Reportagens






Editorial:
À luz da ciência
Carlos Vogt
Reportagens:
Campanha pretende conscientizar e melhorar tratamento
Ocorrência de epilepsia é maior no terceiro mundo
Capacitação profissional é chave para um bom diagnóstico
Tratamento na rede básica receberá investimentos
Quais os avanços no tratamento da epilepsia?
Epilepsia e a físico-química cerebral
A epilepsia no decorrer da história
Grandes personalidades conviveram com a epilepsia
Educação especial tenta afastar estigma da epilepsia
Artigos:
Campanha global contra epilepsia
Hanneke M. de Boer e L.L. Prilipko
Epidemiologia das epilepsias no Brasil
Moacir Alves Borges e Dirce Maria Trevisan Zanetta
Peculiaridades de tratamento no Distrito Federal
Wagner A. Teixeira e Ricardo A. Teixeira
Reduzindo a carga econômica da epilepsia
Ley Sander
Principais equívocos epileptológicos
Paulo Cesar Trevisol Bittencourt
Epilepsia e educação: prevenção e formação ética
Ulisses F. Araújo
Aspectos psiquiátricos em epilepsia
Renato Luiz Marchetti
Mecanismos psicológicos e o estigma da epilepsia
Elisabete de Souza, Paula Fernandes, Priscila Salgado e Fernanda Doretto
A epilepsia retratada ao longo da história
Elza Márcia Targas Yacubian
Epilepsia & gravidez
Alberto Costa e Carlos Guerreiro
O tratamento cirúrgico das epilepsias
Paulo Cesar Ragazzo
Genética das epilepsias
Iscia Lopes-Cendes
CInAPCe: projeto multi-modal para estudo do cérebro
Roberto Covolan e Fernando Cendes
Modelos experimentais em epilepsias
Claudio Queiroz, João Leite e Luiz Eugênio Mello
A Associação Brasileira de Epilepsia
Marly de Albuquerque
Tratamento medicamentoso das epilepsias
Carlos Guerreiro e Marilisa Guerreiro
Qualidade de vida para pessoas com epilepsia
Hanneke M. de Boer
Artes e Epilepsia
Norberto Garcia-Cairasco
Poema:
Identidade
Carlos Vogt
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Bibliografia
Créditos
  Epilepsia
Principais equívocos epileptológicos

Paulo Cesar Trevisol Bittencourt

Este texto é produto da observação de alguns milhares de usuários de drogas anti-epiléticas por pelo menos duas décadas no Estado de Santa Catarina, região sul do Brasil e também de algumas dezenas no vizinho Paraná e na Inglaterra. À semelhança de outras grandes nações, nosso país é um mosaico composto por áreas bem distintas entre si. É possível, por esta razão, ele não refletir o que sucede em outras regiões; embora não acredite; pois conheço, e bem, a realidade médico-social da maioria dos estados brasileiros. De acordo com a encomenda, ele será obviamente crítico, enfatizando aspectos que contribuíram ou ainda contribuem para macular práticas epileptológicas da medicina tradicional.

Entretanto, o progresso exibido nos últimos anos, apesar de heterogêneo, e por isso bem típico do nosso charmoso país, é tão rápido que me permite ser otimista e vislumbrar a erradicação desses problemas em poucas décadas de trabalho duro e honesto. E, sinceramente, admito ser este o maior entrave. Por outro lado, observo, a bem da verdade, que vários deles não são uma exclusividade do Brasil, podendo ser facilmente identificados em quaisquer outras sociedades, inclusive naquelas rotuladas como primeiro-mundistas.

Assim, ao dar vazão a minha iconoclastia crônica, admito a probabilidade de que meus comentários sejam mal interpretados e por isso despertarem ressentimentos ou original paranóia, em uns poucos colegas. Evidente que fatos vivenciados foram minha principal fonte de inspiração; todavia, gostaria de lhes reafirmar o caráter impessoal das minhas críticas. Além disso, friso que, ao longo da minha vida, a nobreza da ética, tão vilipendiada nos tempos atuais, sempre foi tributada a profissão e nunca a notórios farsantes da corporação médica.

Para fins didáticos, tópicos serão enfocados individualmente. Finalmente, longe de mim a pretensão ao monopólio da razão; assim, respostas aos comentários que seguem, e para isso lhes é oferecido um endereço ao seu final, serão sempre bem vindas e gratificariam amplamente o esforço despendido.

Finalizando, reconheço que muito mais poderia ser escrito sobre o tema; atento ao editor, restrinjo minhas críticas aos itens que pessoalmente considero como mais abomináveis e a despeito disso, passíveis de reparação imediata.

