Genômica abre novas frentes de pesquisa básica ou aplicada em agricultura, evolução biológica, conservação e medicina

Por Adriane Pinto Wasko e Vinícius Nunes Alves

[Imagem: Cariótipo (organização dos cromossomos) de Apareidon sp., uma das espécies de peixes estudadas no projeto coordenado por Cesar Martins, geneticista do Instituto da Unesp de Botucatu (SP). Crédito: Jordana Oliveira e Marcelo Ricardo Vicari]

No Brasil, o último relatório de avaliação da pesquisa científica realizado pela empresa Clarivate Analytics (2018) indicou que a genômica é uma das áreas que mais crescem em publicações científicas em um dos mais reconhecidos indexadores de revistas internacionais, o Web of Science. Seja em agricultura, conservação biológica ou medicina, diversas vertentes da genômica têm desafiado geneticistas e biólogos moleculares em suas pesquisas. Mas isso não significa que os avanços nessa área cheguem até a sociedade brasileira.

Apenas parte dessa produção é bastante divulgada, compreensível e vira notícia de interesse amplo, como o sequenciamento do novo coronavírus, feito em apenas 48 horas por pesquisadores da Universidade de São Paulo, do Instituto Adolfo Lutz e da Universidade de Oxford. E o estudo ou a manipulação de genomas está relacionado a  questões polêmicas que pedem aos cidadãos ativos posicionamento crítico. Assim, na genômica, a pesquisa e a comunicação representam duas fronteiras que ainda precisam ser aproximadas.

Genômica na agricultura tropical convencional
Na genética vegetal, a genômica é atualmente uma linha com grande destaque. Suas técnicas avançaram nos últimos 30 anos, buscando o melhoramento genético de plantas com interesse agronômico. Segundo Ana Cristina Brasileiro, pesquisadora da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, de Brasília (DF), “todo esse avanço nas técnicas contribuiu muito para os estudos de genômica de plantas, um campo que permite melhor entender a estrutura ou a expressão do genoma para desenvolver ferramentas que vão ajudar no melhoramento das plantas”. As plantas cultivadas estão sujeitas a estresses como seca, salinidade ou ataque de patógenos – muitas vezes um tipo de verme conhecido como nematóide – que causam doença.

Ana Cristina trabalha com o melhoramento genético de variedades de soja e algodão, caracterizando seus genomas e testando ferramentas biotecnológicas que podem aumentar sua resistência a estresses como esses. “A partir de estudos de genômica estrutural, funcional e comparativa, genes são caracterizados e isolados da planta doadora e manipulados por meio de técnicas de recombinação gênica e, então, buscamos modificar alguma característica pré-existente para que as plantas sejam mais resistentes”, esclarece. Em culturas dominadas por nematóides, a pesquisadora conta que é preciso caracterizar e isolar tanto os genes da planta atacada quanto os genes do nematóide que, introduzidos nessas plantas, podem estimular certa resistência.

Porém, o melhoramento genético levanta polêmicas. Em 2018, o jornal Folha de S.Paulo noticiou um estudo de melhoramento genético em que o algodão transgênico Bt se tornou mais tolerante aos ataques de herbívoros, podendo diminuir o uso de agrotóxicos, mas, com o tempo, acabou estimulando o surgimento de um herbívoro mais forte, capaz de atacar a planta e resistir ao agrotóxico usado. Assim, o uso de transgênicos para diminuir a quantidade de agrotóxicos ainda é controverso, mas Ana Cristina pondera que a transgenia busca a diminuição de ataques de herbívoros e, quando há sucesso, resulta em redução de agrotóxicos e menor custo de produção para o agricultor convencional. “Nosso objetivo é produzir de maneira mais sustentável os alimentos para nossa população, com o menor dano para o meio ambiente e com maior produtividade”, enfatiza a pesquisadora da Embrapa.

