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Ulisses Capozoli

"Ao contrário do artigo escrito para a revista Wire, em 1946, sobre o uso de satélites artificiais para a comunicação, o ano de 2019 passou (já estamos em meados de 2039), sem concretizar-se a previsão feita por Arthur Clarke de computadores substituírem psicanalistas.

Como sabem os leitores de Clarke, a troca de psicanalistas por computadores foi considerada no décimo-segundo da série de quinze contos que ele escreveu sob o título de July 20: A Day in the Life of the 21st Century, publicado em 1986. Nessa história, uma personagem, Alma M. (talvez uma brincadeira com Ana O., pseudônimo de uma paciente de Freud, como o computador HAL, um trocadilho com as iniciais da IBM) encontra-se no consultório com o computador TI:343 para uma sessão de análise.

Depois dos cumprimentos ('sua aparência está boa, como se sente hoje?'), o TI:343 conforta Alma: 'agora que sabemos que o amor não correspondido é um distúrbio químico, o cliente pode recuperar-se de um relacionamento desencontrado em uma ou duas semanas. Antes, levava anos'.

Nem mesmo esse diagnóstico do TI:343 concretizou-se. Isso mostra que a ficção científica, como as equações físico-matemáticas utilizadas na previsão do tempo, pregam peças naqueles que as aceitam literalmente. Na ficção científica, como na teoria do caos, envolvida com a meteorologia, o 'efeito-borboleta' não pode ser desconsiderado.

Essa anomalia detectada pelo meteorologista Edward Lorenz, em 1960, faz com que mudanças insignificantes no estado inicial de um sistema possam gerar, ao final de certo tempo, alterações em grande escala. Esse nome brincalhão nasceu de uma analogia, em meados do século passado, sobre o movimento de asas de uma borboleta, na China, criarem uma tormenta do outro lado do mundo. A chuva inesperada de ontem à noite, quando o Giants comemorava seu centésimo título, em um campeonato mundial, pode ser mais uma prova disso."

O texto por onde o leitor passou os olhos poderia ser o relato de um repórter para sua redação, em algum dia do futuro. Nessa data deverão ter ocorrido avanços significativos. Não necessariamente substituição de psicanalistas por computadores. Se bem que isso não surpreendesse nada ciberneticistas como Norbert Wiener. Esse matemático norte-americano, garoto prodígio que mesmo adulto não perdeu uma expressão infantil, foi o criador dessa área de investigação científica. A cibernética está envolvida com processos de comunicação e controle entre organismos vivos, máquinas e organizações.

Em 1948, Wiener publicou Cybernetics or Control and Communication in the Animal and Machine seguido, dois anos depois, por The Human Use of Human Beings. Neste segundo livro, complementou idéias expostas no primeiro escrito e tratou das implicações sociais da nova tecnologia. A cibernética convivia então com o que viria a ser chamado de informática. Nos primeiros tempos, cibernética e informática ("máquinas de calcular", como era conhecida) reuniram um grupo amplo de cientistas insatisfeitos com os limites convencionais de suas áreas de estudo.

Na manhã de 8 de janeiro de 1951, pelo menos 300 deles entraram num edifício da rua Ulm, no Quartier Latin, o bairro boêmio de Paris. Chegavam para uma reunião especial, presidida pelo físico Louis de Broglie. Do grupo, faziam parte o neurologista Grey Walter, com seus "animais artificiais" (tartarugas mecânicas que se alimentavam numa tomada elétrica), Ross Ashby que havia construído um "cérebro artificial", McCulloch, Wilkes, Womersley e uma lista de outros nomes bem conhecidos, além de Jacques de Maisonrouge, o futuro presidente da IBM, e o próprio Wiener. Médicos, engenheiros e militares, em princípio profissionais de áreas muito diferentes, estavam todos representados no encontro.

Os ciberneticistas, desde o começo, estiveram interessados em máquinas que permitam simular, por analogia, comportamentos animais, incluindo o humano. Exemplo disso foram as "tartarugas artificiais" de Walter, um sistema auto-regulado, à base de fotossensores. As "tartarugas" podiam reabastecer-se de energia numa tomada elétrica, quando suas baterias se enfraqueciam. De alguma forma reagiam ao ambiente, ao contrário dos computadores(as "máquinas de calcular"), programados de forma determinista.

A principal diferença entre informaticistas e ciberneticistas, e o que em breve romperia a coesão do grupo, esteve relacionada a conceitos de informação e comunicação. A informação, aqui, deve ser entendida como um processo linear, manifestado de um a outro ponto. Já a comunicação implica em troca, um movimento de retroalimentação e, ao menos em princípio, infinito.

Na base dessa diferença aparentemente pouco importante esteve, desde então, a possibilidade se construir as "máquinas de Von Neumann". Estes sistemas são potencialmente capazes de produzirem cópias de si mesmo, como fazem as células biológicas. A comunicação interativa levaria à capacidade de aprendizado, por tarefas repetitivas, como acontece com animais e especialmente com humanos. Numa das suas variações, poderiam gerar psicanalistas, como o que Arthur Clarke criou em Uma Tarde no Divã: a Psiquiatria em 2019.

Von Neumann, apenas para um registro breve desse gênio morto precocemente, membro do grupo da rua Ulm, avô dos computadores modernos, sempre teve boas relações com militares. Envolveu-se com o Projeto Manhattan e, no deserto, escreveu um modelo matemático para a reação de fissão em cadeia, a usina de força das bombas atômicas.

