação e Gerenciamento dos Recursos para o Desenvolvimento, que estabelece maneiras de gerenciar os recursos naturais, visando a garantir o desenvolvimento sustentável;
· Fortalecimento dos Principais Grupos Sociais, no qual se apresentam formas de apoio a grupos sociais organizados e minoritários que trabalham, colaboram ou adotam os princípios e as práticas da sustentabilidade;
· Meios de Implementação, onde são tratados os financiamentos e os papéis das instituições governamentais e das entidades não-governamentais no desenvolvimento sustentável.
As seções estão distribuídas por 40 capítulos, 115 programas e aproximadamente 2500 ações sobre as diferentes áreas implicadas no processo, desde saúde, educação e meio ambiente até saneamento, habitação e assistência social.

Trata-se de um grande programa que vem sendo gestado desde a Rio 92 e para o qual o governo brasileiro quer se mostrar, na Conferência de Johannesburgo, não só comprometido pelos enunciados de que se compõe o documento, mas também pela iniciativa de medidas concretas já tomadas relativamente ao meio ambiente do país. É nesse contexto que se inscrevem, de um lado, o Projeto de Lei da Mata Atlântica em discussão no Congresso, e, de outro, a criação, no Amapá, do Parque Nacional de Tumucumaque, com área de 3.8 milhões de hectares, equivalente à área territorial da Bélgica e cuja identificação como a maior reserva tropical do planeta deu-se pelo Ibama em parceria com o WWF e o Banco Mundial.

IV

Como se vê, são esforços importantes no sentido da preservação ambiental e do desenvolvimento equilibrado da economia e da qualidade da vida em sociedade.

Contudo, como lembra o jornalista Washington Novaes, em artigo recente em O Estado de S. Paulo (sexta-feira, 19 de julho de 2002, p.A2) referindo-se aos relatórios do desenvolvimento humano da ONU, "apenas três pessoas juntas têm ativos equivalentes ao produto bruto anual dos 48 países mais pobres, onde vivem 600 milhões de pessoas [...], pouco mais de 200 pessoas, com ativos superiores a US$1 bilhão cada [têm] o equivalente à renda anual de 45% de toda a humanidade (mais de 2.7 bilhões de pessoas)".

Será possível, nesse quadro de extrema concentração de riqueza e de absurdas diferenças e desigualdades, almejar o equilíbrio efetivo de nossas relações sociais e a recomposição, construída, cultural, portanto, de uma harmonia utópica do homem com a natureza? Por onde passará a utopia? É o que se pergunta e, a todos nós, o jornalista, no título de seu instigante artigo.

Certamente, por vários lugares e distintas soluções, mas, como ele próprio sugere, talvez ajudasse "recorrer a pensadores que, ao longo da História, colocaram no centro a ética, a metafísica (há quem proponha 'o retorno ao sagrado'). "Talvez console lembrar", continua o articulista, "que a ciência moderna mergulha cada vez mais na imensidão do espaço e nos informa sobre a nossa insignificância".

V

Talvez ajude também, dentro desse processo de profundas mudanças em nossas atitudes culturais, entender que, muitas vezes, por diferentes caminhos de peregrinação e aventuras, o conhecimento científico e experimental acaba por encontrar-se com a sabedoria da tradição de antigas filosofias a dizer, pela teoria e pela experimentação do método, o que já fora dito pela intuição especulativa e pela expressão sensível de conceitos consubstanciados em metáforas e imagens de pura poesia.

Leia-se, nesse sentido, o que escreve o pesquisador Aldo da Cunha Rebouças, no livro Águas Doces no Brasil (Instituto de Estudos Avançados da USP, Academia Brasileira de Ciências, Escrituras, São Paulo, 1995, pg. 4 e 5):
"A idéia da Terra como um sistema vem dos primórdios das civilizações. Porém, a sua visão só se tornou possível a partir das primeiras viagens espaciais, na década de 1960. Atualmente, ninguém põe em dúvida a idéia chave da Teoria de Gaia [...], que mostra um estreito entrosamento entre as partes vivas do planeta - plantas, microorganismos e animais - e as partes não vivas - rochas, oceanos e a atmosfera.

O ciclo todo é caracterizado por um fluxo permanente de energia e de matéria, ligando o ciclo das águas, das rochas e da vida. Essa visão sistêmica reúne geologia, hidrologia, biologia, meteorologia, física, química e outras disciplinas cujos profissionais não estão acostumados a se comunicar uns com os outros.

Torna-se evidente que, se a água é elemento essencial à vida, esta é, por sua vez, um dos principais fatores que engendram as condições ambientais favoráveis à existência da água em tão grande quantidade e abundância na Terra".

Compare-se, agora, o trecho acima com a passagem do romance de W. Somerset Maugham, The Razor's Edge (O Fio da Navalha), de 1944, em que o autor-narrador dialoga com o personagem Lawrence Darrel e este lhe conta, num café, em Paris, quase no final da obra, as suas andanças por países e experiências, em busca de respostas às suas indagações existenciais e metafísicas.

O trecho em questão, que traduzo livremente, contém o relato do jovem Larry de seu convívio com um também jovem amigo hindu em constante jornada de busca de seu objetivo.

"E qual seria este?", pergunta o narrador.

E a resposta de Larry:

"Tornar-se livre da servidão de renascer. De acordo com os seguidores do Vedanta, o eu, que eles chamam atmã e nós chamamos alma, é distinto do corpo e de seus sentidos, distinto da mente e de sua inteligência; não é parte do Absoluto, pois o Absoluto, sendo infinito, não pode ter partes, a não ser o próprio Absoluto. Não foi criado; existe desde a eternidade e quando, por fim, desvelar os sete véus da ignorância retornará à infinitude de onde veio. É como uma gota de água que se ergue do mar e cai com a chuva numa poça, flui depois para um regato, encontra uma torrente, cai num rio, passando por gargantas de montanhas, largas planícies, serpenteando seu leito obstruído por rochas e árvores tombadas, até que, finalmente, alcança o mar sem fim de onde se ergueu".

A visão sistêmica de nosso planeta, de que nos fala com competência científica o professor Aldo da Cunha Rebouças, está, também, presente, a seu modo, no trecho do romance que reproduz, por metáfora, a filosofia do Vedanta. As diferenças, é claro, entre uma coisa e outra são muitas e até mesmo intransponíveis, do ponto de vista teórico e metodológico. Permanece, contudo, inegável, o fato de que em ambas as atitudes culturais há um traço comum que nasce da consciência de que não basta decompor analiticamente o todo em suas partes para chegar à plena compreensão de seu funcionamento.

É preciso, ao contrário, entendê-lo na sistematicidade das relações entre natureza e cultura para que as transformações de uma pela outra não engendre nem o monstro da soberba nem tampouco o querubim da apatia.

 
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Atualizado em 10/08/2002
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