Genômica nos estudos cromossômicos e evolutivos
A genômica também está associada à citogenética, área que investiga estrutura e função dos cromossomos. Atualmente, um grande projeto temático da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) com pesquisadores brasileiros e estrangeiros é o “Cromossomos sexuais, cromossomos B e seus enigmas: sistemas modelo para estudos de evolução cromossômica e genômica”. Segundo Cesar Martins, geneticista coordenador do projeto e  docente do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu (SP), “a pesquisa está baseada em polimorfismos [variações] dos cromossomos. As espécies e seus organismos possuem um genoma muito dinâmico, o DNA sofre mutações e isso reflete nos cromossomos. Essas variações permitem a formação de novas espécies ao longo do tempo que carregam características genéticas diferentes e que levam a toda essa diversidade de seres vivos”. Algumas dessas variações intrigantes que o temático investiga são os polimorfismos dos cromossomos sexuais, associados à determinação do sexo e à reprodução sexuada – características fundamentais de muitos seres vivos, e dos cromossomos B, que representam elementos genômicos extras pouco compreendidos, não fazendo parte dos cromossomos regulares chamados de A.

Para  Cesar, um diferencial do projeto é utilizar modelos biológicos para compreender a organização e dinâmica dos cromossomos, principalmente os sexuais que apresentam material genético pouco conservado e em intensa dinâmica evolutiva, como observado em insetos e peixes. Outro diferencial é compreender a intersecção entre cromossomos sexuais e B utilizando uma espécie de roedor que tem cromossomos XY, característicos dos machos dos mamíferos, que compartilham genoma com um cromossomo B. Os resultados do projeto têm mostrado que os cromossomos B carregam muito material genético e, portanto, não poderiam representar só um parasitismo para célula, podendo ter algum valor adaptativo. Além disso, espécies evolutivamente distantes compartilham, em seus cromossomos B, genes com função em comum. “Independentemente se é um gafanhoto, um peixe ou um roedor, já conseguimos identificar alguns tipos de sequências de genes que se repetem”, pontua o geneticista.

Genômica na genética da conservação
Pesquisadores que atualmente trabalham com genética na conservação da biodiversidade também vêm utilizando dados genômicos de espécies ameaçadas de extinção, como arara-azul, onça-pintada e alguns tubarões-martelo. Estudar a distribuição geográfica e a adaptação local ou regional de características genéticas de uma espécie ameaçada no oceano, como esses tubarões, pode ser vantajoso para obter mapas imensos e com menos interferências. “Com as tecnologias computacionais e os dados genômicos, as delimitações são mais difusas quando comparadas aos estudos de espécies terrestres que têm sua distribuição moldada por rios, cadeias de montanhas, áreas de paisagens distintas ou já alteradas por nós”, comenta o biólogo Fernando Mendonça, pesquisador do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Fernando estima a diversidade genética de algumas espécies de tubarões ameaçadas pela pesca indiscriminada, como o tubarão-martelo Sphyrna zygaena, com populações que já declinaram 90% em diversas regiões e, com isso, parte da variabilidade genética provavelmente foi perdida.

Tubarão-martelo / Pixabay

Fernando publicou em 2019 um artigo na revista Aquatic Conservation Marine and Freshwater Ecosystems em que conclui com outros pesquisadores que o DNA genômico de diferentes populações de tubarão têm características genéticas típicas de cada região e que o arquipélago de Fernando de Noronha é uma área prioritária para população do tubarão-tigre. “É como se 90% dos tubarões-tigre tivessem olhos verdes no Brasil, olhos castanhos no Caribe e olhos azuis nos EUA. Nossa surpresa foi encontrar todas essas características reunidas no Arquipélago de Fernando de Noronha, vindas de regiões tão distantes. Essa descoberta revela que os tubarões-tigre usualmente migram de suas áreas de origem e se encontram em Fernando de Noronha, seja para alimentação, reprodução ou apenas de passagem”, explica o pesquisador. Resultados como esses, acerca da diversidade genética e estruturação populacional de espécies ameaçadas de extinção, têm levado grupos de pesquisa brasileiros a iniciar estudos em genômica com o objetivo de obter dados em larga escala. Tais estudos podem identificar alelos adaptativos para correlacioná-los ao processo evolutivo e padrões de acasalamento das espécies e, assim, gerar informações que possam melhor subsidiar decisões conservacionistas.

