Reportagens






 
Raios cósmicos e partículas elementares

Adriano Antonio Natale

Historicamente a física de raios cósmicos sempre esteve na intersecção entre a astrofísica e a física de partículas. Até os anos 50, as energias atingidas nos experimentos em aceleradores estavam abaixo das comumente encontradas nos raios cósmicos. O pósitron (o anti-elétron), o muon (um irmão mais gordo do elétron) e o pion foram descobertos em raios cósmicos. O pósitron comprovava a teoria de Dirac que previa a existência de anti-matéria. O muon causou furor na comunidade dos físicos de partículas, pois muitos não podiam conceber para que servia uma nova partícula elementar semelhante ao elétron, mas com uma massa aproximadamente 200 vezes maior. A descoberta do pion contou com a participação do físico brasileiro César Lattes e marca o início de uma série de descobertas de novas partículas que interagem fortemente entre si. Tempos depois ficou claro que essas partículas que interagiam fortemente não eram fundamentais, mas sim compostas por outras partículas elementares que foram denominadas de quarks.

Os raios cósmicos atingem a atmosfera terrestre com altíssimas energias, colidem com as moléculas do ar e são percebidos através dos efeitos de ionização e criação de partículas nos denominados chuveiros extensos (inúmeras partículas que atingem a superfície terrestre). O problema da astrofísica é entender como essas partículas podem ser aceleradas a energias tão altas. Quais os processos que dão origem a esses raios cósmicos?

A partir dos anos 50, a física de partículas estudada nos grandes aceleradores passou a dominar o cenário. Grandes máquinas foram construídas onde se conseguiam acelerar partículas a altas energias e realizar colisões de forma controlada. Esse processo continua até hoje e o acelerador LHC (Large Hadron Collider) que está sendo construído no Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN) irá quase que exaurir a tecnologia atual em capacidade de aceleração de partículas. As colisões entre partículas de altas energias permitem o estudo da elementaridade dessas partículas (i.e. será que as partículas "fundamentais" que conhecemos não seriam formadas por outras mais elementares?). As colisões também permitem testar modelos e descobrir (ou não) partículas previstas por esses modelos.

O fluxo de raios cósmicos cai rapidamente com a energia, ou seja, quanto maior a energia dos raios cósmicos menor a quantidade deles que atinge a nossa atmosfera. O interessante é que apesar de muito raros foram detectados eventos com raios cósmicos que ao atingirem a atmosfera terrestre deixaram um sinal de que eles foram acelerados a energias superiores a 1019 eV (eV = eletron-volt, unidade de medida de energia, igual à adquirida por um elétron quando é acelerado por uma diferença de potencial de um volt). Os nossos aceleradores conseguem acelerar partículas a energias da ordem de 1012 eV! Como a Natureza consegue criar um mecanismo tantas ordens de grandeza mais poderoso que nosso melhor acelerador de partículas? Qual o fluxo destas partículas? Este é um belíssimo problema que vamos deixar para os experimentais do Observatório Pierre Auger estudar.

O Observatório Pierre Auger é o maior experimento de raios cósmicos idealizado até os dias de hoje. Consistirá de aproximadamente 1600 detectores de partículas separados por 1,5 km, numa área de aproximadamente 3000 km2 em Mendoza, Argentina e depois um outro arranjo similar deverá ser construído em Utah, EUA. Em princípio, ele permitirá a observação em torno de 50 eventos de raios cósmicos por ano com energias da ordem 1020eV. A equipe internacional contará com um grande grupo de pesquisadores brasileiros, que não apenas contribuirá com seu trabalho mas também será responsável pela introdução de uma boa dose de tecnologia nacional no experimento.

A conexão entre física de partículas e astrofísica vai voltar novamente a tona com a detecção dos raios cósmicos de ultra altas energias pelo Observatório Pierre Auger. Acredita-se que o fluxo desses raios cósmicos deve diminuir muito nessas energias, porque eles têm uma alta probabilidade de colidirem com fotons (que constituem a chamada radiação de fundo) remanescentes da explosão ocorrida no início do Universo (Big Bang) e que permeiam o meio interestelar e intergalático. Porém os dados atuais não indicam tal decréscimo. Desta forma, os físicos de partículas fizeram uma lista de um bom número de partículas estáveis que apareceriam em alguns modelos mais complexos que o modelo usualmente utilizado (conhecido como "modelo padrão"), e que não sofreriam as tais colisões com a radiação de fundo. Essas novas partículas poderiam então viajar grandes distâncias após terem sido aceleradas (viriam de fora de nossa galáxia) sem interagir com a radiação de fundo. Em princípio, as medidas a serem feitas no Observatório Pierre Auger deveriam dar alguma informação sobre essas novas partículas que, se existirem, não foram ainda observadas nos aceleradores.