Disritmia cerebral
É incrível como este rótulo anacrônico, de natureza francamente imbecil ou "philantrópica", permanece enraizado na sociedade brasileira. No mínimo uma vez por semana recebo carta de alguma pessoa questionando-me sobre a mesma. Entretanto, como o teor destas mensagens é muitíssimo semelhante, ofereço-lhes como ilustração delas, intacta, esta carta eletrônica recebida em 21/06/02:

"Sou professora do município de Cabo Frio, e dou aula para a primeira série. Tenho um aluno que muito me preocupa pois não sei o que e como ensinar a ele. Ele tem disritmia cerebral, a mãe dele disse que ele começou a ter problemas, sintomas há quase um ano atrás. Ele tem 9 anos.

Ele toma gadernal 50 mg - 2x ao dia e hidantal 100mg - 3x ao dia.
Segundo a mãe, tem 3 meses que ele está em tratamento. E de início ele tomava hidantal 3 comprimidos inteiros por dia.

Estou muito assustada pois ele é aluno novo, e tem esses problemas. A mãe me avisou que ele pode ter alguns ataques como ficar desmaiado, enrolar a língua e ficar roxo.E pediu para que eu não deixasse ele correr no sol. Confesso que estou com medo, e tenho medo de qualquer coisa provocar esses ataques.

Além disso, ele sente muito sono (será que são os remédios? o que eu faço?) ele teve um ataque esta noite passada em casa, e hoje a mãe dele me avisou.

Ele é muito descontrolado, agitado, não tem noção de perigo,não consegue se socializar,não tem paciência, nem limites,não consegue se concentrar e ficar parado para realizar as atividades. O que eu faço? Devo ensinar a ele com alguma diferença? Ele as vezes esquece das coisas, das atividades, dos colegas, de onde ele está. Ele gosta de me perguntar sempre,
porque ele está ali (na escola) e se falta muito para ir para casa pois está com sono.

Estou pedindo ajuda, pois não sei o que é essa doença, se tem cura, como eu posso ajudá-lo, o que devo fazer,quais as perspectivas dele ser como os outros?

Aguardo com urgência a resposta".

Introduzido pelo casal de eletroencefalografistas Gibbs, como sinônimo de epilepsia nas décadas de 20-30 do século passado, com a anuência expressa de William Lennox, o pai da epileptologia norte-americana, tinha o declarado objetivo de atenuar preconceitos sociais. Porém, com o passar dos anos, Disritmia Cerebral (DC), virou um tremendo saco de gatos, e das mais variadas espécies. Médicos, muitos deles bem intencionados, alguns definitivamente não, vislumbraram na expressão uma maneira simpática e socialmente aceitável para diagnosticar epilepsia; todavia, com o tempo expandiram este diagnóstico esdrúxulo para distintas condições nosológicas, incluindo pessoas sem qualquer vestígio de anormalidade e assintomáticas. O problema foi internacionalizado e agravado sensivelmente com a difusão mundial do eletroencefalograma (EEG); particularmente da sua variante pilantra: o eletroencefalograna. Além disso, muito desgraçadamente, efeitos colaterais típicos de drogas barbitúricas, vide narração da professora, surrealmente foram incorporados ao rol de sintomas "disrítmicos" e assim contribuíram para reforçar nos familiares das vítimas a "certeza do diagnóstico".

Entretanto, foi tragicômico perceber que miseráveis sofrendo de genuínas epilepsias, continuavam recebendo o mesmo diagnóstico; mas, aqueles com a mesma condição (ou simplesmente sofrendo de coisa alguma), que faziam parte das classes média ou alta, após a realização de um inescrupuloso EEG eram charmosamente diagnosticados como "disrítmicos cerebrais". Enfatizo ser notável perceber um status social bem distinto; enquanto sofrer da tal disritmia conferia (e ainda confere) uma positiva qualificação, o diagnóstico de epilepsia continuava e continua sendo uma espécie de praga celestial. Todavia, aos disrítmicos e familiares, como uma espécie de tributo, lhes é exigido um eletroencefalograna a cada 2-3 meses, enquanto aos epiléticos miseráveis ironicamente lhes é dito: já sabemos o que você tem e exames são desnecessários.

No passado, barbitúricos eram o tratamento único para ambos, com uma ressalva: gardenal para os epiléticos da periferia e mysoline (primidona) para os disrítmicos da aristocracia. Contudo, com o passar dos anos, disritmologistas modernos descobriram em "tegretol"/"trileptal" a melhor alternativa para seus iatrogenizados pacientes. DC é um diagnóstico fraudulento que urge ser banido da sociedade brasileira. Neste desígnio, o revolucionário impacto da informação, é de longe a melhor solução e este remédio tem demonstrado sua eficácia, haja vista a redução progressiva dos apenados com este diagnóstico entre nós.

