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As mulheres e a filosofia como ciência do esquecimento

Marcia Tiburi

Falar em história das mulheres é algo um tanto novo no meio acadêmico brasileiro, mas a questão, aos poucos, vem tomando corpo e invadindo espaços variados de investigação. Maior novidade ainda é falar nos temas "mulheres", "gênero" e "feminino" como conceitos, o que remete ao campo próprio da filosofia. O significado desses termos tem plena atualidade filosófica e crítica. Em primeiro lugar, as mulheres são um tema ou mesmo um tópos de uma história da filosofia escrita por homens. É raro encontrar um filósofo que não tenha se ocupado da questão sempre tratada na intenção da delimitação do lugar do humano em sua relação com as mulheres. Enquanto tema, e em segundo lugar, elas são um assunto que entrelaça motivos políticos, estéticos e metafísicos. É nesse território que aparece o conceito do feminino. Os filósofos homens tentaram construir uma geografia onde situar o feminino que, como símbolo, é o locus específico eleito para as mulheres, para definir sua natureza e ditar-lhes uma lei, uma inscrição no universo previamente tecido da tradição. Gênero é o termo usado há algumas décadas para falar dessa produção de identidade segundo a cultura, a sociedade e os mecanismo de poder nela envolvidos. Gênero, portanto, para o feminismo, é um conceito crítico. Do mesmo modo, os outros dois conceitos devem ser vistos de modo crítico, considerando o aspecto retórico, a função e o uso que tentam fazer valer a verdade histórica contida na palavra.

O feminismo filosófico surge diante dessas questões. Um de seus aspectos fundamentais - que poderá qualificar o feminismo em filosofia em relação aos movimentos feministas de teor eminentemente prático - é a questão da relação entre teoria e prática, do conhecimento e da ação, que fundam o sentido do que chamamos, ainda hoje, de filosofia. O feminismo ajuda a questionar o discurso filosófico em seus pressupostos fundamentais e mesmo arcaicos, tendo a filosofia como uma teoria da ação. É preciso ter em vista que a atualidade das questões políticas que envolvem as mulheres em tantos setores da atividade humana (problema sério em países inteiros) não pode ser compreendida sem atenção aos aspectos de fundo, ao espaço da fundamentação metafísica/ética/estética, que pode orientar para a recuperação da vocação prática da filosofia. A questão feminina é atual e dispõe-se na urgência da produção da solidariedade com o passado, o presente e o futuro da humanidade. As mulheres compõem a história violentada sob o decreto da exclusão da mulher; do mesmo modo, a história da filosofia que, como qualificação do pensamento e da razão, determina os conceitos fundamentais que estão na base da estrutura da sociedade, participa dessa violência. O feminismo filosófico, lembremos, em sua exposição especial com Mary Wollstonecraft, no século XVIII, era a defesa do bom senso da humanidade. Portanto, uma causa voltada para a construção de uma sociedade para todos, não apenas de homens, nem apenas de mulheres. O feminismo filosófico vem levantar essa questão que é ainda atual e que diz respeito à fundação de uma sociedade justa em que a violência e a dominação sejam expostas em seus elementos constitutivos.

A definição filosófica do feminismo, todavia, é tão complexa quanto a história da filosofia. É preciso uma definição apropriada do que se entende por essa história para que o conceito do feminismo e os movimentos que ele permite possam ter validade filosófica. Enquanto história, a filosofia constitui-se como tradição e cânone do qual as mulheres não participaram de modo relevante. O feminismo filosófico é a teoria que procura investigar a fundamentação dessa falta. É um modo de teorização que surge com a já citada Wollstonecraft, em seus Escritos Políticos, nos quais critica o sexismo dos filósofos homens (de Rousseau ao seu contemporâneo Burke), e que evolui até o século XX, com filósofas como Simone de Beauvoir em seu O Segundo Sexo, alertando para os direitos das mulheres na base de uma reivindicação a ser e a pensar, à vida pública e ao universo do discurso e do poder. De meados do século XX até hoje, o feminismo cresce como filosofia que tenta rever o posicionamento da mulher diante da estrutura social e da produção do conhecimento. Se as mulheres constróem um lugar de filósofas no século XX, é porque participaram de uma revolução real que altera as micro e macro estruturas da sociedade ao confirmarem sua presença. Esse é o avanço do feminismo para a filosofia: produzir a entrada das mulheres na cena ontológica - o poder ser - que redunda na cada vez mais crescente cena política e pública consituindo as mulheres como cidadãs, ou seja, seres que participam da constituição política como participantes - que não seja uma mera tautologia dizer - da "pólis".

