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Decreto deve facilitar titulação de terras a quilombolas

A população negra que vive nas comunidades quilombolas terá uma razão a mais para comemorar o dia 20 de novembro este ano. Isso porque está marcada para o mesmo dia a assinatura de um novo decreto que deverá regulamentar o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, artigo da Constituição Federal de 1988, que determina que o Estado deve emitir o título das terras ocupadas pelos remanescentes de quilombos.

Esse decreto é resultado do Grupo de Trabalho constituído em maio deste ano, pelo governo, para formular propostas de políticas públicas que garantam a regulamentação do Artigo 68. Fizeram parte do GT representantes da Fundação Cultural Palmares (ligada ao Ministério da Cultura), da Secretaria Especial de Políticas de Integração Racial, do Ministério do Desenvolvimento Agrário e seis quilombolas, entre eles Ivo Fonseca Silva, coordenador da Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão.

Silva conta que as discussões do GT tiveram como foco principal a questão fundiária, mas que foram apresentadas também propostas para políticas públicas na área de educação e saúde. Mas, sem solução para a questão da propriedade das terras, as demais ações podem se tornar inócuas.

O novo decreto dá competência ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para delimitar, demarcar e titular as terras das comunidades quilombolas, atribuição que antes era da Fundação Palmares. Fazem parte ainda das reivindicações atendidas no novo decreto a isenção do registro cartorial e a resolução de que, nas áreas de proteção ambiental, deverá ser negociada a possibilidade da população quilombola manter suas atividades econômicas, tais como o extrativismo, a agricultura e a pesca. "Os parques estão entrando nas nossas áreas", diz Silva, lembrando que as comunidades já estavam nas áreas que foram demarcadas como áreas de proteção ambiental e que não podem ser desconsideradas.

Para Lúcia Andrade, coordenadora executiva da Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP), é uma grande conquista desses povos a volta para as mãos do Incra a responsabilidade sobre as ações em relação às terras quilombolas. "A política fundiária do país tem que considerar que tem quilombo, tem índio, tem reserva extrativista e não apenas fazendeiro e assentamento, tem que ter uma visão mais ampla", diz ela. Além disso, ela ressalta que o Incra tem escritórios espalhados pelo país todo, tem funcionários, e que a Fundação Cultural Palmares tem apenas um escritório em Brasília. Como são mais de 2 mil comunidades espalhadas pelo país é preciso ter um órgão com estrutura e dinheiro para poder atender a essas comunidades, para fiscalizar. "Um local onde essas comunidades possam reivindicar seus direitos e poucos deles podem ir para Brasília".

Uma das dificuldades crônicas vividas pela Fundação Palmares tem sido o contingenciamento de verbas pelo governo federal sofrido pelo MinC - ao qual a Palmares é ligada. O Incra possui um orçamento maior e é menos sujeito ao contingenciamento.

Um ponto fundamental para Silva, é que o Grupo de Trabalho deu visibilidade às questões que cercam essas comunidades, o que já havia acontecido anteriormente com as populações indígenas. "Conseguimos incluir algumas comunidades no programa Fome Zero, por exemplo. Mesmo sendo um projeto piloto, é importante. Discutimos também vários pontos com o Ministério da Educação e com o Ministério da Saúde. Mas tudo vai depender do orçamento", completa o coordenador da Aconeruq. As condições das comunidades quilombolas são transversais e não podem ser olhadas apenas por um ministério.

O Grupo de Trabalho discutiu problemas relativos a todas as comunidades quilombolas do país que hoje, identificadas, são mais de 2 mil, com uma população estimada em mais de um milhão de pessoas. Além das questões relativas a todas as comunidades há outras particulares, que vêm sendo discutidas, muitas vezes, em nível municipal ou estadual.

O caso de Alcântara, por exemplo, município maranhense que conta com a maior concentração de comunidades quilombolas daquele estado, 217, e que abriga a principal base de lançamentos de foguetes do país, é emblemático. Para a criação do Centro de Lançamentos de Alcântara, 312 famílias foram transferidas para agrovilas e há a possibilidade de outras 500 terem o mesmo destino. Uma das razões para isso é a ampliação da área para a base, que já ocupa 60% de terras de antigos quilombos, o que implicaria mais possibilidades de prestação de serviços. Porém, segundo Jô Soares, assessora política da Aconeruq, a base não necessita de uma área tão ampla que, para os quilombolas sim, é essencial.

Outro argumento usado para a retirada dessas famílias é o risco que a própria base representa para a população, como o acidente ocorrido em setembro. No entanto, na área desocupada, foram construídas casas de alto padrão para os funcionários que ali trabalham. Soares questiona se o risco não afetaria essa população também.