Fenitoína ou feiotoína
Pesquisadores norte-americanos, muito provavelmente, misóginos radicais, descobriram fenitoína (PHT) ao final dos anos trinta do século passado e a apresentaram ao mundo como "grande droga anti-epiléptica, indispensável no tratamento de pessoas com epilepsia". Enfim, tínhamos uma droga mágica, aparentemente com "eficácia superior ao fenobarbital (PB) e menor toxicidade". E quando se ganha uma guerra, a versão do vencedor passa a ser verdade inquestionável, geralmente assumindo caráter de dogma religioso. Apesar do estardalhaço inicial, PHT revelou ser uma droga com espectro de ação semelhante ao PB alemão e com efeitos negativos também. Alguém então sugeriu, hipoteticamente, que a combinação de PB com PHT teria efeito sinérgico e assim finalmente surgiu a "medicação ideal", alcunhada de "comital" e difundida amplamente pelo universo.

Durante décadas, PHT (associado ou não a fenobarbital) foi usada massivamente no tratamento de pessoas com epilepsia, sem que ninguém ousasse comentar seus inúmeros e freqüentes efeitos desagradáveis. PHT é considerada uma droga anti-epilética maior e não discordamos disso; porém, todos que a prescrevem generosamente, deveriam igualmente ter em conta que ela é também a maior causa de feiúra medicamentosa da atualidade. Aliás, neste aspecto, seu potencial é tão dramático que melhor seria chamá-la de "feiotoína", tal a desgraceira estética que geralmente provoca nos seus usuários. Particularmente as mulheres pagaram um pesado tributo no passado (e muitas seguem sendo desfiguradas no presente), sendo alijadas do convívio social por apresentarem a síndrome feiotoínica clássica: brutal halitose, consequência de sangramentos provocados por gengivite hiperplásica; hirsutismo sutil ou generalizado e acne difusa.

Contudo, muitos colegas ainda tem a percepção dos seus defeitos ofuscados por uma fé messiânica em sua eficácia anti-epilética; provável subproduto da colonização norte-americana. Desta maneira, sofismam sistematicamente na ânsia de enfatizarem suas virtudes e omitirem seus graves defeitos. É possível que feiúra confira status social em algumas sociedades desenvolvidas; mas, entre nós latinos, seguramente não. Por isso, preservar os indivíduos sofredores de epilepsia, em especial mulheres, dos inconvenientes comuns desta droga, deveria ser uma meta a ser perseguida por todo médico crédulo no sábio dito popular: prevenir é sempre melhor que remediar. Mais ainda, se levarmos em conta os honorários cobrados por dentistas, esteticistas, psicólogos e cirurgiões plásticos; profissionais geralmente envolvidos na tentativa de reparação.

Fenobarbital: de panacéia a vilão
Em primeiro lugar, para que não paire dúvida, gostaria de lhes reafirmar uma convicção: barbitúricos são altamente eficientes para impedir a recorrência de ataques epiléticos diversos. Sinceramente, não vislumbro dentre as atuais drogas anti-epiléticas (DAE), alguma com eficácia superior. Entretanto, a performance de uma DAE não pode ser medida exclusivamente pela sua habilidade em anular epilepsia; assim, seus potenciais efeitos negativos nunca deveriam ser perdidos de vista pelo terapêuta responsável. Com relação a fenobarbital (PB), demoramos excessivamente para reconhecer seu mais grave problema: é extremamente difícil encontrar um usuário crônico que não desenvolva barbiturismo, isto é, a combinação de sonolência (ou paradoxal hipercinesia) com transtornos cognitivo-comportamentais em grau variado. Como crianças e adolescentes são particularmente vulneráveis, é possível inferir o fantástico número delas que foram desgraçadas pelo uso abusivo de PB até recentemente entre nós. Muitos dos seus usuários, prisioneiros do próprio tratamento, foram iatrogenicamente transformados em pacientes psiquiátricos e encaminhados para "tratamento especializado" em deprimentes masmorras psiquiátricas espalhadas pelo país, de onde poucos saíram, e vivos menos ainda. Além disso, depressão grave induzida pelo seu uso prolongado, é por demais freqüente para ser ignorada e deveríamos dar um basta definitivo na tragicomédia representada pela prescrição de drogas anti-depressivas para o tratamento deste comum efeito colateral.

Para aqueles que tão cegamente defendem seu emprego indiscriminado, sugiro uma pausa para reflexão: será que os fabulosos escritores Dostoievsky e Machado de Assis, teriam a mesma produção literária tomando PB diariamente? Imaginem o desastre que seria, Cesar ou Alexandre da Macedônia liderando campanhas militares com PB todas as noites. O imperador romano então, caso conseguisse atingir Cairo, certamente desapontaria sua amada com sua performance britânica...Cleo: I am british, no sex please! Ou, formulando a mesma questão de uma forma mais abrangente: cite algum grande personagem, de qualquer área do saber, medicado por tempo prolongado com PB. Qual?