A ausência histórica das mulheres da filosofia pode ser explicada de muitos modos. O primeiro motivo a ser levantado é, portanto, o silêncio feminino facilmente observável na um tanto escassa produção de livros e textos. As mulheres filósofas são poucas e de produção quase rara relativamente aos homens. É claro que falo aqui em termos quantitativos. Não é possível dizer que as mulheres escreveram muito para acobertar uma acusação de inferioridade intelectual - argumento que, mesmo comum, não encontraria sustentação -, nem é possível dizer, entretanto, que não escrevessem ou participassem da fundação da tradição da filosofia. É preciso enfrentar a questão do silenciamento. Apenas a desmontagem desse processo histórico, por meio de uma genealogia que procura verificar seus elementos originários sempre presentes e renascentes na atualidade, permitirá compreender, pela via negativa, a verdade oculta na produção do silêncio imposto. As mulheres, é certo, participaram da filosofia, mas pela porta dos fundos, assim como de todos os setores da vida produtiva e ativa das sociedades. A improdutividade das mulheres - que não se esqueça - não pode ser avaliada sem a procura por aspectos que tocam na fundamentação dos movimentos da história. A alegação de que as mulheres tenham sido, ao longo do tempo, seres do silêncio por sua própria natureza ou que, na divisão do trabalho, tenham ficado com as tarefas do corpo, da procriação, da casa, da agricultura, da domesticação dos animais, por questões sempre naturais, perde sua validade. A produção do ideal da "natureza feminina", assim como de uma "natureza do homem" ou mesmo uma "natureza humana" serve à delimitação do humano segundo a utilidade necessária à constituição e ao interesse do poder e seus guardiões. Os filósofos sempre tocaram com essa questão na produção do humano por meio de sua definição. As mulheres sempre representaram mais do que a cultura excluída da cultura, ou da cena dos meios de produção e do conhecimento: as mulheres representam a humanidade excluída da humanidade.

O segundo motivo da ausência é, pois, a construção de um ideal feminino que mascara o recalque do corpo, da natureza, da vida nua - na expressão de Walter Benjamin - da qual coube às mulheres serem os estranhos porta-vozes: toda fala das mulheres, a partir desse pressuposto, precisa ser compreendida sob o signo do silêncio que a revela. Se o silêncio apareceu na história como um atributo feminino, que constituía parte do suposto mistério constitutivo da mulher - e mesmo do feminino enquanto ideal - é preciso rever seu lugar e pensar a construção do lugar do silêncio no qual as mulheres foram trancadas, assim como o foram em casas, escolas, conventos e manicômios para histéricas. O silenciamento das mulheres ocorreu em momentos específicos da história e concomitante a um processo que teve vítimas em setores variados. O silenciamento teve seu modo pérfido, quando mulheres foram levadas à fogueira, e teve seu modo cínico: as mulheres foram transformadas no "belo sexo" produzido pela cultura com o apoio da filosofia e das artes. A produção do ideal do belo sexo, a propósito, é uma marca da modernidade: sua função sempre foi a de afastar as mulheres do conhecimento e da política, mais do que protegê-las da imagem do mal com que foram desenhadas.

