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O mistério da impiedade
Carlos Vogt

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O desafio da violência
Gilberto Velho

A Guarda Municipal e a Segurança Públical
Eliezer Rizzo

Guerra e Paz refletem a natureza dupla do homem
Ulisses Capozolli
Trabalho, pobreza e trabalho intelectual
Carlos Vogt
Bitita
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O Bolsão ou A Vida
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A Edificação do Ódio
Carlos Vogt
Parábola de Mulher
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Guerra e paz refletem a
natureza dupla do homem


Ulisses Capozoli

As raízes da violência e as preocupações em evitar que ela mutile e desestruture as sociedades são provavelmente tão antigas quanto a humanidade. Ao longo de milênios, a agressividade humana adaptou-se, sem desvincular-se da evolução social. Em Futuro de Uma Ilusão, Sigmund Freud, criador da psicanálise, diz que o homem livrou-se do canibalismo, mas o assassinato ainda permanece, às vezes com amparo do Estado, caso da pena de morte.

A destruição terrorista das torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, e a retaliação militar que se seguiu, com bombardeio de uma população faminta e acuada por anos de guerra, no Afeganistão, certamente são uma expressão contundente de violência, sob as justificativas mais diversas.

Konrad Lorentz, prêmio Nobel e um dos fundadores da etologia, investigação do comportamento animal, citado pelo antropólogo Richard Leakey, em As Origens do Homem, sustenta "haver provas de que os inventores dos primeiros utensílios de pedra - os australopitecinos africanos - utilizaram prontamente suas armas não só para matar animais, mas também membros da própria espécie. O Homem de Pequin, o Prometeu que aprendeu a conquistar o fogo, também fez uso deste conhecimento para cozinhar seus irmãos: junto com os primeiros indícios do uso regular do fogo estão os ossos mutilados e assados do próprio Sinanthropus pekinensis".

Em On Aggression, Lorentz defende a tese de que a espécie humana traz em si uma forte herança de territorialidade e agressividade, instintos que devem ser extravasados para se evitar distúrbios sociais.

Leakey pensa que todos esses conceitos - as provas arqueológicas de canibalismo e as noções de instintos territoriais e agressivos, além da descrição de um desenvolvimento evolutivo como símios matadores - foram de alguma forma entrelaçados para formar "um dos mitos mais perigosamente persuasivos de nosso tempo, a de que a guerra e a violência estão em nossos genes".

Mutilado por um atentado político na África, que lhe custou as pernas, Leakey diz que essa concepção pessimista da natureza humana foi mal assimilada por autores como Desmond Morris (O Macaco Nu) e Robert Ardrey (The Territorial Imperative, Social Contract e Hunting Hypothesis).

Considera esses indícios insuficientes para definir a natureza humana e contrapõe que os homens também têm uma característica bem desenvolvida para a cooperação, talvez mais que à agressividade. Leakey pensa que "a noção de instinto como força que define os sistemas de comportamento animal foi superestimada e a flexibilidade de respostas envolvendo condições ambientais significativas foram ignoradas até recentemente".

Ainda assim, não se pode dizer que a história humana seja pacífica. Desde os primeiros tempos o som das armas pode ser ouvido. Primeiro o baque seco e nervoso da pedra atirada a esmo. Depois, o impacto do projétil arremessado com a precisão do cálculo, como um felino que salta de um lugar para outro. Neste intervalo, o som de ossos, galhos, pedras, usados como machados e bordunas reverberaram contra o solo e o corpo de inimigos.

Quando o fogo apareceu também foi usado na guerra onde ainda hoje causa destruição. O fogo foi manipulado física e quimicamente para produzir resultados cada vez mais letais. O fogo das bombas atiradas pela fortalezas voadoras pode destruir cidades inteiras, mas o fogo nuclear é ainda mais poderoso. No Japão, sobre Hiroshima e Nagasaki, vaporizou o corpo de pessoas, como um pequeno sol queimando próximo.

Mas isso não é tudo. Como disse Loren Eiseley, nenhum homem pode contar toda a história. A história que existe é a história de todos os homens, porque ela é a criação e expressão da cultura, ambiente de que os homens necessitam para expressar sua natureza humana.

Ao longo da história, o som da guerra não foi o único a se propagar pela atmosfera do Planeta. Os sons da música, da pedra sendo esculpida, do pincel cobrindo a superfície da rocha, no interior de cavernas como Altamira e Lascaux, da escrita, do cálculo, do átomo fissionado, das profundezas do céu, captado pela radioastronomia. Todos esses sons também se dissiparam pela atmosfera denunciando a natureza dupla do homem. Essa natureza dupla, como se pode ver, pela citação de alguns autores, abrange tanto a agressividade, expressa sob a forma de violência, como a cooperação, que sistematizou organizações tribais, povoados, cidades e nações e, agora, pela primeira vez na história, de alguma maneira, estende-se por todo o planeta.

