Reportagens






 
Genética na escola tem ritmos próprios

Transgênicos, clonagem, teste de DNA, mapeamento do genoma humano. Estes temas ocupam lugar de destaque nas agendas de pesquisa de várias instituições. A mídia impressa e televisiva tem se deixado invadir pelos resultados e polêmicas gerados com essas pesquisas. E a escola? Será que o ritmo intenso e veloz dos novos rumos da genética tem orientado transformações no ensino de biologia? Quais as impossibilidades da escola incorporar tais conhecimentos? O que acontece com os conhecimentos científicos quando saem dos laboratórios e chegam às escolas? É papel da escola trabalhar com esses "novos" conhecimentos? Na opinião de pesquisadores da área de ensino de Biologia a escola não acompanha o ritmo impresso pela velocidade de produção de conhecimento no campo das ciências biológicas. E, para alguns, nem deveria acompanhar, pois apresenta outras funções sociais, preocupações e tradições.

Ser atual é ensinar o novo?

Professora conta suas experiências com “nova genética”
A professora Elenise Cristina Pires de Andrade, que ensina na Escola Estadual Professor Gabriel Pozzi em Limeira -SP, relata que, desde 2000, quando começaram as pesquisas relacionadas ao seqüenciamento, ela aproveita para discutir “sobre o poder da ciência e questionar sobre o fato de que, naquele momento, grande parte da aplicação prática desses conhecimentos estavam relacionados apenas à cura doenças”. Nessa época, achou interessante distribuir para seus alunos trechos de matérias publicadas em revistas e discutir também “o que era clonagem, genoma e transgênicos”. Mais tarde, foi a vez do seqüenciamento de proteínas, o Proteoma. Novamente a professora aproveitou reportagens para discutir com os alunos sobre a dificuldade de se fazer este tipo de pesquisa no Brasil. “Lembro que falei do Laboratório Nacional de Luz Síncroton (LNLS) e os alunos acharam o máximo ter um laboratório deste no país”, comenta.

"O ensino de Biologia, em qualquer nível, não tem que dar conta de todas as questões, de todas as novidades", na opinião de Luís Henrique Sacchi dos Santos, professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil, Canoas (RS). Mesmo os especialistas em Ecologia, por exemplo, podem não entender quase nada de Genética ou Embriologia, exemplifica. "Os professores de ensino médio, mesmo que desejem, não têm condições - tempo, dinheiro, conhecimentos, linguagem - para acompanhar as 'novidades'", diz.

Não ensinar os temas "atuais" da genética significa estar desatualizado? Esta é uma inquietação que a professora Martha Marandino, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) acha complexa. "Do ponto de vista educativo, ser 'atual' não é necessariamente ensinar o 'novo', mas fazer com que o conhecimento faça sentido para os alunos, para a vida deles", analisa. Ela destaca ainda que a contemporaneidade do conhecimento não passa somente por ensinar os temas mais recentes da ciência, já que se pode trabalhar com esses temas de forma dogmática. Formar alunos "atualizados em biologia", diz Marandino, pode ser feito tanto com "temas antigos", como a Sistemática e a Fisiologia, por exemplo, como por meio de temas recentes, a biopirataria, os transgênicos, entre outros.

A novidade estaria em fazer com que os temas provoquem a reflexão, a crítica, a mudança e o entendimento do mundo. A História da Biologia, por exemplo, poderia ser um rico instrumento para compreender os motivos sociais, políticos e científicos que contribuíram para que a Biologia, e dentro dela a Genética, sejam tão valorizadas nos dias de hoje e ocupem espaços prioritários nas agências de fomento à pesquisa, exemplifica Marandino.

O destaque dado à genética é analisado por Sacchi como um novo paradigma: a "genetização". Quando se fala em biodiversidade, por exemplo, em última instância, é o genoma que está em questão, e não o organismo, a população, a comunidade em si. Tal genetização, "passa também pela 'molecularização', ou seja, a busca da 'verdade' última do corpo e da natureza no íntimo do genoma", diz Sacchi. A tendência que atravessa as explicações biológicas, de explicar tudo a partir dos genes, não seria passível de reprodução nas escolas, mas tem atingido a mídia de forma intensa, segundo o pesquisador.

