Homenagem a Hélio Pellegrino
   
 
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Homenagem a Hélio Pellegrino
Miriam Chnaiderman

 

Hélio Pellegrino foi um dos personagens mais marcantes da história da psicanálise no Brasil. Médico de formação, psicanalista nada ortodoxo, poeta e militante de esquerda, Pellegrino fundou, em 1973, a Clínica Social de Psicanálise, uma iniciativa única no sentido de enfrentar a elitização da prática psicanalítica.

O texto abaixo, escrito pela psicanalista Míriam Chnaiderman, foi lido em uma homenagem a ele quando de sua morte, em 1988, e publicado originalmente no número 2 da revista Percurso, editada pelo departamento de psicanálise do instituto Sedes Sapientiae.

"Quando me comunicaram que havia sido escolhida para representar o Sedes Sapientiae em uma homenagem a Hélio Pellegrino, organizada pela Comissão Teotônio Villela, não hesitei por um instante sequer. Embora soubesse da enorme responsabilidade, embora pudesse não me sentir à altura de tão honrosa tarefa, senti como se estivessem me oferecendo uma possibilidade de elaboração daquilo que não é elaborável, ou seja, da morte. Tenho aqui a oportunidade de me sentir acompanhada nessa dor tão aguda e insistente, esse peso negro, essa falta e saudade que a morte de pessoas tão queridas e admiradas faz sentir. Mortes que são marcas e cicatrizes no corpo de cada um de nós - a sensação que vamos tendo com o suceder de mortes desse ano é de uma velhice precoce.

Sentia também que falar de Hélio Pellegrino era falar de tantos outros companheiros de luta, companheiros de ternura, aqueles que buscaram a camarada vida e que morreram nessa procura irrequieta. Sou de uma geração que passou pela universidade nos anos de maior repressão, e foi a partir de figuras como Hélio Pellegrino, Éder Sader, Luiz Roberto Salinas Fortes que pudemos nos manter do lado da vida e do amor, do lado da resistência ao podre, ao hediondo. Foram pessoas, essas, que amaram muito a vida. Amavam tanto a vida que a amavam também em outros, em nós. São pessoas que fizeram com que a vida em nós se fizesse mais vibrante e que através dessa vida em nós, se faziam mais vivas ainda. Intenso fluxo de uma batalha gloriosa que faz o coração explodir, que faz a morte vir sorrateira e, em alguns, indolor. E fica a dor em nós, vivos. Com a responsabilidade da vida tão aprendida e admirada nessas figuras tão belas. É boa a sensação de ter tão cuidado em nós aquilo que recebemos por esses anos todos, de cada um deles.

Falar de Hélio Pellegrino é falar da história da psicanálise no Brasil, é colocar a questão das relações entre a psicanálise e a política. Hélio jamais evitou esta questão, contrariamente à postura das sociedades de psicanálise filiadas à Internacional. Sempre foi um poeta, um militante e um apaixonado pela prática clínica. Suas atividades não se davam em compartimentos estanques. Em qualquer um de seus textos teóricos, que abordam questões complexas da psicanálise, é possível encontrar a preocupação com o político - a questão dos movimentos do desejo é uma questão política também, a história se dá no movimento das subjetividades.

Para Hélio, o centro do ser humano é de indeterminação e liberdade: a psicanálise é a ciência desse salto e do processo pelo qual, gradativamente, tornamo-nos humanos. Estranha leitura da psicanálise, onde o centro humano é o da indeterminação e da liberdade. Era a psicanálise de Hélio, marotamente desacatando Freud na busca da superdeterminação, na amarguice em relação à possibilidade de escolha. Hélio recoloca o destino como indeterminação, ou, a liberdade como destino humano. A vida de Hélio é coerente com sua leitura da psicanálise - militante do desejo, militante das forças de vida, sua cólera era a cólera-esperança, a cólera que faz mudar, a cólera que se ergue contra o que é mortífero.

Brincalhão, bonito, bem-falante - é a imagem que guardo de Hélio no único encontro que tivemos. Mal consegui chegar perto dele, pois era um dos meus mitos das décadas de 60 e 70. Era das pessoas que me nortearam nas escolhas que fui fazendo no meu percurso como analista. Hélio sempre se insuflou contra qualquer forma de autoritarismo. Embora pertencesse à Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, jamais se sujeitou a qualquer patrulhamento, e sempre atuou, como analista, de forma coerente com sua crença libertária. Sempre incomodou muito aos sacerdotes da casta psicanalítica.

Hélio juntamente com Anna Katrinn Kemper inspiraram a fundação da Clínica Social de Psicanálise, implantada em 1973. Hélio foi um dos principais idealizadores desse "banco de horas", em que cada profissional ligado ao projeto depositaria duas horas de atendimento gratuito por semana. Os clientes pagavam quantias simbólicas pelos serviços - oferecia-se terapia de grupo para adultos e adolescentes e ludoterapias para crianças, além de orientação para pais. Havia grupo de estudo para os profissionais interessados pela questão social e política na psicanálise. Em 1973, a hegemonia da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro era total, e, silenciosamente, esta buscou eliminar o trabalho da Clínica Social. Pois, na Clínica Social buscavam-se profissionais identificados com o projeto, independentemente de sua formação. E as Sociedades Psicanalíticas se outorgam o direito único de autorizar ou não um profissional como sendo psicanalista. Não conseguiram destruir a Clínica Social nem os seus frutos.

