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Pesquisas revelam a generalização da informalidade entre as mulheres ocupadas

Mais de 40% da População Economicamente Ativa (PEA) do Brasil ou, mais precisamente, 41,9% dela, era formada por mulheres em 2001, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No entanto, o maior contingente do trabalho feminino, ou seja, 48,7% das mulheres que então estavam empregadas, estava engajado em atividades com as mesmas características das funções tradicionalmente ligadas ao âmbito doméstico, ou seja, prestação de serviços em saúde e educação e em outras áreas assistenciais. Esses dados são destacados pelas sociólogas Solange Sanches e Vera Lucia Mattar Gebrim, ambas do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), no artigo "O trabalho da mulher e as negociações coletivas", publicado em dezembro pela edição 49 de Estudos Avançados, revista quadrimestral do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade Estadual de São Paulo (USP).

Explorados junto com uma série de outros indicadores, esses dados servem para as autoras demonstrarem o caráter ainda extremamente vulnerável do trabalho feminino no país. É essa vulnerabilidade que se faz sentir, segundo elas, nas taxas de desemprego feminino superiores às registradas para os homens, nos períodos mais longos em busca de recolocação no mercado, nos percentuais mais elevados de contratos sem carteira assinada e, em especial, nas diferenças de remuneração entre homens e mulheres para funções comparáveis: na média geral, as mulheres recebiam em 2001 cerca de 66% do rendimento dos homens e, nos contratos com carteira assinada, 85%.

Um outro termo que, em paralelo à vulnerabilidade, pesquisadores pespegam ao trabalho feminino é precariedade. Parece difícil conceituar o que vem a ser exatamente trabalho precário, mas foi a essa empreitada que se lançou a socióloga Adriana Strasburg de Camargo em sua tese de doutorado "Mulher e trabalho no Brasil nos anos noventa", em que procura mostrar que a evolução da mulher no mercado de trabalho não foi tão positiva quanto se pensa. Ou que, em outras palavras, está em curso um processo de precarização do trabalho feminino.

Strasburg, valendo-se também dos dados produzidos pelo IBGE, conclui que a ocupação que mais cresceu nos anos 90 foi o emprego doméstico, como uma resposta à crise econômica. O problema não seria tão grave, segundo a pesquisadora, se não fosse o dado de ser informal 75% dos acordos para esse tipo de trabalho, e a conseqüência direta de resultar em salários mais baixos. Além disso, registra-se aí há uma tendência de ampliação da jornada, porque não há forma de controle das horas trabalhadas. Estes fatores fazem do trabalho doméstico uma das ocupações mais precárias do mercado.

Em paralelo, a pesquisa destaca o aumento do número das famílias chamadas monoparentais, isto é, chefiadas só por mulheres, entre as quais se concentram as formas mais precárias de ocupação. A mulher sofre, então, nesse caso, uma tripla penalização: tem as piores ocupações, os salários mais baixos e ainda sente a ausência do parceiro na educação dos filhos e na composição dos rendimentos (ver gráfico1). É a mulher chefe-de-família, mostra Strasburg, a que acumula maior número de horas trabalhadas. Seus filhos, homens ou mulheres, também têm jornada de trabalho maior, dentro e fora de casa, o que contribui para criar previamente uma situação de desvantagem no mercado de trabalho futuro.

Em outras composições familiares, mesmo quando o homem tem jornada de trabalho maior que a da mulher, "o número de horas do trabalho doméstico é sempre bem maior para a mulher, cônjuge ou não", comenta Strasburg. Há assim, segundo ela, uma situação de reprodução da penalização feminina através de gerações e não há políticas específicas do Estado que ofereçam respostas a esse problema. "A situação é muito complexa. O modelo reproduz a desigualdade", diz a pesquisadora. A infra-estrutura que o Estado oferece no que diz respeito às creches, por exemplo, é insuficiente. "Além disso, quando a mulher vai colocar seu filho na creche do Estado ela tem que comprovar pelo registro em carteira que está trabalhando ou apresentar uma declaração que comprove um vínculo empregatício. Só que 75% do trabalho doméstico é informal e muitas vezes o patrão não quer dar essa declaração, para que não se comprove esse vínculo e ele não tenha que pagar obrigações trabalhistas", comenta.

No 'chão-da-fábrica' dos bancos
Longe do penoso trabalho doméstico, com sua predominância dos contratos informais, se poderia pensar que a situação das mulheres que trabalham no setor financeiro é privilegiada. Mas não é isso que conclui a socióloga Liliana Segnini, professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em estudo publicado no livro Mulheres no trabalho bancário (Edusp/Fapesp). "Mesmo com maior nível de escolarização que os homens, as mulheres no setor bancário não conseguem ascender a cargos de liderança e de tomada de decisão na mesma proporção que seus colegas". Cerca de 80% das bancárias, segundo a pesquisadora, estão nos cargos de base, os chamados 'chão-de-fábrica' dos bancos. Ganham menos, trabalham em tempo parcial e apenas 20% estão em cargos de chefia intermediária com possibilidades de chegar à gerência. Esse foi pelo menos o cenário que ela encontrou em um banco estatal de São Paulo, no início da década de 1990, e que, acredita, pode ser extrapolado para o setor de forma geral.