As famílias transferidas para as agrovilas viviam da pesca e, hoje, na agrovila, têm dificuldades para se sustentar e para obter renda. Alguns pescadores se cadastraram para poder continuar pescando no local, mas a atividade sofre agora o controle do Ministério da Aeronáutica, que determina quem pode praticar a pesca e quando, limitando o sustento dessas pessoas.

A situação é agravada pelo não-cumprimento de alguns compromissos assumidos pelo governo na época da implantação da base, tais como indenizações que não foram pagas, titularidades que não foram concedidas e alternativas ao extrativismo e pesca tradicionais que não se concretizaram.

Lúcia Andrade, que coordena o Projeto Manejo dos Territórios Quilombolas, reafirma que o artigo 68, que garante a propriedade, tem sido muito pouco aplicado, pois não existe uma política pública que direcione tanto a questão da titulação das terras de quilombo, como também programas de apoio às comunidades. Diferente da reforma agrária, os quilombolas já estão nas terras e a titulação no caso dos quilombos é coletiva. "Essa é uma coisa específica e foi uma conquista dos quilombolas e tanto o governo federal como os estaduais podem titular terras de quilombos, em titulação coletiva, respeitando o modo que eles ocupam a terra".

Andrade diz que em Oriximiná, no Pará, uma das áreas abrangidas pelo projeto, ocorreram as primeiras titulações de terras de quilombos. Mas, mesmo assim, de um total de 600 mil hectares - uma população de cerca de 6 mil pessoas, distribuídas em 28 comunidades - apenas a metade dessa área foi titulada.

A principal atividade em Oriximiná é a extração de castanha, mas as comunidades também praticam um pouco de agricultura e caçam e pescam para sua sobrevivência. O projeto realizado sob a coordenação do CPI-SP procura aumentar a sustentabilidade do uso dessa terra. "Mas é um projeto não-governamental e estamos batalhando para que se crie políticas voltadas para essa população, no âmbito governamental, assim como já foi obtido para as comunidades indígenas", completa Andrade.

Em relação à titulação, Oriximiná, foi um grande avanço, mas que não se reflete no país todo. Andrade diz que isso se deve ao Governo do Pará que assumiu essa liderança direcionada aos quilombolas. No âmbito federal, não houve nenhuma titulação de terra de quilombo de 2000 para cá e ela espera que todas as conquistas da região possam servir de modelo para os outros estados.

Em relação à titulação de terras, Andrade acredita que ao invés de avanço, de 2000 para cá, o que houve foi um retrocesso com o Decreto 3.912/10, que dizia que somente teriam direito à terra as comunidades quilombolas que ocupavam as terras em 1988. Essa limitação da data não existe na Constituição Federal e não considera situações em que as comunidades foram expulsas de um pedaço da terra em conflito. Ou seja, se em 1987 uma comunidade não estava ocupando a área devido a um conflito com fazendeiros locais esta não poderá ter a titularidade. Andrade salienta o fato de que a determinação dessa data, 5 de outubro de 1988, também é muito arbitrária. Há uma questão de inconstitucionalidade, segundo ela, pois o decreto limita uma lei maior, o que não pode acontecer.

Conflitos
Outra ponto extremamente grave destacado por Lúcia Andrade são os conflitos entre quilombolas e fazendeiros. Entre estes estão proprietários que legalizaram suas terras antes de 1988 e grileiros. É preciso desapropriar essas terras e indenizar os proprietários, para então conceder a titularidade da terra aos quilombolas. Mas, segundo ela, o governo não quer "gastar" com isso. "Eu cheguei a ouvir, em 1999, na Casa Civil, que eles não queriam gastar com terras de quilombos e para desapropriar era preciso pagar".

Ela acrescenta que a Palmares concedeu títulos de terras a quilombolas sem remover os fazendeiros e sem destituir a propriedade. "Até hoje eu fico indignada com isso e nós não conseguimos que a denúncia desse fato fluísse", diz ela. O resultado é que em muitos dos casos, o conflito entre os fazendeiros e quilombolas só piorou. Ela acrescenta que a Palmares chegou ao absurdo de entregar, em São Paulo, o título de uma terra devoluta do governo estadual a uma comunidade quilombola.

A titulação de terras de quilombos é um desafio por ser uma lei relativamente nova. Andrade afirma que o direito agrário ainda é muito pensado em função das propriedades individuais, dos grandes proprietários, e ela coloca uma série de elementos novos que precisam ser adaptados. "Para conseguirmos convencer que era terra coletiva foi uma batalha", diz a coordenadora do CPI-SP.

(SP)

 
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Atualizado em 10/11/2003
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