O próprio Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae é um dos frutos e continuadores da Clínica Social de Psicanálise do Rio de janeiro. Por meio da Clínica Social lançou-se a idéia da possibilidade do trabalho psicanalítico fora dos cânones tradicionais do que é tido como psicanálise pelas Sociedades de Psicanálise. Em São Paulo, o curso de Psicanálise do Sedes foi o primeiro núcleo de formação de psicanalistas não vinculado à Internacional Psicanalítica, e o primeiro núcleo a se indagar sobre a questão política na psicanálise bem como suas diversas possibilidades de atuação.

Hélio queria que as camadas mais pobres da população pudessem ter acesso à psicanálise, não acreditava que a psicanálise levasse necessariamente a uma prática elitista. A psicanálise, embora muitas vezes acusada pelas esquerdas de estimular o individualismo, vem exatamente questionar o que se concebe, tradicionalmente, como sendo o indivíduo. De fato, há uma práxis psicanalítica que parece justificar uma tal acusação - uma práxis que tem levado os psicanalistas a pairarem acima da realidade social, enclausurados em seus consultórios, afirmando uma imutabilidade de essência no inconsciente.

Chiam S. Katz, no seu livro Psicanálise e Nazismo, reproduz um trecho de um artigo que encontrou no Vol. X, nº 2, 1976, p.273 da Revista Brasileira de Psicanálise: "Sugiro que se o analista tem uma determinada ideologia política ou religiosa, é talvez devido à existência de algo que resistiu à análise, e que essa ideologia seja mantida ausente em sua mente, e não interfira em seu trabalho psicanalítico".

E. Jones já dissera (IJP, 1934, vol. XV): "... os psicanalistas se representam como homens de ciência, cujo único alvo é a procura da verdade". Critica os que politizam a psicanálise, pois "conseguir propagar suas idéias sociais particulares em nome da Psicanálise é perverter sua verdadeira natureza".

É o que vai afirmar o Dr. Amilcar Lobo Moreira da Silva, criticando Hélio Pellegrino e Eduardo Mascarenhas - Hélio e Eduardo querem politizar a instituição e "não se pode querer fazer política dentro de uma instituição científica".

Obviamente, a postura de Hélio levaria a um choque direto com a Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro. O conflito se inicia, conforme ele mesmo relata (A crise na psicanálise), em 1969, quando foi preso e enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Hélio pediu então à sua Sociedade Psicanalítica um documento em que ficasse dito que sua prisão poderia causar ansiedade em seus pacientes. O documento lhe foi negado "sob o pretexto de que a Sociedade não poderia imiscuir-se em assuntos políticos".

Nesse mesmo ano - 1969 - Dr. Amilcar Lobo foi aceito em formação na mesma Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro. Hélio, através da declaração de ex-presos políticos, pôde comprovar que em 1970 Dr. Amilcar Lobo passou a fazer parte da equipe de torturadores políticos no DOI-CODI, onde permaneceu até 1973 sem perder a condição de candidato a analista e tendo por analista didata o Dr. Leão Cabernite.

Hélio nos fala: "A conduta da direção da SPRJ, nesse tenebroso caso limite, desmascara sem engano possível a verdadeira natureza do apoliticismo por ela proclamado, revelando seu acumpliciamento integral ao sistema, mesmo nos seus aspectos mais repulsivos, como é o caso da tortura".

Conseqüência: Hélio, juntamente com Eduardo Mascarenhas, é desligado da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro. Move processo e é reintegrado após ampla movimentação no Fórum que Wilson Chebabi coordena no Rio de Janeiro. Há, então, a possibilidade de ampla discussão fora das tradicionais instituições psicanalíticas - busca-se pensar se nossos conhecimentos sobre o Complexo de Édipo, sobre a repetição, sobre o devir-humano etc., podem nos ajudar na compreensão de fenômenos sociais sem cair no psicanalismo, já tão combatido.

Não há psicanálise que não passe por uma determinação histórica e social. Como psicanalistas sem psicanalismos, talvez possamos buscar, a cada momento, o jogo de forças e intensidades produtoras de transformação.

Regina Chnaiderman em São Paulo, Hélio Pellegrino no Rio, cada um a seu jeito, mas um jeito sempre corajoso, nos ensinaram um viver poético.

Com a morte de Regina, Hélio, Salinas, Eder e tantos outros, fica em nós o sopro de vida que deles recebemos e a enorme responsabilidade de levar adiante projetos tão lutados e tão sonhados.

Post-scnptum

Após a morte de Hélio Pellegrino, decidiu-se pela continuidade da Clínica Social de Psicanálise: "É preciso não deixar doentes nossos sonhos, nossos ideais, nossas esperanças...", dizia a carta-convite para a comemoração e inauguração da nova sede no dia 14 de abril de 1989."

Miriam Chnaiderman - psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sades Sapientiae.

   
           
     

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Atualizado em 10/10/2000

   
     

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