Reportagens






 
Pesca: vidas, comunidade, língua

Silvia Figueiredo Brandão

Em um clássico da literatura especializada na área dos estudos lingüísticos em língua portuguesa, Luís Filipe Lindley Cintra, eminente filólogo e dialectólogo português, sintetizou, com emoção e extrema propriedade, o sentimento a que não se podem furtar pesquisadores de campo que convivem com pequenas comunidades e têm no discurso do outro sua fonte de informação e seu objeto de pesquisa. Referindo-se a seus informantes, dizia ele: "Eles tinham-me dado uma lição magnífica, decisiva para o meu modo de sentir e de pensar a partir daquele momento. Atrás dos falares que tinha vindo estudar, era toda uma humanidade humilde mas digna, vivendo intensamente os sentimentos simples, lutando corajosamente pela sobrevivência (...). Se mais nada, no vasto terreno da lingüística, conservasse um dia interesse para mim, creio que esta experiência seria só por si suficiente para me obrigar a reconhecer e afirmar que vale a pena o ramo de estudos para que a vida me conduziu"1

Nas últimas décadas de 80 e 90, pesquisadores, pós-graduandos e bolsistas de iniciação científica integrados ao projeto do Atlas Etnolingüístico dos Pescadores do Estado do Rio de Janeiro (Projeto Aperj), desenvolvido na Faculdade de Letras da UFRJ, partilharam o mesmo sentimento e tiveram a oportunidade de registrar, a par das características fonético-fonológicas, morfossintáticas e léxico-semânticas da fala de pescadores artesanais do norte e noroeste do estado, uma série de aspectos sócio-culturais que poucas outras áreas do saber, indiretamente, podem revelar com tanto imediatismo e precisão.

Isto se dá porque, por meio da língua, o homem recria a realidade, interpretando-a e repassando-a aos demais. Aprisionado às suas estruturas, obediente às regras que lhe garantem a intercomunicação, preserva, inconscientemente, formas tradicionais, mas, sensível às modificações que se operam a sua volta, nela imprime suas marcas, renovando-a a cada apelo externo.

Sem dúvida, é no plano do léxico que se reflete, com maior nitidez, a diversidade de visões de mundo dos indivíduos, os seus diversificados padrões culturais. No caso de uma língua especial - de um jargão profissional - como a da pesca, no entanto, os traços peculiares das diferentes comunidades de fala não transparecem com a mesma facilidade, pois há um nivelamento vocabular inter-regional, inerente ao âmbito social/corporativo restrito em que é utilizada. Se há pontos comuns entre as comunidades pesqueiras, por outro lado, existe um contexto específico a cada uma delas e que decorre dos fatores naturais que condicionam a pesca. O pescador tem de adaptar-se ao meio em que atua, empregando uma determinada técnica em função do tipo de pescado que ali ocorra, das características geográficas e geomorfológicas do ambiente, e assim por diante. A variedade vocabular (e por extensão, sua riqueza) vincula-se à variedade da fauna aquática, ao nível de dificuldade de captura das espécies, às condições climáticas. Quando as lagoas de Cima e do Campelo, por exemplo, apresentavam maior volume d'água, ali ocorria, em abundância o camarão-cascudo (Macrobrachium sp.), que requeria um instrumento de captura especial, o puçá. Hoje, esse implemento não mais é encontrado naquelas zonas e o vocábulo a ele referente entrou, nos falares locais, para o rol das formas em desuso.

