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Físicos brasileiros ajudam a desvendar enigma cósmico


Os raios cósmicos possuem energia numa faixa que se estende de 109 a 1021 eV (elétron-volts). Eles chegam à Terra com uma freqüência que, grosso modo, diminui conforme a energia aumenta. Os de energia mais baixa, mais freqüentes, têm sido estudados com êxito nos últimos 80 anos. Por isso, o projeto Pierre Auger se dedica a investigar justamente as partículas de energia superior a 1019 eV ¾ conseqüentemente as mais raras¾. Apenas uma dessas por quilômetro quadrado, por século, atinge a atmosfera terrestre. E a única rede de detecção de partículas existente fica no Japão. Cobrindo uma área de 100 quilômetros quadrados, a rede tem capacidade para analisar no máximo uma partícula por ano. Até hoje, somente 20 partículas com energia acima de 1020 eV foram detectadas, contou o pesquisador Carlos Ourívio Escobar, do departamento de Raios Cósmicos do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ele é o coordenador das tarefas brasileiras no projeto Auger.

Participar do projeto Pierre Auger é de grande interesse para os cientistas brasileiros e, portanto, diversos centros de pesquisa do país já estão integrados aos trabalhos de instalação da infra-estrutura inicial do observatório, como a USP, o Laboratório de Física Experimental (LAFEX/CBPF), a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, a Universidade Federal da Bahia, a Universidade Federal Fluminense, a Universidade Federal da Paraíba, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a Unicamp.

"Para um projeto desse tipo, é necessário juntar os esforços de várias instituições, considerando as competências específicas em física e também as possibilidades de financiamento do projeto", explica o físico da Unicamp José Augusto Chinellato, para o qual o trabalho em rede não é uma escolha arbitrária, mas uma necessidade. "A troca contínua de informações, usando tecnologia avançada, seja para o funcionamento interno do experimento, seja para se fazer contacto entre instituições de pesquisa, também é uma necessidade."

Segundo Chinellato, o Instituto de Física da Unicamp irá colaborar no desenvolvimento e na operação do Detetor de Fluorescência, destinado a observar a luz emitida durante a propagação dos chuveiros atmosféricos, e do Detetor de Superfície, que tem a função de observar partículas que chegam ao solo em formato aproximado de um disco, denominado 'frente' do chuveiro.

Esse projeto, do qual o Brasil participa, cobrirá duas áreas desérticas, cada uma com 3 mil quilômetros quadrados. "Com isso, vamos ampliar a capacidade de detecção em sessenta vezes", comemora Escobar. Há uma relação direta da área coberta com a coleta de dados. Ampliando a área, aumentam-se as chances de conhecer melhor a radiação cósmica, que apresenta uma série de características curiosas. Primeiro, a energia das partículas chega a ser tão grande que nenhum processo astrofísico conhecido dá conta de explicar como elas podem ser geradas. "Para se ter uma idéia do que isso significa, tente imaginar como a energia fornecida a uma bola de tênis pelo saque de um tenista pode estar contida numa só partícula", propõe Escobar. Tampouco seriam os físicos capazes de inventar um acelerador de partículas tão potente.

Depois, os raios cósmicos praticamente não são desviados pelos campos magnéticos presentes em toda a galáxia. Atravessando o cosmo, partículas como os raios cósmicos de mais baixa energia acabam sendo desviadas, suas trajetórias se curvam devido aos campos magnéticos e a trajetória curva impede que se determine a posição da fonte. Mas isso não acontece com os raios cósmicos de 1019 eV ou mais, explica Escobar. A energia das partículas é tão alta que elas sofrem pouco desvio, isto é, os campos magnéticos das galáxias não são capazes de defletir suas trajetórias de forma que se perca a informação sobre a fonte de onde partiram.

Por isso, deveria ser fácil localizar as fontes desses raios, pois bastaria olhar para a direção de onde eles vêm. Mas não é o que acontece. Essa radiação deveria ser proveniente das regiões do universo onde existem maiores concentrações de matéria, como os aglomerados de galáxias e os buracos negros, mas ela vem de todas as regiões do céu "isso é parte do mistério", conta Escobar. Os físicos também querem saber se existem partículas carregadas com energia superior a 1021 eV, aparentemente um limite. "Deve haver um limite, porque do contrário estaríamos constatando um desequilíbrio energético no cosmo".

