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Antonio Carlos Diegues (org).

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Etnoconservação: novos rumos para a conservação da natureza
Antonio Carlos Diegues (org).
Editora Hucitec-NUPAUB-USP, 2000

por Susana Dias

"O estudo dos saberes do Outro sobre a natureza é um exercício difícil,
que explicita melhor a transformação das relações com a natureza
da sociedade do observador,
do que a sociedade observada"
Marie Roué (p.78)

O vento da insustentabilidade sopra sobre a humanidade anunciando possíveis mudanças no clima do planeta. As nuvens que se aproximam trazem de volta à cena a discussão sobre a conservação da natureza por meio da criação de reservas naturais, porém focalizando a possibilidade de "seqüestrar o carbono" e suavizar os possíveis problemas decorrentes do efeito estufa. Vários projetos têm sido propostos desconsiderando questões relevantes sobre a conservação da natureza que são abordadas neste livro, organizado por Antonio Carlos Diegues. O livro reúne textos produzidos por antropólogos, historiadores, filósofos, cientistas políticos e naturais, de várias partes do mundo, que questionam os modelos de conservação fundamentados na ausência do ser humano, os interesses subjacentes à conservação do mundo selvagem que transformam a conservação da natureza em negócio, os princípios científicos e políticas que orientam a legislação das reservas, e a própria produção do conhecimento científico marcada durante certo tempo pela negação e exclusão do conhecimento dos povos tradicionais.

Há fortes indícios de que os modelos adotados no Brasil, e em outros países em desenvolvimento, em parte importados de países desenvolvidos que apresentam uma realidade distinta da nossa, têm fracassado inclusive no que concerne à proteção da biodiversidade. Os autores narram inúmeras situações de conflitos com as comunidades locais que foram gerados com a implantação de reservas ou parques. O pesquisador indiano Ramachandra Guha destaca que, na Índia, por exemplo, a instalação de reservas criou problemas para as comunidades mais pobres como a falta de água, pastagens e combustíveis resultando em um empobrecimento da população e, inclusive, intensificando a degradação ambiental.

Em grande parte esses conflitos estão relacionados ao modelo dominante de conservação que parte do princípio que a natureza para ser conservada deve estar separada das sociedades humanas. Nessa perspectiva qualquer intervenção humana é essencialmente negativa e prejudicial à conservação do mundo natural. Segundo Guha, entre os que defendem este modelo estão principalmente os habitantes das cidades, ONGs ambientalistas, elites governamentais e cientistas naturais, que apresentam objetivos os mais diversos - lazer, turismo, educação, conservação para a posteridade, preservação da biodiversidade - e que unem-se pela hostilidade às comunidades que habitavam, e habitam, as reservas, considerando-as as grandes responsáveis por efeitos como desaparecimento de espécies, erosão dos solos e desmatamentos. A idéia de criar parques para tigres na Índia, por exemplo, veio de uma elite de ex-caçadores e agências conservacionistas como a WWF.

Porém, vários estudos mostram que as populações tradicionais apresentam formas de relação com a natureza que garantem de forma eficaz sua conservação. Stephan Schwartzaman apresenta em seu artigo alguns exemplos, entre eles o sucesso das reservas extrativistas na Amazônia que resultou de uma pressão do Conselho Nacional dos Seringueiros, uma organização criada por Chico Mendes, sobre o governo para que o subsídio à borracha fosse feito em bases sociais e ecológicas. Diegues, que também explorou esta questão no livro O Mito Moderno da Natureza Intocada, ressalta que quando se fala em modelos importados não está se referindo apenas à aspectos estruturais dos parques e reservas, mas também à própria forma de pensar a relação do ser humano com a natureza. O autor destaca que há uma grande resistência das instituições governamentais em começar a avaliar seus próprios modelos de conservação do mundo natural apesar dos inúmeros estudos já realizados.

Os novos rumos para a conservação são marcados por uma mudança de postura diante do conhecimento e práticas das comunidades locais. A valorização dos saberes de caiçaras, camponeses, índios, passa por uma revisão da própria comunidade científica em relação à imagem da ciência como a única que detém o poder de indicar os caminhos da conservação. Além disso, os cientistas estão buscando construir um novo cenário teórico e metodológico que possa compreender as comunidades locais o mais próximo possível da lógica delas. Para essas comunidades a natureza é o lugar onde vivem, herdado dos antepassados e sujeito a transformações decorrentes de ações humanas e sobrenaturais. Esta visão não carrega a dualidade cultura-natureza que influenciou várias linhas de pensamento conservacionistas.

O diálogo entre o conhecimento científico e o conhecimento dos povos tradicionais aparece como um elemento essencial para a produção de novos conhecimentos e transformação das práticas científicas e políticas de conservação. Como comenta Diegues, ao contrário do que pensam alguns conservacionistas, trata-se muito mais de administrar visões e interesses humanos, muitas vezes opostos, do que manejar processos naturais. Porém, o diálogo entre conhecimentos pressupõe diálogo entre seres humanos, e o reconhecimento de que estas comunidades tradicionais apresentam peculiaridades em sua forma de ver o mundo e manifestá-lo na linguagem. A personificação da natureza, ou seja, a atribuição de características ditas humanas a elementos como o mar, vento, plantas, faz parte da forma como muitas comunidades produzem sentidos, conhecimentos, sobre a natureza, e interferem na forma como se relacionam com ela, como mostra esta bela passagem descrita pelo pesquisador espanhol Antonio García Allut:

"Os pescadores buscam o semblante e olham para o onde ele corre,
os traços que tem, a densidade, o tamanho, e a forma das nuvens,
ou como o vento joga com elas (...). Cada vento tem suas características únicas:
o vento Norte: 'é um vento frio, escravo e brabo'. O vento sul: 'é amoroso', quer dizer suave,
quente, acompanhado de orvalho (chuva fina). O vento leste, em geral faz marolas no mar e o vento oeste 'nunca é amoroso por mais moderado que se apresente'. O vento de noroeste pode fazer confusão durante o dia e 'vai morrendo de noitinha'".
Antonio García Allut (pp. 107-108)


Mais do que uma antologia que contesta os vários princípios da conservação da natureza, este livro convida a pensar sobre a produção do conhecimento pelos cientistas e por comunidades tradicionais, as interações entre estes diferentes conhecimentos e os conflitos que deles decorrem. Além disso, traz possibilidades de refletirmos sobre o papel da ciência em relação à conservação da natureza, na medida em que o conhecimento científico tem autorizado a adoção de práticas de conservação que não estão alcançando os objetivos propostos.

Atualizado em 10/08/02
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2002
SBPC/Labjor

Brasil