Antonio Carlos Rodrigues de Amorim, professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, também acredita que não deve haver uma preocupação com a inserção dos conhecimentos "top de linha" na escola. Mas, destaca outro argumento: "esses conhecimentos estão procurando um espaço de legitimação e a escola, como a mídia, é mais um espaço de reconhecimento"; expondo também sua preocupação com a existência de uma pressão cultural para que estes temas reorientem os rumos da Biologia. "Se esses conhecimentos ganharem mais este espaço de legitimação vão também adquirindo o status de universalização", diz.

A entrada de "novidades" no currículo escolar

Filmes movimentam a genética nas aulas
Além das reportagens a professora Elenise Andrade gosta de levar filmes para discutir com os alunos. Com certa turma, que acompanhou durante três anos, ela passou o filme Frankestein e, como não estava trabalhando com conteúdos ligados à genética, não esperava que os alunos fizessem uma conexão entre o filme e a genética. “Na hora do filme muitos perguntaram: o Frankestein é um clone? É um mostro ou não? O ser humano cria coisas que muitas vezes não sabe no que vai dar? O clone vai ser humano ou não?”. X-Men foi outro filme explorado nas aulas, desta vez junto com um texto da Marilena Chauí sobre preconceito. Andrade relata que surgiram várias conexões entre o filme e o texto. A cena em que o menino está com a mãe - o menino olha para o Ciclope e a mãe comenta: Não quero que você se envolva com essa gente - foi uma das que mais chamou a atenção da turma. “Os mutantes também são humanos? Existe um por quê da existência dos preconceitos?” Além de discutir essas questões, também conversaram sobre o fato de uma “mutação nos seres vivos demorar muito mais a acontecer do que o que apareceu no filme, e que as mutações às vezes desestabilizam os seres, outras vezes não”, conta. Para a professora, essas são “mentiras cinematográficas” que os filmes muitas vezes se permitem. Já em Parque dos Dinossauros discutiram a questão histórica, ou melhor, lembra Andrade: “o fato dos transgênicos não terem uma história no planeta, e as possíveis implicações de se inserirem seres sem história genética no ambiente”.

Parece existir, entre os pesquisadores, um certo consenso de que a genética não produziu, e talvez não produza, grandes mudanças no currículo tradicional da Biologia. Porém, não se pode negar que, "mesmo que 'não queira' a escola é invadida por esses temas: os alunos perguntam, trazem notícias, querem saber. Se a escola não responde, de alguma maneira, a essa demanda, corre o risco de ser deslegitimada", lembra Marandino.

A mídia tem sido um dos espaços que mais contribui para manter os novos rumos da genética no centro das discussões. Desta forma, tem se tornado, muitas vezes, fonte de informações para professores e alunos e, também, de pressão para que a escola discuta tais temáticas e suas polêmicas. "Eu tenho medo do que vai acontecer na segunda-feira por causa do que saiu no Fantástico". Esta frase já foi ouvida pela professora Lenise Garcia, do Instituto de Biologia da Universidade de Brasília (UnB), várias vezes durante os cursos que ministra aos professores.

Para Garcia, esse movimento provoca uma mudança na postura do professor e na relação professor - aluno. "O aluno está, muitas vezes, mais atualizado que o professor, e isso inverte a relação que se estabelece comumente na sala de aula", argumenta a pesquisadora. Além disso, ela ressalta que a "nova" genética traz como novidade a necessidade de um posicionamento ético do professor, que é impossível omitir; mesmo o silêncio acaba representando um posicionamento. Em se tratando da Biologia, uma área científica marcada pela ênfase tecnicista, isso é bastante relevante, conclui Garcia.

Já Sacchi desconfia da possibilidade da mídia reorientar o currículo da Biologia, mas acredita que pode provocar algumas tensões, alguns ajustes e acréscimos. Em sua opinião, é freqüente o "encaixe" das novas temáticas junto a outras já estabelecidas, e isso pouco contribui para o repensar do currículo dessa disciplina no ensino médio.

Cartaz do filme X-Men. Site: www.signautograph.com/x-men

A impossibilidade de fazer grandes mudanças nos currículos tem sido exposta pelos professores para os pesquisadores da área. Vivian Leyser da Rosa, do Centro de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), coloca que tem percebido uma "ansiedade muito grande dos professores, seja porque não querem, ou porque não podem, abrir mão dos conteúdos tradicionais, mas que, ao mesmo tempo, desejam introduzir nas suas aulas a genética da atualidade".