A uniformidade de processos e implementos de pesca observada em determinadas regiões não impede que o indivíduo os interprete de diferentes formas, nomeando-os de acordo com suas vivências. É o caso, ainda no que se refere às lagoas do município de Campos, do que se observa relativamente à Helodea canadensis - Hydrocharitaceae, planta herbácea aquática, submersa, que, de acordo com o relato dos pescadores, passou a proliferar nas águas sobretudo a partir da década de 80 em função das agressões ao meio ambiente perpetradas por usineiros e criadores de gado. Em Mundéus (Lagoa do Campelo) e em São Benedito (Lagoa de Cima), a Helodea é chamada, respectivamente, de lixo e mato, enquanto, em Ponta Grossa dos Fidalgos (Lagoa Feia), de árvore-de-natal. A duas primeiras denominações retratam, indiretamente, o desprezo e o desespero dos membros das comunidades quanto à propagação da espécie, que consideram uma das causas do "fracasso" da pesca nessas áreas: "essas planta é lixo, outro nome não sei",2 como observou um dos informantes da pesquisa. O último dos vocábulos, que ocorre na fala de uma comunidade ainda não tão afetada pelo problema da colmatagem, até mesmo por ser aquela lagoa a maior do estado, decorre de processo metafórico, um dos mais fecundos mecanismos de criação/ampliação lexical, em virtude de seu aspecto, que lembra o galho e as folhas do pinheiro que faz parte das tradições natalinas das grandes cidades. A propósito, vale lembrar que esta denominação deve ter advindo de hábitos veiculados pelos modernos meios de comunicação de massas, sobretudo a televisão, uma vez que não há, nas comunidades pesqueiras campistas, comemoração especial na época de Natal.

Mas a linguagem da pesca não varia apenas de região para região. O registro da fala das diferentes gerações de uma comunidade pode revelar, em tempo aparente, as formas lingüísticas mais conservadoras e as inovadoras e, por extensão, fornecer possíveis indicadores de estabilidade ou mudança sociais.

Sobretudo os pescadores mais velhos de Ponta Grossa dos Fidalgos ainda chamam de mare [´mari] - abreviação do substantivo composto mar-d'água - uma onda alta e forte, que, na região, é normalmente denominada de banzeiro. O uso do vocábulo chama a atenção, não só por constituir em raríssimo exemplo de destravamento silábico por meio da inserção de um [i] em forma terminada por -R (o mar >o mari), num falar em que o padrão seria o cancelamento da consoante (o mar> o má), mas também por ser forma antiga, encontrada em textos de prosadores quinhentistas3, o que permite formular a hipótese de que tenha sido um vocábulo que, introduzido pelos primeiros povoadores da região no século XVI, se tenha mantido até os dias atuais na fala de uns poucos indivíduos. Também é tradicional o termo pombeiro - e sua variante bombeiro, explicável pela permuta de [p] por [b], fenômeno comum no percurso de formação da língua portuguesa desde o latim e ainda bastante produtivo - encontrado em outras áreas do país e que atesta uma das formas de comercialização do pescado. O moderno pombeiro, ou melhor, o bombeiro, forma mais freqüente, não mais se desloca entre os povoados no lombo de um burro de onde pendiam cangalhas que seguravam dois jacás que acondicionavam o pescado, mas utiliza-se de bicicleta ou motocicleta, carregando os peixes em grandes caixas de isopor.

Testemunha de um passado por vezes imemorial, a fala dos pescadores, como, aliás, a de qualquer indivíduo, também retrata, entre outros aspectos, a modernização dos meios de produção, o avassalador movimento de unificação cultural. Termos como metro, centímetro, milímetro coexistem com braça, palmo e dedo, unidades de medida de comprimento mais tradicionais e primitivas. Palavras como plástico, náilon e isopor são, hoje, tão pertinentes à língua especial da pesca quanto o eram a linha Ursa com que se teciam redes, o mololô (Annona sp. - Annonaceae), com que se fabricavam cortiças e bóias ou o jacá, o já referido cesto de palha.