Muito provavelmente, a crença na eficácia monstruosa desta droga entre médicos, deve-se a sua ignorância da evolução natural da maioria das epilepsias: cura espontânea com o tempo. Desculpem-me, mas é oportuno recordar um milenar conceito hindu: Medicina é a arte de entreter a doença enquanto a mãe natureza faz o seu papel. Assim, é melancólico atribuir a PB, ou aos seus próprios poderes, algo que aconteceria naturalmente.

Contudo, seria leviano negar algumas das suas virtudes. Certamente, meia vida longa aliada ao seu baixo custo são charmes adicionais que esta droga possui. Além disso, há diversas situações do cotidiano onde bem estar cognitivo/comportamental/sexual pesará menos que eficaz controle ou redução das crises. Por estas razões, PB continua sendo DAE indispensável, sendo censurável a proscrição do seu uso observada atualmente; principalmente diante de tantas drogas modernas fajutas, cujos envolvidos deveriam ser admoestados por envolvimento com propaganda enganosa vulgar. Realço: ao final do milênio presenciamos PB sair de panacéia anti-epilética para a de vilão; sobrando todavia, indicações para sua utilização. Há urgente necessidade de um consenso entre qualificados epileptologistas, para a definição de quando e como usar drogas barbitúricas; pois, por muitos anos ainda, elas continuarão sendo boas alternativas farmacológicas.

Histeria
Histeria, denominada "transtorno somatoforme" em sua moderna encarnação, é um dos diagnósticos mais freqüentes na medicina contemporânea; aliás, tamanha é sua popularidade entre nós, que seria de interrogarmos a ocorrência de uma verdadeira epidemia de histéricos. Alguns, muito provavelmente por terem sido melhor educados, já se referiam a esta condição usando expressões mais elegantes como "crise psicogênica", "ataque de origem emocional", "distúrbio neuro-vegetativo". Entretanto, é vulgarmente definida por muitos profissionais da saúde com termos pejorativos, tais como "piti", "chilique", "peripaque", entre outras grosserias. Neurologistas, supostamente com educação mais refinada, adotaram a infeliz expressão de origem inglesa: pseudo-crise. Ora, tais crises são bem reais e deveriam ser objeto da mais criteriosa consideração profissional. Mais ainda se levarmos em consideração que não raramente genuínos sofredores de epilepsias distintas (por exemplo, as originárias dos lobos Frontal, Temporal e Epilepsia Mioclônica Juvenil), bem como pessoas vitimadas por polineuropatias periféricas, porfiria intermitente aguda, enxaquecas, esclerose múltipla, miastenia gravis e parkinsonismo, entre outras condições neurológicas, são rotulados como histéricos até que um profissional iluminado pense nestas possibilidades diagnósticas.

O fato é que repetidos insultos psíquicos podem disparar e perpetuar crises, sejam elas epiléticas ou não. Entretanto, o que realmente gostaria de salientar é a possibilidade de que histeria poderia ser um tipo peculiar de epilepsia, digamos subclínica. Mais intrigante ainda são as recentes evidências em favor desta hipótese. Crises desta modalidade poderiam surgir em decorrências de descargas no sistema límbico e em alguns outros circuitos cerebrais ainda incógnitos; de maneira que a fronteira entre ataques "psicogênicos" e genuínos epiléticos não são tão claras como se supõe no presente. É melancólico ver descaso dedicado aos sofredores desses originais ataques em clínicas epileptológicas.

Enquanto isso, uma espécie de "pororoca" segue acontecendo quando histéricos se defrontam na emergência. Neste embate, invariavelmente o Dr. H. sempre acaba subjugando o paciente H e devido ao ensino altamente preconceituoso da medicina tradicional, a hipótese de tratar-se de uma condição cuja causa não é orgânica, é a senha para desencadear no médico assistente e seus colaboratores um rol de desatinos hidrófobos: água destilada ou soro intramuscular, furosemida endovenosa, amoníaco nasal e overdoses de diversas drogas sedativas, exemplificam os "tratamentos" habitualmente ministrados na atualidade. É dramático constatar que as torturas físicas e psíquicas habitualmente dispensadas a estes peculiares pacientes podem ser ainda mais hediondas. Enema associado a imobilização tipo Velpeau - um método de franca inspiração mengeliana - era recomendado por alguns médicos famosos até um passado não muito longínquo.