A história da filosofia, em qualquer de seus tempos, é marcada pelo horror dos filósofos homens às mulheres que, dedicando-se ao saber, almejam a filosofia: nada melhor do que domesticá-las pela sensibilidade, dominá-las pela própria imagem. Sócrates - esse filho de parteira - sabia de seu poder e de sua ameaça (a ameaça política que implica a defesa de direitos) e, por isso, copia-lhes, num gesto de curiosa inveja, o procedimento corporal do parto elevando-o a método: a maiêutica é o parto das idéias que cabe aos homens, enquanto às mulheres cabe o parto do corpo. Essa superação revela-se, após uma longa história de argumentos, como um mecanismo suspeito.

As mulheres produziram conhecimento ao longo da história filosófica, mas com a marca do silêncio ou pela via negativa. Desde a famosa Aspásia, mulher de Péricles e professora de retórica contra a qual se insurge Platão no século IV, até a Sra. Dacier, conhecedora de grego, contra qual se insurge Kant (em pleno século das Luzes!!!), não faltarão à história exemplos de horror às mulheres. Alguém mais sutil, como o afamado Rousseau, tratará a mulher como uma jóia (como Sofia) que deverá valer a honra e ser a sustentação moral e emocional de seu marido (Emílio). Rousseau é um dos exemplos da misoginia que afeta, sorrateiramente, a construção do gênero feminino, lançando-o ao lugar da "boa" e "bela" moça e companheira, modo eufemista de sustentar a inferioridade do sexo feminino. A argumentação pela inferioridade da mulher era lugar-comum na proto-ciência da filosofia de Aristóteles e nos séculos da modernidade tardou a revolucionar-se segundo as normas da universalização dos direitos que ela trazia como bandeira.

Apesar disso, a modernidade é um tempo de antagonismos. Descartes, por exemplo, trocará cartas importantes com a Princesa Elisabeth e inspirará a filosofia feminista de Poulain de La Barre, assim como Leibniz e Locke trocarão correspondências com filósofas como Damaris Cudworth e Catharina Cockburn. A modernidade, aos poucos se divide entre os que criticam e os que defendem as mulheres. No século XIX, sob auspícios do feminismo crescente, Stuart Mill defenderá com ardor os direitos das mulheres como outros filósofos que não encontram fundamentos para a exclusão e o impedimento da cidadania e da liberdade de ação e expressão para as mulheres. No século XIX, mantida a tensão moderna, muitos filósofos - como Nietzsche e os românticos - ocupam-se das mulheres de modo ambíguo: para muitos, ela permanece como a irrefletida figura de uma natureza indomável e misteriosa. No mesmo tempo, em muitos países da Europa o feminismo, como reivindicação pública de direitos, cresce - mesmo no Brasil, Nísia Floresta (que troca correspondências com Augusto Comte, o que mostra mais uma tentativa de trocar idéias, de produzir diálogo por meio da carta) torna-se uma figura importante por seus livros cheios de idéias revolucionárias para as mulheres - e mulheres tornam-se filósofas sem mesmo precisarem entrar na questão feminista, como é o caso de Hannah Arendt. São novos tempos que resultam de um longo processo histórico de escravização passada que provam que o feminismo teve e tem ainda sentido.

A história das mulheres na filosofia contribui para a escrita de uma história do silêncio, uma história do recalque, mais do que do esquecimento. Não basta - para fazer justiça ao passado - fazer uma lista dos nomes que constituíram essa história como se pudéssemos, por um artifício de arquivo, dar sentido à memória e resgatar ou enterrar simbolicamente nossas mortas e injustiçadas. A produção do futuro, sua invenção, depende dos gestos de retomada, resgate, salvação, do presente. A ação reflexiva - declarada no feminismo - precisa atingir a todos os envolvidos com a espécie humana.

Marcia Tiburi é professora da pós-graduação da Filosofia na Unisinos e Unilasalle.

 
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Atualizado em 10/12/2003
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