Segnini conta que optou por um banco estatal de grande porte porque nessas organizações os mecanismos de seleção e ascensão profissional, por meio de concurso público, em princípio são iguais para homens e mulheres. No cenário estudado, de um total de 35.366 funcionários, 16.108 eram mulheres, ou seja, 46%, e 19.258, homens. Embora a inserção das mulheres tivesse ocorrido em funções idênticas às dos homens, constata ela, ao longo dos anos, independentemente do potencial para o desempenho de tarefas de responsabilidade e atenção, elas permaneciam nas funções de escriturárias ou auxiliares administrativas e acabavam por realizar atividades de retaguarda ou apoio ao atendimento. "Elas ainda são culpadas por 'não quererem' ou 'não se interessarem' pela ascensão", frisa.

De acordo com a socióloga, mesmo o fato de bancárias conseguirem chegar aos cargos de gerência não significa necessariamente uma conquista. Ela lembra que as atividades exercidas por gerentes de bancos são basicamente a venda de produtos. Por isso, as mulheres têm mais vantagens na hora da promoção. "Em geral, elas estão na linha de frente por serem amáveis, sensíveis e bonitas".
Nos cargos de decisão, frente aos quais se localizam as barreiras mais difíceis de serem transpostas, a ocupação feminina não chega a 5%. "Se fizermos um levantamento minucioso, perceberemos que muitos desses cargos são passados como herança familiar ou quando a família é proprietária do banco".

Guetos femininos
Com base numa linha de raciocínio defendida pela socióloga francesa Daniéle Kergoat, que considera a existência de dois segmentos de trabalho já pré-determinados na sociedade - "existe o trabalho de mulher e o trabalho do homem", destaca - Segnini analisa os chamados 'guetos' femininos. No caso dos bancos, ocorre uma feminização a partir da década de 60 e, segundo os dados de sua pesquisa, as mulheres representam de 50% a 70% dos trabalhadores nesse setor em diferentes países observados, como Canadá, Estados Unidos, Argentina, Chile, Espanha, França, Índia e Alemanha.

Nos espaços predominantemente masculinos e de difícil penetração feminina, Segnini situa a ciência, por exemplo, e as orquestras - espaço masculino. Em seu trabalho Homens e mulheres em orquestra, a professora fez um estudo comparativo entre o Brasil e a Europa e constatou que apenas entre 20% e 25% de seus componentes são mulheres. De acordo com depoimentos colhidos pela socióloga, muitos músicos não conseguem entender este índice baixo. "Eles acreditam que, em termos de performance, não há diferenças". Além disso, os músicos também percebem que as mulheres são extremamente disciplinadas, o que normalmente é considerado uma característica fundamental para o desempenho coletivo.

Por outro lado, em outras áreas até bem pouco tempo tidas como femininas, o quadro é diferente. Entre profissões como professores e bailarinos observa-se o homem ascender com muita rapidez. "Ele chega facilmente a diretor de escola e outras funções de liderança", sublinha. De acordo com a socióloga, isto significa que, embora as mulheres possuam índices de escolaridade e produtividade semelhantes ou maiores do que os homens, suas funções são relegadas a níveis intermediários.

O caminho de pedras da Engenharia
Entre os guetos masculinos, as engenharias estariam entre os mais fortes do país. Durante toda a década de 1990, a parcela feminina entre os empregos formais para engenheiros não passou de 13% - 17 mil postos - enquanto na medicina, por exemplo, elas respondiam por um terço dos empregos formais em 1990, e alcançaram os 40% em 2000. Essas são conclusões da pesquisa de doutorado da socióloga Maria Rosa Lombardi, da Fundação Carlos Chagas.
"Entre as várias carreiras há uma grande diversidade de taxas de participação feminina e são diversos e múltiplos os fatores que as determinam", diz. Para ela, as mulheres têm mais facilidade para entrar em alguns espaços de trabalho do que em outros. "Parece que as maiores dificuldades residem naquelas áreas de conteúdo tecnológico e científico mais denso", afirma. Só para comparar, na área de direito eram mulheres, em 1990, entre 20% e 30% dos juízes e procuradores. Em 2000, esse percentual subiu para 43%.

Dentro mesmo da engenharia, é possível ver a presença mais forte das mulheres em algumas especialidades. Na opinião de Maria Rosa, "a maior presença feminina em algumas especialidades, e não em outras, começa desde os bancos escolares e se reproduz no mercado de trabalho, reforçando o diferencial de gênero". Segundo a pesquisa, no ano 2000, entre os empregos formais para engenheiro químico, de organização e métodos a parcela feminina foi mais significativa - um em cada quatro cargos era ocupado por mulheres -, sendo bem mais rara entre os engenheiros mecânicos e metalúrgicos.

Além de serem em menor número, as mulheres na engenharia ainda ocupam cargos inferiores. "A ascensão feminina nessas carreiras não costuma ultrapassar níveis intermediários de chefia , supervisão e diretoria, constatação que originou a expressão da existência de um 'teto de vidro' para as carreiras das mulheres", explica. Como exemplo, ela cita que em 2000 menos de 10% dos professores titulares da USP ou dos membros da academia brasileira de ciência eram mulheres.

Maria Rosa Lombardi não se mostra muito otimista em relação ao futuro. "Penso que não é possível afirmar que, na medida em que o número de mulheres nas profissões com maior conteúdo científico e tecnológico aumente, haja uma tendência "natural" de superação das barreiras citadas." Para ela, na briga feminina por espaço no mercado de trabalho, é preciso a ação de vários fatores. As políticas educativas, o próprio complexo jogo de forças que se expressa na divisão do trabalho entre os sexos e as transformações internas que acontecem nas profissões e no mercado de trabalho vão delinear como será o futuro das mulheres nos campos mais especializados.

 
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Atualizado em 10/12/2003
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