Finalizando, diante das últimas evidências científicas, considero dispensável qualquer sentimento iconoclasta ou bola de cristal, para prever o óbvio: em breve tempo, todas as pessoas atormentadas pelo diagnóstico de histeria serão promovidas a doentes orgânicos, e por conseguinte, poupadas da estúpida abordagem médica que tem patrocinado o seu aniquilamento social.

Enxaqueca
A despeito do progresso científico logrado nos últimos anos, as enxaquecas, tal qual as epilepsias, permanecem envolvidas por uma bruma misteriosa. Certamente, há entre ambas uma conexão ainda não devidamente esclarecida. O brilhante cientista brasileiro, Dr. Aristides Leão, bem que deu uma enorme contribuição para isso, descrevendo o fenômeno da depressão alastrante, provável chave para uma definitiva compreensão. Infelizmente, preconceituosamente nós médicos, por décadas, ignoramos seu magistral trabalho experimental. Com a continuidade das investigações, será possível responder a uma questão intrigante: as enxaquecas são síndromes epiléticas especiais?

Na verdade está bem longe de constituir raridade, ver enxaqueca e epilepsia entrelaçadas em um mesmo indivíduo. Entretanto, é exageradamente freqüente, ver sofredores de genuína enxaqueca diagnosticados como portadores de típica epilepsia. O contrário também é possível; mas, presumo ser bem menos comum. Muito provavelmente tal confusão se deve as mencionadas similaridades observadas entre ambas. Todavia, médicos são habitualmente treinados para reconhecer adequadamente apenas um dos componentes das enxaquecas: a cefaléia recidivante. Entretanto, esta condição poderá ser responsável por generosa sintomatologia neurológica, raramente considerada apropriadamente. Deste modo, sintomas perfeitamente explicáveis por esta entidade sui generis são atribuídos a epilepsia (e vice versa) e a detecção de anormalidades eletrográficas, um evento comum na população enxaquecosa, reforça o equívoco diagnóstico. Considerando sua alta prevalência mundial, é possível inferir que uma cifra expressiva de seus sofredores está recebendo inadequado tratamento com drogas anti-epiléticas. Menos mal que a opção terapêutica tenha sido por valproato de sódio; uma droga cuja eficácia na prevenção de ambas, simboliza tão somente mais um elo na ligação entre as mesmas; porém, muitas vezes drogas ineficientes e potencialmente tóxicas são as recomendadas. Apesar das notórias lacunas científicas, o ensino médico deveria esforçar-se para um enfoque objetivo da fenomenologia já identificada como de natureza enxaquecosa.

Epilepsia X doença mental
Tragicamente, por séculos, pessoas vitimadas por epilepsias foram cuidadas pela psiquiatria ortodoxa, uma face truculenta e francamente psiquiátrica da nossa profissão. Sob orientação de Simãos Bacamartes das mais diversas nacionalidades, o planeta foi minado de verdadeiros campos de concentração para enfermos mentais. Mal compreendidas, as epilepsias acabaram arrastadas para o tenebroso baú da doença mental, estabelecendo-se desta maneira um desastrado monopólio do seu tratamento por parte desses profissionais. Em contra partida, eles desenvolveram uma bizarra cultura sobre epilepsia, legando profundas marcas sociais, facilmente perceptíveis em qualquer sociedade. Para reavivar sua memória vejam um dos seus principais legados científicos: ao longo do último século, uma montoeira de asneiras foi escrita sobre uma entidade ímpar denominada de personalidade epilética. Apesar de algumas formas raras de epilepsia cursarem com alterações específicas da personalidade; quando tais disfunções são exibidas, na sua imensa maioria serão secundárias a medicação empregada. Assim, personalidade barbitúrica, antes que epilética, seria o melhor diagnóstico para explicar os transtornos de comportamento típicos, tão comuns nessa população intoxicada cronicamente pelo uso de fenobarbital como panacéia anti-epilética, um equívoco praticado até recentemente.

Aliás, como consultor neurológico, fui testemunha das práticas horrendas desenvolvidas em um macro hospício da periferia de Florianópolis, desgraçadamente ainda em atividade, e posso inferir que métodos idênticos ainda ocorrem em instituições similares difundidas por todo o Brasil. Incontáveis sofredores de epilepsia, ou de outras desordens mentais, brilhantes intelectualmente ou não, foram destruídos com o silêncio cúmplice da Medicina. Mas finalmente nos últimos anos a sociedade parece ter despertado para este descalabro, haja vista a movimentação nela observada para o desmantelamento destas casas insalubres de triste memória. Entretanto, o ideal de retroceder no tempo para remediar a abordagem lastimável de outrora, por ser inviável, deveria nos fazer vigilantes para impedir a repetição dessa tragédia. Além disso, esforços deveriam ser empreendidos por todos aqueles verdadeiramente médicos, independentemente da sua qualificação, para a liberação de todos aqueles indivíduos que seguem aprisionados e reféns do próprio tratamento inadequado, sem qualquer perspectiva de recuperação.