Vamos ser um pouco conservadores e considerar apenas uma partícula da lista que citamos acima, a qual temos certeza que existe: o neutrino. O neutrino é um parceiro do elétron que tem carga nula e pode ser produzido na desintegração de pions que foram muito acelerados. Pelo fato de interagirem muito pouco com a radiação de fundo eles poderiam chegar a nossa atmosfera mesmo após viajarem distâncias da ordem que separam as galáxias ou aglomerados de galáxias. O problema é entender como na colisão com as moléculas de nossa atmosfera ele produziria os chuveiros extensos que são e serão observados, já que a característica dos neutrinos é a sua baixa capacidade de interação. Para explicar isso os físicos de partículas construíram modelos nos quais a capacidade de interação do neutrino aumenta com a energia. Será que isso está correto? Só os experimentais de raios cósmicos é que poderão dizer, pois nos aceleradores atuais não temos energia suficiente para testar tais hipóteses!

Existem muitos outros problemas de física de partículas que poderão ser respondidos por experimentos como os que serão realizados no Observatório Pierre Auger. Por exemplo, pode ser que o cálculo da interação dos raios cósmicos com a radiação de fundo não esteja correto. Como? Simplesmente porque esse cálculo talvez não leve em conta novos efeitos físicos, tal como a quebra da invariança de Lorentz. Essa simetria (invariança de Lorentz) existe para as energias que conhecemos e nos ensina como devem ser feitas as contas para partículas relativísticas (que andam com velocidades próximas a velocidade da luz). Mas esses raios cósmicos estão a energias tão altas que nada garante que as leis que conhecemos sejam as mesmas para essas energias. Aliás, os físicos já estão cansados de saber que algumas das leis que são boas para uma dada escala de energia não são necessariamente boas em outras escalas. Novamente, vamos esperar pelos experimentais de raios cósmicos. Eles terão que nos dizer se isso é verdade ou não. Nesse caso em particular a medida do fluxo (número de eventos) será crucial para verificar se esta hipótese é realística ou não.

Uma outra possibilidade onde raios cósmicos de energias ultra alta poderiam ser criados seria na desintegração de novas partículas muito massivas. Nesse caso eles não precisariam ser acelerados, basta que uma partícula (X) com uma massa típica das que apareceriam em teorias que unificam todas as interações (chamadas de teorias de grande unificação) decaia numa partícula que interage fortemente. As massas dessas partículas X são da ordem de 1016GeV, se ela decair, por exemplo, num próton, a energia deste poderia facilmente atingir 1020eV. Esse tipo de mecanismo geraria raios cósmicos de ultra altas energias sem termos que nos preocupar com processos de aceleração e absorção de partículas pela radiação de fundo. Bastaria que uma partícula X, criada no início do Universo, decaísse num próton enquanto passeia pelas redondezas da Terra e esse atingisse nossa atmosfera gerando um chuveiro extenso. Teremos um fluxo bastante específico em cada um dos modelos de geração de raios cósmicos através do decaimento de partículas X. A longa e detalhada observação dos raios cósmicos deverá dar alguma informação sobre esses modelos.

Muito do que falamos acima pode parecer ficção científica, portanto vamos ser mais conservadores e vamos admitir a seguinte hipótese: os raios cósmicos de energias ultra altas são prótons, tudo está de acordo com os modelos comuns de astrofísica e física de partículas e nada de exótico existe. O Observatório Pierre Auger poderá medir a interação de prótons com os núcleos das moléculas de ar e ainda assim teremos um grande resultado! O fato é que essa interação será medida a energias nunca antes atingidas e, por incrível que pareça, nós ainda não conhecemos bem a física que rege as interações fortes. Esses dados experimentais teriam algo a nos ensinar sobre a interação forte que conhecemos a muito baixas energias.

A sabedoria popular diz que a vida ocorre em ciclos. Talvez, como no início do século passado, as observações dos raios cósmicos de ultra alta energias voltem a estabelecer as novas direções da física de partículas do futuro.

Adriano Antonio Natale é professor titular do Instituto de Física Teórica da Unesp.

 
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Atualizado em 10/05/2003
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