Wiener, apesar de ter trabalhado para o exército durante a guerra, nunca se deu bem com militares. Recusou-se a colaborar com a produção de armas e, hoje, ainda seria visto com desconfiança no front tecnológico que caracteriza essa atividade. Alguns historiadores pensam que essa postura pode ter criado uma área adicional de desagregação entre ciberneticistas e informaticistas. Ao contrário de Von Neumann, sensível ao prestígio, Wiener preferiu recompensas éticas e sempre esteve ligado a valores humanistas.

Em God and Golen, Inc, escrito de menos de 100 páginas que saiu em 1964, Wiener, com seu jeito típico de sistematizar idéias, preocupava-se com o "fantasma do desemprego trazido pela automação". No prefácio deste livro, com data de 30 de agosto de 1963, escreve que "o problema do desemprego, fruto da automação, deixou de ser hipótese para transformar-se em dificuldade real e extremamente importante em nossos dias".

Como fez Einstein, Wiener também juntou-se ao grupo dos que, com o final da guerra, defenderam mudanças no uso de descobertas científicas para evitar destruição e opressão social. Wiener tratou disso em The Human Use of Human Beings, refletindo acontecimentos recentes na época da publicação. Uma de suas propostas era que cientistas devem achar formas de evitar o mau uso da ciência por militares e políticos. Desconfiava que as armas criadas por estes grupos, uma dia seriam utilizadas.

Mais de meio século depois de Hiroshima e Nagasaki, quando o prestígio de homens como Einstein e Bertrand Russel, sensibilizou o mundo para o horror nuclear, a comunidade científica parece ter abrandado seus protestos quanto ao uso indevido da ciência. O desemprego crescente, especialmente nas periferias capitalistas, não merece, agora, a preocupação que teve de Wiener. Apesar de estar na raiz da violência que superlota presídios, desestrutura famílias inteiras e, nas médias e grandes cidades, expor crianças pequenas ao paraíso perdido das drogas.

Em God and Golen, Inc, Wiener investiga as consequências religiosas das máquinas inteligentes, expressas em paradoxos de onipotência e onisciência: Deus é capaz de criar uma pedra tão pesada que seja incapaz de erguer? Se não pode levantar a rocha, então, há um limite ao seu poder. Se não pode criar a pedra, essa é outra evidência de suas limitações.

Wiener encara o problema considerando-o um equívoco de ordem verbal: "trata-se de um dos vários paradoxos que envolvem a noção de infinito em suas diversas formas". Ele distingue pelo menos três aspectos da cibernética com interesse para a religião: máquinas com capacidade de aprender; máquinas que se reproduzem e coordenação entre homem e máquina.

No final do quarto capítulo, Wiener escreve que "a suposta criação divina de homens e animais, a procriação de seres vivos e a possível reprodução de máquinas possam ser partes de uma só ordem de fenômeno é profundamente perturbadora, tal como foi a especulação de Darwin sobre a origem e evolução do homem".

Se no passado isso feriu fundo o orgulho humano, avalia, hoje, "comparar o homem à máquina parece ainda mais ofensivo". "Cada idéia, em seu tempo", considera, "está associada à repulsa que esteve relacionada, no passado, ao pecado da feitiçaria".

Antes disso havia dito ser "perfeitamente legítimo, adotando o espírito da Física moderna", supor que a comunicação entre moléculas, nos organismos vivos, fosse permeada por fenômenos de campo de natureza radiativa. Wiener não via razões para pensar que "os processos de reprodução, em seres vivos, e em máquinas, não tenham nada em comum". Fiel aos seus princípios, disse então que "honestidade intelectual não significa temor de correr riscos de ordem intelectual. Além disso, não há nenhum mérito ético em deixar de considerar aquilo que é novo e emocionalmente perturbador".

Um problema colocado por Wiener aqui pode ser o de não nos surpreendermos mais com os feitos da ciência. Mas essa postura é mais um ato alienado que uma abertura de idéias, pois ao contrário de Einstein, Russell e o próprio Wiener, aceitamos aplicações perversas da ciência que geram desemprego crescente, exaustão de ambientes e exclusão social. Tudo em nome de um irracional padrão de acumulação. Ao final, quem herdará as riquezas do mundo?

O subsistema (por quanto tempo essa palavra manterá este sentido?), indispensável às máquinas pensantes já existe, ao menos numa versão limitada. Transdutores, dispositivos que transformam sinais de diferentes tipos, como impulsos elétricos em ondas acústicas, num alto-falante, são exemplo dessa versão primitiva, em relação ao que promete o futuro.

Ciberneticistas não negariam que, ao menos em princípio, transdutores específicos poderiam levar ao teletransporte, no melhor estilo de Joe Cometa. Esse herói de Comics dos ano 60 viajava num raio de luz para encontrar a namorada, num outro sistema solar.

As máquinas de Von Neumann ainda não existem na versão original. Mas há certa concordância em que a exploração futura das estrelas não poderá ser feita sem a ajuda delas.

As barreiras para essa conquista se expressam de muitas formas. Algumas bem conhecidas, como a entropia, desorganização de sistemas isolados. A entropia pode mover as asas da borboleta e inviabilizar computadores/analistas.

Mas também essa deve ser uma questão em aberto. Quem será o homem do futuro? Haverá compaixão entre esses homens? Se for assim, talvez faça sentido o princípio de Freud de que "a função da psicanálise é diminuir o sofrimento humano".

Quanto ao que seremos nós, é algo que não temos como supor.

 

Ulisses Capozoli, jornalista e historiador da ciência, é presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC)

   
           
     

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Atualizado em 10/03/2001

   
     

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