Crises parciais
Um lapso comum entre médicos é a pouca importância que dão ao componente parcial/focal das epilepsias. Uma anamnese deficiente é a responsável por isso, resultando em classificação inadequada das crises. Isto é, ataques parciais são frequentemente rotulados como generalizados, por não serem feitas perguntas simples, porém altamente esclarecedoras; como por exemplo: você tem ameaça/aviso da crise. Qual a importância disso? Crises parciais são a expressão mais comum das epilepsias e exigem sempre um esclarecimento etiológico.

Dentre elas um tipo segue sendo largamente negligenciado: ataques psíquicos. Tais crises constituem as manifestações mais fascinantes das epilepsias e a despeito de serem pouco relatadas, não deveriam ser consideradas raridade. Aliás, a história da humanidade está repleta de episódios sugestivos de que esta modalidade de crise, juntamente com as do tipo sensoriais especiais, marcaram a evolução da nossa espécie; influenciando destinos e, igualmente, gerando desatinos. Certamente foram responsáveis por fatos e invenções geniais também. Curiosamente, é possível suspeitar que diversas religiões influentes e igualmente inúmeras seitas minoritárias tiveram sua criação embasada por ataques epiléticos desta natureza. Fugazes imagens fantásticas, um aspecto comum em muitas delas, contribuíram para a rica mitologia que lhes oferece sustentação popular (por favor, exclua deste pensamento, credos modernos de bem nítida e exclusiva inspiração pecuniária).

Diz o adágio popular, que a criatura sempre se volta contra o seu criador; ironicamente elas retribuíram ao seu criador epilepsia, com a disseminação na sociedade de sofismas e fantasias discriminatórias sobre esta condição e seus sofredores, paradoxalmente alimentadas por muitos profissionais da saúde. Assim, é bastante provável que a equivocada interpretação religiosa da fenomenologia epilética tenha originado o brutal preconceito vigente, responsável pelas graves limitações sociais enfrentadas pelos seus sofredores. Diante desta realidade, pode ser encarado como natural a habitual negação desses sintomas durante as excessivamente dinâmicas consultas médicas da atualidade. Eles somente aparecerão na sua plenitude quando é criado um clima de absoluta confiança e cumplicidade entre paciente e terapeuta. Aqui, mais que nunca, educação e simpatia são pré-requisitos imprescindíveis para a obtenção de uma história clínica realmente esclarecedora.

Por outro lado, ataques parciais psíquicos geralmente são acompanhados de uma alteração qualitativa da consciência e, por conseguinte, vistos no contexto de crises parciais complexas. Apesar disso, transtornos episódicos da memória, tipo jamais vu ou déjà vu, extremamente comuns e quase nunca objetos de consulta médica, deveriam ser classificados como parciais simples devido à clareza com que seus sofredores descrevem o evento. Da mesma forma, as crises manifestas por passagens rápidas de experiências prévias, uma espécie de flashback cinematográfico. Associados com turvação da consciência existem uma gama variada de sintomas que embora não exclusivos de epilepsia são altamente sugestivos dela, tais como: estados de sonho; prazer ou desprazer extremos; medo intenso; ataques de raiva ou riso; alucinações visuais ou auditivas fantásticas; sensação de despersonalização; etc. Perceba, por favor, que nem todas estas crises estão associadas com sintomatologia desagradável; na verdade, algumas delas são responsáveis por fugazes momentos de felicidade, indescritíveis adequadamente, por pacientes atemorizados quanto à sua natureza. Infelizmente, nós médicos, por desvio de formação, somos treinados para enfocar as doenças e não os doentes; enfatizar os defeitos e não as virtudes, e, por isso, deixamos de vislumbrar esse lado fascinante das crises epilépticas.

Cisticercose
Tomografia computadorizada de crânio contribuiu decisivamente para um reconhecimento da importância de neurocisticercose (NC) entre nós. NC é a principal causa de epilepsia no mundo e a percepção tardia da sua gravidade no Brasil, serviu para ilustrar a fragilidade da nossa medicina preventiva. Minúsculos doutores, esquivando-se de "fazer o dever de casa", emprestaram enorme colaboração a essa peste do subdesenvolvimento. Omissos, esqueceram o exemplo de cidadania do advogado Monteiro Lobato, que com seu singelo almanaque do "Jeca Tatú", contribuiu para a erradicação do "amarelão" no Brasil. Faturando com a desgraça alheia, ironicamente esqueceram que a doença atingiu e persiste acometendo pessoas muito próximas de si e, bestialmente, nada fizeram para um efetivo controle/erradicação da condição.