Contribuição da genômica para caracterização genética da população humana e saúde pública
Recentemente, grandes mídias deram cobertura para o projeto DNA do Brasil que envolve pesquisadores da USP, o Ministério da Saúde, empresas privadas de saúde como a Dasa e até a plataforma de dados do Google Cloud. O objetivo geral do projeto, em médio e longo prazo, é mapear os genes de milhares de brasileiros para prever e tratar doenças. Já existem alguns estudos dessa natureza, mas nenhum com a população brasileira que tem grupos altamente miscigenados, com mistura genética de origens africana, indígena e europeia ao mesmo tempo. Lygia da Veiga Pereira, docente chefe do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da USP e pesquisadora coordenadora do projeto DNA do Brasil explica que “cada par de ser humano é 99,9% idêntico em relação ao seu genoma. Esse 0,1% das diferentes letras entre os genomas de uma pessoa e o de outra é que são responsáveis pelas nossas características individuais”. As letras constituem as bases nitrogenadas das moléculas de DNA e, assim, quando é sequenciado o genoma de muitas pessoas ao mesmo tempo, é possível predizer informações da saúde dos indivíduos. Mais especificamente, Lygia afirma que “poderemos descobrir quais são os genes e suas variações que são responsáveis pelas pessoas terem maior predisposição a desenvolver Alzheimer, hipertensão, diabetes e outras doenças”.

Com toda essa amostragem do perfil genético da população brasileira, será possível identificar quais são as letras (bases) no genoma que costumam responder melhor a um medicamento do que a outro, acrescenta a pesquisadora. Todas essas informações genéticas são pessoais e muito sensíveis e o Brasil ainda não possui uma legislação específica que protege o sigilo das informações genéticas das pessoas, como nos EUA. Entretanto, Lygia ressalta que “o projeto está passando por todo o caminho de aprovação na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), em termos de consentimento que deixe claro quais são os benefícios e quais são os riscos de esses indivíduos participarem das pesquisas”. Até o combate da pandemia do novo coronavírus poderia ser ajudado com esse tipo de banco de dados. No Brasil, há desde indivíduos que não desenvolvem nenhum sintoma da doença até indivíduos que são imunologicamente nocauteados pelo vírus e, provavelmente, o perfil genético da população tem uma influência nisso.

Estudos já vêm sendo conduzidos no país visando identificar diferenças no DNA que possam estar associadas a uma maior ou menor predisposição a sintomas mais graves da Covid-19. Estas análises, realizadas por meio da Rede Genômica composta por pesquisadores de diferentes universidades e institutos de pesquisa do país e coordenado pelo Instituto de Pesquisa para o Câncer (IEPC), demonstram o grande potencial e importância das pesquisas genômicas de ponta e em larga escala.

Adriane Pinto Wasko é bióloga pela UFSCar, mestre e doutora em Genética e Evolução pela UFSCar e pós-doutora pela Unesp. É docente do Instituto de Biociências de Botucatu (IBB) , na Unesp, desenvolve projetos de pesquisa voltados à conservação de espécies de aves ameaçadas de extinção e, também, coordena a Agência de Divulgação Científica e Comunicação (AgDC) do IBB.

Vinícius Nunes Alves é biólogo pela Unesp (Botucatu) com mestrado em ecologia e conservação de recursos naturais pela UFU. Atualmente é pós-graduando no curso de especialização em jornalismo científico da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e colunista do jornal Notícias Botucatu.