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Sambaquieiros, os primeiros habitantes do litoral brasileiro

Ainda hoje o litoral é a região que concentra os maiores conglomerados urbanos no Brasil. Suas belezas e recursos naturais continuam atraindo mais e mais visitantes, a ponto de alguns irem passar as férias na praia e não retornarem mais aos seus locais de origem. Essa atração é tão forte que os primeiros registros pré-históricos populacionais de que se tem notícia são de comunidades que escolheram o litoral como seu habitat. Os sambaquieiros, como são conhecidos, viam no litoral e áreas próximas ao mar, abundância de recursos alimentares que contribuiram para aumentar suas chances de sucesso e garantiram, em alguns casos, a chance de permanecerem por até mil anos na mesma área.

Atividade de Educação patrimonial no sambaqui Garopa do Sul em Jaguaruna (SC). Crédito: Nupep/Unisul

 

Formações típicas de amontoados de conchas, ossos, restos de fogueiras e artefatos, misturados à areia, os sambaquis são construções típicas dessas comunidades e podem chegar a uma altura de 30 metros, além de ocupar uma área que alcança alguns hectares, espalhados por praticamente todo o litoral, incluindo a área do baixo Amazonas. São particularmente mais numerosos na região de Santa Catarina, onde estão os mais antigos e bem preservados sambaquis do país. Mas essas construções não são exclusivas do Brasil. As primeiros foram estudadas na Noruega e eram vistas como um monte de lixo. Hoje, existem registros no Chile, na costa do Pacífico, no Canadá, no Japão e em várias outras áreas litorâneas é possível encontrar construções semelhantes.

Como essas sociedades viviam em áreas de grande umidade, assentar-se sobre morros formados por acúmulo de matéria orgânica ao longo de centenas de anos diminuía a umidade que chegava pelo solo, aumentando o seu conforto.

As sociedades dos sambaquieiros eram mais sedentárias que os tradicionais caçadores-coletores, como informa a arqueóloga do Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville (SC), Dione Bandeira, e dominavam algumas tecnologias de lapidação de pedras, além de ossos de aves e mamíferos e espinhas de peixes, usados como anzóis ou na ponta de flechas e lanças. Peixes eram a base de sua alimentação, mas berbigões (molusco da espécie Anomalocardia brasilensis), moluscos, crustáceos, vegetais e pequenas caças também compunham sua dieta. Para chegar a essas conclusões é preciso analisar os restos de matéria orgânica acumulados nos sambaquis, o que equivale dizer que só fica registrado o material que conseguiu ser preservado nos últimos 4 mil anos, média de idade dos sambaquis. Assim, os registros de vegetais ficam por conta da madeira, coquinhos, sementes e pedaços de tubérculos carbonizados nas fogueiras e que encontram-se fossilizados. Um olhar mais cuidadoso nos restos de madeira fossilizada no microscópio de varredura, pode identificar famílias de plantas que eram utilizadas pelos sambaquieiros, estimar a composição ambiental da época e comparar com a atual, a exemplo do que foi feito por Rita Scheel-Ybert, da Universidade de Montpellier II, na França, como mostra artigo publicado na revista Ciência Hoje (vol.28, n.165).

Embora os sambaquis sejam bastante estudados, pouco se sabe sobre os hábitos e cultura de seus construtores, simplesmente porque os dados culturais são mais difíceis de ser desvendados, uma vez que não existem registros escritos, e os desenhos e esculturas em pedra e osso são pouco freqüentes. Mas, alguma coisa pode ser evidenciada a partir de informações coletadas nos sepultamentos dos sambaquieiros. "Encontramos mulheres e crianças geralmente com adornos, como colares de conchas. Os homens normalmente são acompanhados de algum artefato", explica Deisi Scunderlick Eloy de Farias, coordenadora do Núcleo de Pesquisas em Educação Patrimonial (Nupep) da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul). Entender a divisão social de trabalho ou hierarquias fica muito mais difícil. Neste caso, o que se faz são suposições, como aquelas feitas por Maria Dulce Gaspar, do Museu Nacional do RJ, que fez um estudo etnográfico na ilha de Santa Catarina, com os catadores de berbigão atuais.

Esta comunidade vive principalmente da venda da pesca e da carne de berbigão, no mercado público de Florianópolis. As conchas são usadas para aterrar o quintal, uma vez que vivem muito próximos à lagoa, uma área de muita umidade. "Eles são os construtores de sambaquis contemporâneos", compara Farias. A partir deste estudo, Maria Dulce Gaspar observou que as mulheres e crianças é que são responsáveis por coletar os berbigões enquanto os homens cuidam da pesca e, eventualmente, ajudam contrariados as mulheres e crianças quando estão, por exemplo, desempregados. A partir dessa referência, a arqueóloga explica que pressupõe-se que nos sambaquis homens e mulheres tivessem divisões de tarefas semelhantes.