Hoje, solicitamos ressonância magnética para o diagnóstico etiológico da epilepsia incógnita, desconsiderando TC como o exame complementar ideal para a sua investigação inicial. Assim, pessoas vitimadas circulam pelo Brasil e o mundo, fazendo toda sorte de exames complementares, para finalmente terem NC como diagnóstico num vulgar exame tomográfico feito em um fim de mundo qualquer, onde TC está disponível. Impossível omitir as semelhanças: o equívoco do EEG confirmando "disritmia cerebral" é análogo a RM negando NC.

Apesar de tudo, e notável ver colegas inteligentes e sensatos, lutando para a implantação de práticas profiláticas junto a população. Por outro lado, é insultuoso perceber a posição adotada por alguns pseudo-professores de neurologia, ávidos em exibir consequências de NC, ao invés de ensinarem aos seus discípulos como preveni-la. Pior ainda é observar que disseminam no meio conceitos tipo: "está aqui, você tem a larva do porco na cabeça"; ou a velha e ultrapassada máxima, "epilepsia secundária a NC é fácil de tratar, mas difícil de curar" e assim por diante.

Convicto de que o Brasil será um dos grandes fornecedores de comida para o mundo, alimento a expectativa de que um dia cobrem seu real valor. Na verdade, o interesse internacional pelos produtos das nossas agro-indústrias aumentaria substancialmente quando esse flagelo terceiro-mundista for banido destas bandas. Erradicar cisticercose e suas diferentes apresentações do Brasil é algo exequível, bastando a decisão política para seu enfrentamento eficaz. Nossas autoridades deveriam ter em mente que pelo menos um quarto da população epilética nacional tem na NC sua origem. Além disso, quadros neurológicos mais graves não constituem raridade. Desta maneira, podemos inferir que a soma de recursos despendida para tratar NC é muitíssimo maior que àquela necessária para uma efetiva profilaxia. Finalmente, desde que um Estado com economia fragilizada como Cuba o fez, porque não fazê-lo aqui? Obviamente não possuímos o altruismo ideológico que o Estado cubano exibe para com a saúde da sua gente; entretanto, não deveríamos prescindir da inteligência e da aritmética elementar, cuja utilização conduziria facilmente a eleição da prevenção como a melhor alternativa.

Eletroencefalo...grama ou grana?
Neste tópico, em primeiríssimo lugar, gostaria de lhes salientar uma convicção: eletroencefalograma é um exame complementar cuja natureza dispensaria qualquer tipo de adjetivação. Obviamente há distintas formas de obtê-lo; entretanto, é bastante provável que seu mentor, Hans Berger, deve andar muito furioso na sua sepultura; pois andam dizendo pelos quatro cantos que o método desenvolvido por ele é capaz de confirmar ou de descartar a possibilidade de epilepsia ou de fazer estranhos diagnósticos também. Por favor, se por acaso o são, esqueçam ser proprietários de máquinas e leiam bem atentamente o que lhes afirmo, propositadamente escrito em letras maiúsculas para que tenha maior espaço nas suas memórias e talvez contribua para a reabilitação do cidadão teimoso, que insiste em habitar suas entranhas: ELETROENCEFALOGRAMA, QUANDO ANALISADO ISOLADAMENTE, NÃO DIAGNOSTICA COISA ALGUMA!

Eletroencefalografia permanece sendo imprescindível para uma classificação adequada das epilepsias e também da definição da área cerebral epileptogênica; algumas vezes, reconheço, um coadjuvante útil em outros transtornos neurológicos, mas rigorosamente nada além disso. Aliás, de tanto ver desgraçados por EEGs inescrupulosos, há alguns anos, cunhei a expressão eletroencefalograna para melhor designá-los. Certamente que esta aberração não é uma exclusividade do nosso país. Mas, considero perversa fantasia, a pregação para estudantes ou médicos, de que o método teria capacidade além das mencionadas. Agravante maior é quando a perversão do seu uso é absolutamente consciente, expressando pilantragem explícita; e o famigerado "mapeamento cerebral" é um bom exemplo disso. Àqueles que deliberadamente ludibriam a confiança das pessoas anônimas que atendem, se prevalecendo do fato delas terem sido educadas desde a infância para acreditarem cegamente na palavra do "curandeiro", uma palavra final: dinheiro, certamente oferece acesso a prazeres diversos; mas, quando obtido de maneira eticamente censurável, fatalmente cobrará juros, correção monetária e o mais grave, sua honra. E este atributo não tem moeda que pague. Além disso, este tipo de fortuna, costuma desencadear cenas bem desagradáveis; sobre sua catacumba, seus descendentes, a tapa, disputarão seu espólio e aos advogados das partes, caberá o melhor quinhão. Pense nisso!