O tempo de duração das entrevistas que serviram de base à mencionada pesquisa, tanto as norteadas por um guia-questionário quanto as que constituíram elocuções livres em que os pescadores eram levados a falar sobre sua atividade, demonstra, de imediato, o maior/menor grau de comprometimento dos indivíduos com sua profissão. Enquanto os mais velhos (os de mais de 55 anos) e os da geração mediana (36-55 anos) estendem-se, com entusiasmo, sobre o que denominam de sua "arte", os mais jovens, são, em geral, lacônicos e, muitas vezes, desconhecem denominações tradicionais. Isto porque, hoje, nessas regiões, a pesca não mais é uma atividade essencialmente passada de pai para filho, mas funciona também como um derivativo para o desemprego, como uma alternativa de sobrevivência para as épocas em que a colheita de cana-de-açúcar, já por si de caráter sazonal, não gera as raras oportunidades de trabalho.

Mesmo os pescadores cujas famílias sempre viveram da pesca e que ainda se orgulham da atividade demonstram ceticismo, em certas áreas, quanto ao futuro dos filhos, preferindo que migrem para centros urbanos em busca de novas oportunidades, em vista do descaso com que são tratados pelos órgãos oficiais e pelas inúmeras dificuldades que a economia da região lhes impõe. Impelidos pela utopia de melhores condições de vida na cidade, jovens pescadores abandonam a atividade, saem da região, acabando alguns por se tornar bóias-frias, acabando todos por contribuir, sem perceberem, para interromper a cadeia de saberes populares pacientemente entretecidos pelas gerações que os precederam.

De detentores de uma técnica milenar, os pescadores passam à condição de trabalhadores desqualificados, necessários aos interesses econômicos de outros grupos, como o dos usineiros, que aterram as margens das lagoas para aumentarem a área de plantio. Desse modo, as usinas não invadem apenas as margens das lagoas, invadem também a identidade cultural dos grupos, que passam a encarar a pesca como meio de subsistência e não como meio de produção de riqueza. Como ressaltou um pescador: "Essa lagoa [Campelo] era a mais rica do mundo: era só piau, robalo e tainha, curvina. Minha profissão era trabalhar. Dava pouco dinheiro, mas tinha muito peixe. Qualquer lugar que a gente desse, dava peixe. Hoje a lagoa tem época que não dá nada. Puseram comporta. Tem muito lixo. A maioria trabalha na lavoura, na Usina São José e São João."

As entrevistas com os pescadores do norte-noroeste fluminense não constituem apenas um corpus para análises lingüísticas, mas consistem, ainda, num rico acervo de informações de natureza ecológica, econômica, antropológica, sociológica, entre outras. Os depoimentos, os comentários marginais às perguntas que lhes foram feitas permitem ao pesquisador conhecer mais de perto a história de segmentos sociais marginalizados pelo Poder e pela História, mas que, em última instância, são os reais delineadores da cultura, dos valores e da variedade da língua portuguesa que dão identidade ao país.

Ouvir essas vozes, conhecer essas pequenas histórias é, assim, fundamental para preservar bens sócio-culturais - entre eles os bens lingüísticos - e, naturalmente, para traçar políticas adequadas à qualidade de vida de brasileiros das mais diferentes origens. Atrás dos falares que tinham vindo estudar, os pesquisadores encontraram algumas das faces do homem brasileiro, dessas que, perdidas na multidão, na babel de variedades lingüísticas que constitui uma língua de civilização, parecem não ter voz ou identidade. Encontraram homens conscientes de que lutar pela preservação de seu ambiente de trabalho, de sua atividade é garantir que sua personalidade individual e grupal seja respeitada.

Referências Bibliográficas:
1. CINTRA, Luis Filipe Lindley. (1983) Estudos de dialectologia portuguesa. Lisboa: Sá da Costa. p. 9
2. Corpus APERJ. Departamento de Letras Vernáculas, UFRJ. Informante B2MU.
3. ALI, Manuel Said. (1975) Investigações filológicas. Rio de Janeiro, Brasília: Grifo, INL.
4. Corpus APERJ- Departamento de Letras Vernáculas, UFRJ. Informante C3MU.

Silvia Figueiredo Brandão é professora do Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas da UFRJ e autora do livro A geografia lingüística no Brasil.

 
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Atualizado em 10/03/2003
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