Atuando nos campos do possível os professores geralmente "fazem chegar à escola esses conteúdos como novidade. Esta é uma tática que utilizam para interromper a estabilidade do conhecimento organizado curricularmente", analisa Amorim. As novidades - os transgênicos, as patentes de biodiversidade, o teste de DNA, a Dolly - podem ser geradoras de brechas no currículo escolar que interessem a professores e alunos, diz o pesquisador.

A Biologia transforma-se nas mãos de professores e alunos
Parece existir uma certa tendência, entre os pesquisadores, de considerar o conhecimento produzido na escola, o conhecimento escolar, como diferente do conhecimento científico. Partindo deste pressuposto uma questão que tem movimentado a comunidade científica na área do ensino de Biologia é: o quê acontece com o conhecimento científico quando este se torna escolar? Esta questão está diretamente relacionada à entrada de novos conteúdos nos currículos escolares e há, entre os pesquisadores, diversas formas de respondê-la.

Martha Marandino comenta que "nem todos os conhecimentos biológicos entram na escola. Há uma seleção, em função dos objetivos sociais da escola, e, nessa dinâmica, alguns conteúdos clássicos se mantêm como importantes". Uma certa "tradição biológica" no dizer de Sacchi, herdada das ciências naturais e acrescida de novos conhecimentos que, de certa forma, estabelece o que tem sido considerado como importante para ser ensinado.

Porém, não é apenas a pesquisa científica que define os elementos de impacto sobre o currículo, lembra Marandino. A existência de múltiplas prioridades na escola torna a entrada das "novidades da genética" mais lentas, em um movimento diferente do que acontece na mídia. Temas como a educação ambiental, a orientação sexual e sexualidade, a educação para a saúde, entre outros, mostram que existem demandas sociais, que concorrem na definição daquilo que será ensinado na escola.

Além da seleção, a pesquisadora chama a atenção para as transformações que acontecem com o conhecimento científico ao adentrar a escola. "Transformações que não são meras simplificações do conhecimento, no sentido negativo do termo, mas verdadeiras criações com objetivo de ensino-aprendizagem", diz.

Amorim, dedica-se a estudar como um objeto cultural, a Biologia, é transformado em objeto de ensino. Na sala de aula os professores enfatizariam, de acordo com ele, menos a seleção de conteúdos e mais a forma como estes são trabalhados. Em sua opinião, "a Biologia é um objeto nômade, que se transforma à medida que funciona em determinados contextos na aula". As atividades realizadas comumente pelos professores, como exercícios, experimentos, plenárias, usos de vídeos, entre outros, recontextualizam os conteúdos.

Desta forma, a Biologia participa desses processos fazendo funcionar ora uma aproximação com o cotidiano, ora uma regulação moral, ora um diálogo com um texto e assim por diante. Argumentar nesta direção, parece não ser fácil para o pesquisador, já que ela propõe uma inversão da lógica predominante: o que antes era considerado apenas técnica, estratégia, dinâmica, passa a movimentar e configurar o conteúdo e produzir sentidos diversos para a Biologia no ensino.

Há um considerável interesse em propor novos materiais didáticos, como jogos, simulações em computador, kits de materiais, bem como cursos, que levem o DNA à escola. Mas Amorim lembra que "quem deseja que certo conhecimento esteja na escola tem que pensar que ele vai ser transformado e que a escola focaliza muito mais a transformação do sujeito, do que ao acesso à cultura que as pessoas têm o desejo de ter".

Perceber a necessidade de entender melhor os processos que ocorrem na produção do conhecimento escolar é algo recente entre os pesquisadores. A Sociedade Brasileira de Ensino de Biologia (SbenBio), que reúne alunos da graduação, professores e pesquisadores da área, tem se configurado em um importante espaço de discussão dessas e outras questões. A consolidação da Sociedade, em 1997, também significou a criação de pontes que buscam conectar pesquisadores e professores, diminuindo as distâncias entre os resultados das pesquisas e as práticas escolares.

(SD)

 
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Atualizado em 10/04/2003
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