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O futuro da física depende das mulheres

Marcia Barbosa


Dentre todas as ciências, a física é aquela na qual o aumento da participação feminina tem sido particularmente lento. Estudos desenvolvidos pelo American Institute of Physics (ver figura 1)[1] demonstram que nas últimas décadas o crescimento da participação feminina tem sido maior mesmo em áreas tecnológicas como a engenharia e a computação do que na física. O problema, no entanto, não é que as mulheres são desencorajadas a iniciar a carreira de física, elas literalmente são expulsas dela. Um trabalho envolvendo países europeus, os Estados Unidos e oriente realizado pela comunidade européia demonstra que o percentual de mulheres atuando nos diferentes níveis da física diminui à medida que se avança na carreira (ver figura 2) [2].

Figura 1

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Por que isto é um problema? Será que a sociedade precisa de mulheres com conhecimento de física? Qualquer país que busque se inserir dentro de um mundo tecnológico não pode condenar metade de sua população ao analfabetismo científico. A aversão das mulheres pela física, socialmente aceita como um paradigma da feminilidade, deve ser combatida. Neste sentido, as meninas têm o direito de receber o mesmo grau de estímulo que os meninos recebem para se interessar por física. Notem que isto não implica que meninos e meninas devam receber a mesma forma de estímulo, mas que devam ser estimulados levando em conta as diferenças de gênero. Da mesma forma como técnicas educacionais diferenciadas foram desenvolvidas para alfabetizar diferentes grupos étnicos e culturais, novas formas de ensino de física que levem em conta as peculiaridades de gênero necessitam ser criadas e implementadas.

Figura 2

Grandes avanços científicos foram atingidos sem uma participação percentualmente significativa das mulheres. Será que a física precisa da presença feminina? A resposta a esta pergunta obviamente é sim. Se uma mulher tem paixão por física, ela tem o direito de tentar uma carreira e de tentar obter sucesso nela sem que para isso tenha que abrir mão de sua feminilidade. Mas esta não é um questão simplesmente de igualdade de oportunidades. Na verdade, a física precisa das mulheres para garantir a sua própria sobrevivência. A ciência está passando por um período de grandes transformações, se tornando mais interdisciplinar, cooperativa e multitarefária. Isto pode ser facilmente constatado pelo número crescente de trabalhos envolvendo um elevado número de cientistas, muitas vezes envolvendo pesquisadores de vários ramos da ciência e de diferentes países. Esta revolução entre a física do século XX e a física do futuro só se tornará viável através da diversidade de formas de pensar e de estratégias para atacar problemas. Portanto, excluindo as mulheres do universo científico estaremos limitando esta diversidade.

Reconhecendo o problema, muitos grupos ao redor do mundo começaram a se organizar no sentido de procurar compreender as barreiras que afastam as mulheres da física. Dentre eles, a International Union of Pure and Applied Physics (IUPAP) formou, em 1999, o Working Group on Women in Physics. Em 2002 este grupo organizou uma conferência internacional sobre mulheres na física. Os 300 participantes (sendo 15% homens), representando 65 países, tiveram a oportunidade de compartilhar estatísticas, problemas comuns e propostas para melhorar a participação feminina na física [3]. Entre os problemas comuns, pode-se ressaltar a elevada evasão de mulheres ao longo da carreira. Um estudo comparativo entre países europeus, do oriente e os Estados Unidos mostra que embora os percentuais apresentados por cada país difiram, a queda dos mesmos ao longo da carreira é um denominador comum. Resultados similares podem ser observados no oriente, no continente africano e na América Latina. Em resumo, embora as barreiras que as mulheres enfrentam na carreira científica tenham peculiaridades regionais, dois fatores são universais: (a) a dificuldade em coordenar a maternidade e a carreira de física; (b) o número reduzido de mulheres em posições de liderança, assumindo cargos nos altos escalões da carreira.

Deste evento resultou a formação de grupos de mulheres em física em cada um dos países participantes e o estabelecimento de uma série de resoluções indicando formas de eliminar as barreiras ao avanço feminino na física e sugerindo que mulheres sejam incluídas em comitês de avaliação e de organização de eventos, orgãos colegiados, etc. Estas resoluções começam a ser implementadas pela IUPAP em suas comissões e nas conferências que as subsidia. Similarmente a American Physical Society, a European Physical Society, o Institute of Physics e a Physical Society of Japan entre outras sociedades estão adotando as resoluções elaboradas na conferência [3].

Contudo, aumentar a consciência sobre o problema não é suficiente. Ações concretas são necessárias para que equidade e transparência estejam asseguaradas em todos os processos nos quais mulheres sejam avaliadas. Mas, o que significam equidade e transparência em um mundo aonde discriminação se supõe se tornou algo do passado? Cada um de nós tem a tendência de avaliar os outros usando como padrão o espelho. Usando este modelo, os cientistas buscam seus colaboradores, estudantes e assistentes. Consequüentemente, as mulheres se tornam invisíveis à comunidade. Recebem menos orientação em seu trabalho, não têm em quem se inspirar e são praticamente excluídas da comunidade. Além disso, muitas práticas em nossa comunidade que são aparentemente não discriminatórias e que nada têm haver com a qualidade do trabalho afetam as mulheres com mais intensidade do que os homens. A falta de transparência nos processos de contratação e de promoção, ambiguidade de critérios e particularmente uma visão equivocada que superestima a agressividade são exemplos. Estas práticas levam as mulheres que não se adaptam a este, parafraseando o presidente Lula, 'clube do bolinha' a abandonar a pesquisa ou a resignar-se com a posição de sombra de algum pesquisador. Esta supervalorização da agressividade não afeta unicamente as mulheres, mas a própria física que se vê condenada a um padrão de comportamento único. Sobreviveria a física a um processo evolutivo?