Resgatar o uso sadio da eletroencefalografia deveria ser tarefa de todos os verdadeiros profissionais beneficiários do método. Particularmente as sociedades especializadas, deveriam considerar o quão importante é sua reabilitação e iniciar a espinhosa; porém inadiável, repressão a delinquência despudorada responsável pela sua caricaturização entre nós.

Despreconceituando
A prevalência de epilepsia, como problema de saúde, é estimada entre 0,5 - 3% da população em geral. Ela é aparentemente menor nos países escandinavos e maior nas sociedades ditas terceiro mundistas. No Brasil, há indícios de que 1 - 2% da população é acometida por alguma das formas de epilepsia que necessitarão de assistência médica.

Entretanto, o leitor deveria considerar que o cérebro, uma máquina sofisticada, com aproximadamente 15 bilhões de neurônios conectados e comunicando-se entre si através de estímulos bioquímicos geradores de potenciais elétricos, está fadado a apresentar oscilação episódica no seu funcionamento, não importando quem seja o seu dono nem tampouco o uso que dele faz. Crises de epilepsia nada mais são que a expressão deste transtorno elétrico afetando o córtex cerebral. Por esta razão, é extremamente freqüente observarmos pessoas absolutamente normais, descrevendo reais crises de epilepsia com sintomatologia menor (ataques de déjà vu ou jamais vu, por exemplo) e que, por isso mesmo, jamais serão objetos de uma consulta médica. Além disso, deveríamos levar em conta, também, que nem sempre crises de epilepsia são desagradáveis e que muitas delas poderão ser prazerosas, havendo uma recusa natural destas pessoas em buscarem serviços médicos. Igualmente, muitos sofredores de crises de natureza psíquica, por temor de terem seus sintomas interpretados como psiquiátricos por profissionais mal informados ou possessão demoníaca por líderes religiosos diversos, irão resistir em relatar seus estranhos sintomas a terceiros.

Na verdade, há diversas evidências sugestivas de que crises epilépticas fortuitas serão exteriorizadas por 100% (cem porcento) dos seres humanos ao longo das suas vidas, não importando à qual raça, sexo ou qualificação sócio-econômico-cultural pertençam. Aliás, inúmeros inexplicáveis sintomas neurológicos fugazes do cotidiano poderiam ser racionalmente atribuíveis a crises de epilepsia, ou a transtornos da eletricidade cortical - se preferirem uma denominação mais simpática.

Infelizmente, investigadores em cobaias de laboratórios, e médicos, não focam esses aspectos, resultando numa interpretação ainda bastante primitiva do que seja epilepsia e suas manifestações; predominando uma visão calcada em dogmatismos idiotas de franca inspiração religiosa antes que científica. A propósito, investigações recentes tem demonstrado que ataques epiléticos ocorrendo de maneira espontânea ou induzidos terapeuticamente, protegem contra depressão. Desta maneira, em contraste com a cultura folclórica vigente que somente enfatiza os alegados sintomas psicopatológicos das epilepsias, soa como muito charmosa a hipótese de que alguns indivíduos possam necessitar de descargas epiléticas episódicas para manter sua sanidade mental.

Por outro lado, a humanidade é repleta de indivíduos ególatras que, estupidamente idealizam serem perfeitos, ignorando que a perfeição não existe e que todos nós, sem exceção, possuímos algum defeito, seja ele de fábrica ou adquirido. Desgraçadamente, muitos deles ostentam títulos universitários, são professores e até chefes de estado, enfim, muitos são pessoas importantes na sociedade. Aparentemente sadios e corretos, estimulam atitudes discriminatórias contra grupos expressivos da população rotulados como deficientes, incrementando ainda mais dificuldades existenciais àquelas pessoas.

Particularmente, apreciaria muito que reconhecessem a magnitude do fenômeno epilepsia e suas distintas formas de apresentação, interrompendo a negativa visão mitológica ou "ratológica" que disseminam. Admitindo preconceito como o dileto filho bastardo da mama ignorância e que ele per si é o responsável por um pesado tributo imposto aqueles que sofrem de epilepsia, uma redução significativa das limitações médico-sociais enfrentadas pelas vítimas desta condição poderia ser vislumbrada com a propagação das informações aqui veiculadas, e esta meta e esperança foram minha maior motivação durante a redação deste artigo.

Dr. Paulo Cesar Trevisol Bittencourt é professor de Neurologia e presidente do Centro de Estudos do HU/UFSC (www.neurologia.cjb.net)

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Atualizado em 10/07/2002
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