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É preciso sobreviver sem surtar

Por Hamilton Octavio de Souza

Ilustração de Céllus Marcello Monteiro instagram celluscartum twitter @Cllus1 

Além de sofrer a ameaça fatal da pandemia, o brasileiro é vítima da irresponsabilidade de autoridades e da mais danosa degradação institucional. Só vai atravessar a difícil e tormentosa jornada da pandemia não apenas quem não for aleatoriamente colhido pelo vírus, não apenas quem souber se cuidar com total respeito e carinho pela vida, mas, também quem conseguir temperar as energias físicas e mentais sem ser consumido pelas pesadas cargas emocionais e psicológicas emanadas por realidade incontrolável e pelas forças tradicionais que exploram a nossa sociedade. Decididamente só vai sobreviver mesmo, em condições de atuar no presente e no futuro, quem não surtar durante todo esse período de brutal instabilidade e caótica transformação.

O estrago da pandemia do novo coronavírus é imensurável. Desestrutura a construção secular das relações sociais, culturais, políticas e econômicas. Exige novos formatos na atuação política, na luta de classes, na organização do trabalho, na dimensão física e espiritual da existência e na perspectiva do futuro.

Tudo foi praticamente reduzido a pó diante da verdadeira realidade colocada por um vírus ainda desconhecido, que ataca indistintamente e que apresenta o mais direto e cruel dilema sobre a imediata sobrevivência de todo ser humano. O duelo inescapável com a morte é colocado na iminência do aqui e agora.

Não bastasse o desafio de tamanha ameaça fatal, que foge ao campo do domínio humano, que está ainda fora do conhecimento acumulado nas mais diferentes áreas, que dissemina a doença que dribla a ciência e a prepotência da humanidade, temos a enfrentar também – por conta da política e da economia e, especialmente dos sistemas geradores de todas as desigualdades – os mais cruéis e mesquinhos jogos dos interesses dominantes na face da Terra. As potências mundiais não dão trégua enquanto o vírus genocida mata aos milhares nas várias regiões do Planeta.

Aqui no Brasil entramos no universo globalizado  da peste com inúmeras desvantagens, entre as quais podemos destacar o histórico descompromisso das elites com a sorte e o destino da Nação; a deliberada deseducação de amplos e massivos segmentos da sociedade; a brutal desigualdade social e econômica; o total despreparo do conhecimento científico e a enorme dependência técnica e produtiva; a precária estrutura do saneamento básico e do tratamento da saúde; a ausência de direitos universais básicos; a democracia de fachada que sustenta a eterna dicotomia entre a grande maioria de despossuídos e a ínfima minoria de privilegiados.

Pior ainda: entramos na pandemia no momento em que o País atravessa a mais profunda crise institucional, na fase de maior degradação do período de esforço de construção democrática após os terríveis anos da Ditadura Militar (1964-1985). Tivemos o impeachment de dois presidentes eleitos diretamente. Os vários escândalos de corrupção e a visão patrimonialista desgastaram a política, o empresariado e o alto funcionalismo público. Os partidos políticos perderam os programas, os princípios éticos e a credibilidade do povo. O Estado concebido pela Constituição de 1988 não consegue funcionar: o Legislativo perdeu representatividade a cada eleição e é dominado por maioria fisiológica e reacionária; o Judiciário perdeu capacidade de atuação estrutural e foi capturado pelo show de vaidades do STF, que flutua em todas as causas e posições conforme interesses corporativos e pessoais; e o Executivo está entregue ao mais escroto populismo de todos os matizes que passaram pelo Planalto.

Enfim, o povo brasileiro enfrenta a mais terrível e fatal pandemia que atingiu o País em 100 anos, desde a gripe espanhola (1918-1920), sem poder contar com o mínimo de responsabilidade da parte do Estado. Estamos no meio do genocídio provocado pelo vírus com a gravidade do esgarçamento das instituições.

Não existe o compromisso claro das principais lideranças com a preservação da vida das pessoas, em primeiro lugar, de maneira a reduzir o dano humano e a construir um futuro melhor para todos, que seja com a redução das desigualdades e a eliminação da fome e da miséria.

A guerra mesquinha e rasteira de personalidades públicas multiplica a tensão sobre a população, gera mais insegurança e a falta de perspectivas. Além do medo do vírus, que é geral em vários países, aqui precisamos suportar e superar a tragédia diária representada publicamente pelos dirigentes da Nação.

O país necessita urgentemente de instituições sem vícios e equívocos, de novos caminhos, novos instrumentos de luta e de novas lideranças nos vários campos de atividade. Precisamos nos confrontar com a verdade, desapegar, inovar, criar, transformar, virar a página de todos os engodos do passado.

Uma coisa é certa: só vai atravessar a difícil e tormentosa jornada da pandemia não apenas quem não for aleatoriamente colhido pelo vírus, não apenas quem souber se cuidar com total respeito e carinho pela vida, mas, também quem conseguir temperar as energias físicas e mentais sem ser consumido pelas pesadas cargas emocionais e psicológicas emanadas por realidade incontrolável e pelas forças tradicionais que atuam e exploram a nossa sociedade. Decididamente só vai sobreviver mesmo, em condições de atuar no presente e no futuro, quem não surtar durante todo esse período de brutal instabilidade e caótica transformação.

O desafio é não surtar diante do agravamento das contradições, diante dos desatinos, diante de toda selvageria que brota da natureza mais animalesca do ser humano, diante das mais insanas provocações e demonstrações da mediocridade da espécie. A regra é não surtar diante do verdadeiro circo de horrores que o Brasil é capaz de produzir numa situação de guerra sangrenta nos escombros da velha civilização. A regra é não surtar diante de toda a insanidade que somos obrigados a ver, ler e ouvir, especialmente o que parte do mais alto cargo da República.

O que importa é não se deixar distrair pelo palhaço de plantão, é manter o foco na sobrevivência, não surtar e reunir boas energias físicas e mentais para tecer o mundo bem diferente e bem melhor que o atual. A disputa do amanhã começa agora. Quem viver, com a cabeça no lugar, poderá construir a história que virá.

Hamilton Octavio de Souza é jornalista. Trabalhou no Estadão, revista Sem Terra, Brasil de Fato e foi diretor da revista Caros Amigos. É professor da PUC-SP e diretor da Apropuc.