Mas como atacar um tema tão subjetivo como este? Mudanças nos processos de contratação e avanços na carreira ocorrem com maior eficácia, quando mulheres tomam parte do processo decisório. Com isto em mente, temos que promover a inclusão de mulheres qualificadas para tanto nos comitês que organizam conferências, avaliam promoções instituicionais e avaliam candidatos a cargos. Infelizmente garantir a transparência dos processos e que estes levem em conta unicamente a qualidade científica e não a agressividade do candidato, não é suficiente para garantir que as mulheres não vão desistir da carreira. Há fatores sociais que diferenciam mulheres de homens. Por exemplo, ter uma família afeta a carreira de uma mulher de uma forma diferente do que afeta o homem. A produtividade da mulher cai no período pós-parto e durante os primeiros anos das crianças, o que coincide com o período no qual os pesquisadores são mais severamente julgados pelos seus pares. Uma lógica imediatista excluiria esta mulher pouco produtiva do sistema. No entanto, um estudo realizado entre pesquisadores ativos no Japão e apresentado pela professora Masako Bando durante a conferência [4] mostra que após os 3 anos da criança a carreira da mãe pesquisadora não somente retorna a uma produtividade como à anterior ao nascimento da criança, mas apresenta um crescimento. Isto significa que seria interessante para as próprias instituições o estabelecimento de programas de incentivo à pesquisa depois do período de maternidade. Reconhecendo isto, foram criados incentivos às pesquisadoras no período posterior à maternidade em Taiwan, no Reino Unido e na Índia, subsidiados respectivamente pela Wu-Chien-Hsiung Foundation, pelo Institute of Physics e pelo Departamento de Ciência e Tecnologia da India.
Políticas que levem em conta as diferenças entre os gêneros são fundamentais para que a inclusão feminina se torne uma realidade, caso contrário continuaremos a perder pesquisadoras treinadas e com um alto potencial produtivo pelo simples fato delas terem um período de baixa produtividade.

Apesar de percentualmente mais presentes, as físicas dos países em desenvolvimento enfrentam uma situação difícil. O Brasil, por exemplo, possui cerca de 26% de estudantes do sexo feminino de graduação, cerca de 23% de mestrado e cerca de 25% de doutorado (dados de 2000)[5]. No entanto, compomos somente 16% do corpo docente (vide tabela 1-dados de 2000). Após o doutorado, quando a "agressividade" passa a ser usada como padrão de qualidade científica, muitas profissionais qualificadas, mas com um comportamento mais quieto desistem. As que sobrevivem passam a ser avaliadas por comitês regionais e nacionais dominados por homens (vide comitê acessor do CNPq) em que a ascensão a cargos mais elevados se baseia em critérios masculinos de comportamento. Conseqüentemente temos menos de 1% de mulheres físicas no nível 1A (vide tabela 2 - dados de 2000 somente para física) e percentual similar de mulheres titulares nos departamentos de física. Este decréscimo percentual é igualmente presente na Argentina (ver figura 3) [6] e no México [7]. Esta situação pode ser revertida se garantirmos critérios de equidade nos julgamentos de entrada e avanço na carreira o que pode ser alcançado se mulheres se fizerem presentes nos comitês de avaliação. Reconhecendo que em países aonde o financiamento é pequeno as mulheres têm poucas chances de receber ajuda para participar de conferências e de assim adquirir alguma visibilidade, o WGWIP, com o apoio da Unesco e da Loreal, dá anualmente um auxílio para 20 pesquisadoras de países em desenvolvimento apresentarem a sua pesquisa em conferências. Esta ação afirmativa continuará em vigor até que critérios de equidade passem a ser aplicados nestes países.

Figura 3

Em resumo, o tema da pouca participação de mulheres na física é fenômeno complexo que surge em diferentes escalas. A única forma de solucionar este problema altamente não linear é através da busca de soluções locais para o problema global da falta de equidade e de transparência nos processos de avaliação e ascenção na carreira. A solução desses dois problemas beneficiará homens e mulheres e garantirá a sobrevivência da física.

Marcia Barbosa é professora do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e é também presidente do Grupo de Trabalho sobre Mulheres na Física da IUPAP (International Union of Pure and Applied Physics ou União Internacional de Física Pura e Aplicada).


Referências:

[1] AIP Data on Women and Minorities Report.

[2] ETAN Report on Women and Science: Science Policies in the European Union: Promoting excellence through mainstreaming gender equality, 2000
Women Physics Speak: Report from UK Delegation :

[3] Dados e estatísticas levantados durante o evento podem ser encontrados no site.

[4] Masako Bando, Report at the proceedings of the 1st Intenational Conference on Women in Physics.

[5] Dados apresentados na 1st International Conference on Women in Physics.

[6] Dados apresentados na 1st International Conference on Women in Physics.

[7] Dados apresentados na 1st International Conference on Women in Physics.

 
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Atualizado em 10/12/2003
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