Como eram os sambaquieiros
Entre as características físicas mais marcantes dos sambaquieiros estão as diferentes alturas nos esqueletos de homens, com uma média de 1,60m, e mulheres, com 1,50m, ambos vivendo 30 a 35 anos em média. O tórax e membros superiores bem desenvolvidos levam a crer que os indivíduos eram bons nadadores e provavelmente remadores de canoas. Tal suposição é apoiada também pela presença de restos de peixes de espécies como a garoupa e miragaia, típicas de regiões mais profundas e com pedras que, para serem capturadas, exigiria que o pescador se deslocasse da beira da praia. Outra característica importante é o desgaste de algumas regiões da arcada dentária, que aponta o costume dos sambaquieiros consumirem alimentos duros e abrasivos, o que poderia ter causado dores de dente e abscessos.

Apesar do número de sambaquis existentes no Brasil não ser consenso entre os arqueólogos, é possível que possam passar de mil, com idades que variam de 1,5 mil a 8 mil anos, sendo que a maioria tem cerca de 4 mil anos. As datações são feitas através do método do carbono 14 em carvões fossilizados em várias alturas de um sambaqui.

Desaparecimento
As datações indicam que os últimos sambaquis abrigaram populações até cerca de 1,5 mil anos atrás, período da chegada dos colonizadores europeus ao Brasil. Muito se especula sobre o desaparecimento dos sambaquieiros, mas poucas são as certezas. Duas são as principais hipóteses. A primeira diz que o contato com outras culturas, como a dos Guaranis - grupo de ceramistas, bélicos - ou Carijós, poderia tê-los exterminado em lutas, semelhante ao que ocorreu com muitas comunidades após a chegada dos europeus ao Brasil. A outra hipótese, mais amena, é que os sambaquieiros podem ter sido aculturados, ou seja, sua cultura teria sido absorvida através de casamentos ou de escravização. Qualquer das possibilidades prega o encontro de diferentes culturas que teriam desestabilizado a cultura sambaqui, condenando-a ao sumiço. Alguns sítios sambaquis contêm vestígios de povos ceramistas como os tupi-guarani, itararé e taquara, que foram expandindo seus territórios pelo litoral, atraídos pela fartura de alimentos e, quem sabe, as mesmas (e mais belas) belezas naturais que nos levam até hoje a ele. Foram essas culturas que tiveram que enfrentar os portugueses quando estes atracaram em nosso litoral.

Preservação e conscientização
No nordeste praticamente não existem mais vestígios de sambaquis, confome explica a arqueóloga Deisi de Farias, da Universidade do Sul de Santa Catarina. Nessas áreas os sítios foram destruídos, principalmente por representarem uma rica fonte de cal, usada na construção de casarios até a década de 1960, quando surgiu a lei federal 3.925. A lei proibiu essa prática e tornou qualquer sítio arqueológico um bem patrimonial da União, caracterizando como crime atos que resultem na destruição desses monumentos.

No entanto, a lei não bastou para evitar que os sambaquis continuassem a ser depredados. Farias lembra que é fundamental que os municípios façam um zoneamento que privilegie os monumentos arqueológicos, facilitando o trabalho do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), responsável por monitorar esses bens. Outro problema levantado pela arqueóloga é o fato de haver apenas um arqueólogo no Iphan responsável por monitorar o estado de Santa Catarina inteiro. "Aqui no Nupep estamos sempre vigilantes, qualquer coisa a gente denuncia, mas aí, normalmente, o sítio já foi destruído", lamenta.

Exposição "O homem e sua trajetória" organizada pelo Nupep em julho de 2000. Crédito: Nupep/Unisul

Para amenizar o problema da falta de verba dos órgãos governamentais, que parece ser freqüente, a conscientização da população local e dos turistas surge como um caminho alternativo bastante eficiente para evitar mais destruição nos sambaquis. "A maioria das pessoas têm um sambaqui no fundo do quintal e não sabe que o está destruindo", informa Farias. Já os turistas, muitas vezes sem informação, utilizam os sambaquis para praticar o motocross ou andar de jipe, como acontecia no sambaqui Garopaba do Sul, no município de Jaguaruna, antes do Iphan, juntamente com algumas empresas privadas e a prefeitura local, conseguir assentar uma área de 11 hectares com altura de até 20m.

O Nupep desenvolve atividades que visam dar visibilidade à pré-história de Santa Catarina. Dentre elas estão exposições itinerantes voltadas para o ensino fundamental, livretos que informam sobre os sambaquis da região, CD-Roms e kits de exercícios voltados para professores escolares.

(GB)

 
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Atualizado em 10/03/2003
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