A globalização, como este processo foi nomeado, divide muitos pensadores e, para uma parte significativa deles, é a raiz contemporânea de uma nova forma de violência. Um único centro hegemônico, os Estados Unidos, controla a máquina do mundo orientado pela lógica da acumulação de riquezas, o que pressupõe a existência de um poderoso aparato militar. Onde a lógica não puder ser imposta pela pressão diplomática, pela força do mercado, será assegurada pela boca fumegante dos canhões.

Historiadores portugueses, entre eles Vitorino Magalhães Godinho, não se surpreendem com essa nova ordem que começou a ser montada ainda no século 15, quando Portugal iniciou o processo de globalização com as viagens de descobrimento. A conexão dos mercados, a interação rápida das culturas, a descoberta, na Europa, de criaturas tão estranhas como o équidna e o ornitorrinco, mamíferos que nascem de ovos, reminiscência dos dinossauros, tudo isso surpreendeu a humanidade confinada na Europa, ainda que ela não fosse todo o mundo. Quando os cristãos se debatiam com a teologia dogmática, os árabes traziam, em suas arcas, a memória do passado clássico e ofereceram esse conhecimento, ampliado na matemática, medicina, astronomia e na química, além da literatura, para a construção do que hoje se chama de Ocidente.

A percepção dos historiadores portugueses é de que uma fase da globalização, não se sabe até onde ou quando, será marcada pela xenofobia, o esforço desesperado de cada cultura em preservar seus valores. Os ataques a redes de fast-food, na França, são uma evidência dessa reação que, com repressão policial, transborda para a violência.

O fatiamento do mercado planetário é uma fonte de disputa seguida de perto pela violência. Uma nova distribuição mundial do trabalho tira partido dos desníveis econômicos e, ao mesmo tempo, o que é fonte de felicidade para poucos, é, em muitos casos, a única alternativa para uma maioria. O Vietnã é só um dos países que, neste momento, oferecem mão-de-obra a preços irrisórios às empresas originárias dos Estados Unidos.

A manipulação da máquina do mundo, movida por uma lógica material que não considera a natureza humana, é uma fonte de desajustes em toda parte. Não é um processo novo, mas a ampliação de uma característica já existente. No rastro dessa manipulação, como na esteira de um navio, emerge um redemoinho de descontentamentos expresso pela violência: desemprego, desestruturação familiar, consumo de drogas, corrupção e perda de auto-estima. Claro está que essa é uma forma de expressão contemporânea da violência. O caminho que a agressividade, não sublimada pelo bem-estar, encontrou para manifestar-se. Não pode ser vista como toda a expressão da violência pois, neste caso, teríamos que percorrer toda a história e ainda seria pouco. O homem é mais antigo que a história, o registro de seus feitos no mundo.

Joseph Campbell, no diálogo memorável que nos legou com Bill Moyers em O Poder do Mito, diz que a violência nas grandes cidades existe porque os mitos foram embora. Campbell fala, evidentemente, pela linguagem alegórica, a expressão típica dos mitos e nos alerta para a perda de valores humanos, entre eles o sentido de mundo, a razão de existir. Certamente não existimos para acumular moedas de ouro.

O universo não tem um centro, dizem os cosmólogos, mas as questões que demandam entendimento e inteligibilidade, de alguma forma sugerem um centro. Neste caso, a violência contemporânea parece originar-se de um núcleo associado à globalização com valores impostos de forma única a culturas múltiplas. Certamente não é apenas coincidência que o centro hegemônico neste processo de globalização, os Estados Unidos, estejam se enfrentando, em armas, com uma cultura tribal, como o Afeganistão. As explicações para isso são quase infinitas, mas o fato é este: uma comunidade tribal desafia, com seus guerreiros suicidas, uma outra, aparentemente lógica e coerente.

Também isso não é novo. Quando os espanhóis chegaram ao México, estranharam que os indígenas oferecessem seus próprios filhos a seus deuses e viram nisso prova de um primitivismo grotesco. Alguém lembrou-lhes, no entanto, que o problema era deles, espanhóis, que não confiavam nada em seus deuses e por isso lhes recusavam sacrifícios tão caros quanto os filhos.

Frank Drake, buscador de vida entre outras estrelas, escreveu uma equação para tentar mensurar quantas inteligências podem habitar a Galáxia. Num certo momento, relacionado à auto-destruição, as probabilidades são, abruptamente, reduzidas à metade. É uma arbitrariedade estatística, uma mera projeção de como vemos a nós próprios. Mas talvez esteja projetada aí a natureza dupla do homem, abrigando amor e ódio, numa relação hegeliana de afirmação/negação em busca de uma síntese possível.

Não sabemos como são os outros impérios, se é que existem, mas, de alguma forma, desejamos que não aprisionem, por motivos fúteis, a vida de seus povos. Se for assim, como aqui, certamente, eles também darão vazão à suas fúrias. E ela se manifestará pela forma inequívoca da violência.

 

Ulisses Capozoli, jornalista especializado em divulgação científica é mestre e doutorando em ciências pela USP e presidente da Associação Brasileira de Jornalismo científico (ABJC)

Atualizado em 10/11/2001

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