Então, como os físicos explicam o fenômeno? "Trabalhamos com duas hipóteses principais. Ou estaríamos diante de um processo astrofísico desconhecido, ou estaríamos lidando com informações que remetem aos primórdios do universo", conta Escobar. "Não tenho a menor idéia do que vamos descobrir, mas posso especular que certamente na origem desses raios cósmicos de energias extremas encontraremos fenômenos físicos surpreendentes", afirma o físico Ronald Shellard, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), do Rio de Janeiro. "Se não descobrirmos a fonte dos raios em processos astrofísicos conhecidos, teremos de buscá-la em outra parte. Pode, por exemplo, haver um halo de partículas superpesadas em torno de nossa galáxia. Essas partículas decairiam ao acaso, de acordo com suas meia-vidas", especula Escobar.

Com a maior quantidade de dados que vão obter com a construção dos observatórios nos hemisférios Sul e Norte, os físicos poderão conhecer melhor a distribuição dessas partículas. Será possível também compreender como se comporta o seu espectro. Uma estabilidade no espectro seria indicativo de que a fonte se encontra num processo primordial do Universo. A não-atenuação do espectro, por sua vez, indicaria uma fonte próxima no tempo e no espaço, levando em conta que se fala aqui numa distância de 30 a 100 milhões de anos-luz ¾ sendo que um ano-luz é a distância que a luz percorre em um ano, à velocidade de 300 mil quilômetros por segundo. Assim, nas dimensões com que lida a astrofísica, até mesmo o perto fica lone, muito longe.

Descrédito tornado prêmio
Se é difícil de explicar, o fenômeno é também difícil de conceber. Tanto é que Victor Franz Hess, o primeiro físico a detectar os raios cósmicos, em 1912, não conseguiu, a princípio, convencer seus colegas de profissão da existência desse tipo de radiação - e nem eram ainda os raios cósmicos ultra-energéticos. Hess observou que, à medida que um contador Geiger se afasta da superfície da Terra e dos isótopos radioativos que nela ocorrem naturalmente, a contagem de radiação diminui. Para investigar esse fenômeno, ele foi levando os contadores a altitudes cada vez maiores. Na Torre Eiffel, por exemplo, a contagem era inferior à da superfície. Mas o que aconteceria em altitudes superiores àquela?

Para responder a essa questão, Hess subiu em um balão de hidrogênio com dois assistentes. A partir de uma certa altura, ele verificou que a contagem de radiação voltava a aumentar e não poderia estar saindo da Terra: deveria vir de algum ponto do Cosmo. Mesmo tendo provocado a reação contrária de muitos físicos notáveis, ele voou com seus assistentes a alturas de até 5 mil metros. "Um perigo, pois havia o risco constante do balão explodir", conta Escobar. Mas a exposição ao perigo e ao ridículo diante de seus pares acabou rendendo a Hess o prêmio Nobel de Física em 1936. Desde 1912, o estudo de raios cósmicos não deixou de se desenvolver, apresentando sempre novos enigmas a serem resolvidos. O desenvolvimento dessa área exige muita criatividade para variar técnicas e inventar novos instrumentos de mensuração.

Chuveiros e observatórios pouco convencionais

Pierre Auger

No começo, a radiação cósmica era medida com contadores Geiger e câmaras de ionização. Esses instrumentos apenas registravam um sinal cada vez que eram atravessados por uma das partículas. Utilizando técnicas como essa, Pierre Auger, físico homenageado com o nome do projeto, descobriu o fenômeno batizado como chuveiro atmosférico. "Essa expressão representa uma tentativa de proporcionar uma visão pictórica da forma como a partícula primária, provavelmente um próton, interage no topo da atmosfera com os núcleos do oxigênio e do nitrogênio produzindo uma série de partículas secundárias (outros prótons, nêutrons, mésons-pi)", explica Escobar. Dessa interação resulta uma espécie de disco de partículas, ou chuveiro, que chega a cobrir um círculo de 10 quilômetros.

Colidindo com os átomos atmosféricos, o próton não libera constituintes. "Encontrei uma boa analogia para esse processo nas bonecas russas", conta Escobar. Ao quebrar uma delas com uma certa energia, obtemos outra, que tem outra dentro dela, e assim por diante. Ao espatifar uma partícula, o que obtemos são outras partículas, ditas secundárias, e não as partes constituintes da primária. Um chuveiro de uma partícula de 1020 eV produz até 100 bilhões de outras partículas. Assim, a atmosfera, que antes dessa descoberta era vista como um empecilho para o estudo da radiação cósmica, passou a ser encarada como um amplificador dos raios. São as partículas geradas no chuveiro atmosférico que atingem os detectores no chão.

Nos anos 1980, desenvolveu-se uma técnica baseada no que se conhece como fluorescência atmosférica. Esse fenômeno acontece sempre que uma partícula carregada colide com as moléculas da atmosfera. No caso do nitrogênio, o principal componente do ar, produz-se uma luz azulada. Usando fotomultiplicadores, é possível ver essa luz em noites sem lua e sem nuvens. Essa técnica será utilizada no observatório Auger para investigar a interação das partículas primárias com o ar. Outra técnica, a ser empregada nos detectores do chão, é baseada no efeito Cerenkov. Tal efeito é observado quando uma partícula altamente energizada (como as dos raios cósmicos) atravessa um meio transparente como a água e cria uma luz que se espalha na forma de um cone a partir do ponto onde moléculas de água e a partícula se chocam. Com o auxílio de tubos fotomultiplicadores, a luz gerada pode ser vista. Esse recurso será utilizado nos tanques do observatório Auger. "Como se vê, na verdade, é curioso chamar de observatório as redes que estamos construindo. Esse termo está associado à observação da radiação eletromagnética, tanto no espectro visível quanto no invisível (raios X, raios infravermelhos), por isso pode soar estranho aplicá-lo à radiação cósmica", pondera Escobar.

tanque

Mais do que observar, propriamente, os pesquisadores vão analisar os dados coletados por tanques de alta tecnologia. Os detectores de partículas integrarão diversos dispositivos tecnológicos sofisticados. "Eles terão alimentação de energia autônoma, por painéis solares, tecnologia desenvolvida pela Nasa para viagens espaciais", conta Escobar. A comunicação entre os tanques será feita por meio de antenas de telefonia celular. O instante de chegada das partículas será marcado por GPS (sigla para Global Positioning System, sistema de posicionamento global). E as informações serão transmitidas aos computadores conectados ao sistema.

Incentivo partilhado, esforço conjunto

deserto de Nihuil

A primeira rede de tanques está sendo construída no deserto de Nihuil, na província de Mendoza, Argentina. A cidade mais próxima é Malargüe, usada como base pelos pesquisadores. Outra rede será construída no hemisfério Norte, mais precisamente no Estado de Utah, nos Estados Unidos. Cada um contará com 1600 tanques que guardarão entre eles distância de 1500 quilômetros. Os governos e outras instituições de cada país participante contribuirão de alguma forma com o projeto Auger.

rede de detectores

No Brasil, o Ministério da Ciência e Tecnologia deveria liberar US$ 1,5 milhão, mas até o momento, apenas R$600 mil foram desembolsados. Além desse recurso, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) deverá contribuir com outros US$ 2 milhões de dólares. O montante total da participação brasileira será de US$ 3,5 milhões a serem desembolsados ao longo de 45 anos. Além do coordenador, Carlos Escobar, outros 27 cientistas brasileiros estão no Auger. O Brasil deverá enviar 18 tanques até setembro, 22 até dezembro, para construir um protótipo da rede em pequena escala. O custo total do projeto é estimado em 35 milhões de dólares. "Pode parecer caro, mas não é tanto se pensarmos no que se gasta, por exemplo, com bombardeiros nucleares, limpeza de lixo radioativo e guerras", pondera Escobar que acrescenta que o governo está negociando com o Banco Interamericano de Desenvolvimento outros US$ 3 milhões, junto à Argentina.

(FN) e (SN)

 
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Atualizado em 10/05/2003
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