Ideia de tradução definitiva é tão fetichista quanto a de gravação musical final

Por Irineu Franco Perpetuo

Cada geração, cada cultura e cada país relê, reescreve e retraduz a seu modo as obras de arte que encara como clássicas – e que adquirem tal status justamente por sua capacidade de superar as circunstâncias locais e temporais. Uma nova tradução traz as marcas de sua época, com escolhas que refletem prioridades e preocupações de quando e onde foi feita. Na sábia formulação de Boris Schnaiderman [na foto acima], a tradução não é uma mera operação linguística: “para traduzir, fazemos transposição de um texto para uma outra cultura”.

Há tradutores que funcionam em simbiose com a academia, cujo trabalho é fruto de anos de pesquisa aprofundada e reflexão a respeito de um tema que eles mesmos escolheram, e no qual se aprofundaram como poucos. Suas traduções costumam ser publicadas após anos de pesquisa apurada, tendo passado pelo crivo de uma banca erudita e rigorosa.

E há os tradutores que trabalham por encomenda, ao sabor do mercado, premidos por prazos industriais e vicissitudes cotidianas. Pertenço a esse segundo grupo. Além disso, para piorar, não estudei nada relacionado à tradução ou  à teoria literária. Frequentei os bancos de uma faculdade de comunicação, e moldei minha escrita profissional nas redações de jornais (que, se a memória não estiver a me trair, Balzac mui adequadamente chama de “lupanares do pensamento” em As ilusões perdidas – tradução de Ernesto Pelanda e Mário Quintana) antes que editores com muito mais generosidade do que juízo me convidassem a verter para o português clássicos da literatura russa. Durante anos, não lera mais do que um opúsculo chamado A tradução vivida (Rio de Janeiro: Educom, 1976), de Paulo Rónai, além de artigos e entrevistas que o incansável Boris Schnaiderman publicava com regularidade. Isso não justifica minha falta de formação teórica, mas o fato é que, em vez de ler os livros teóricos que certamente teriam me poupado muita dor de cabeça e esclarecido as ideias, tentei aprender lendo as traduções de Boris e seus discípulos, que acabaram moldando o padrão que, de forma mais ou menos consciente, venho tentando seguir nas minhas.

O pintor inglês John Constable dizia que quem aprendeu consigo mesmo teve o mais ignorante dos mestres, e não me orgulho nem um pouco das lacunas gigantescas e irremediáveis de minha formação. Se as coloco aqui, é apenas para ser honesto com o leitor. Não tenho condições ou pretensões de realizar uma longa e aprofundada reflexão teórica sobre tradução. O máximo que conseguirei será enfileirar uns palpites ditados pela experiência.

E me parece que, quando se discutem questões de tradução por aqui, nós, da russística, costumamos ser chamados a opinar com frequência. Talvez seja simplesmente por sabermos vender nosso peixe. Afinal, nosso “pai fundador”, o nunca suficientemente louvado Boris Schnaiderman, sabia aliar, de forma inigualável, rigor intelectual, produção de primeira linha, atuação acadêmica e publicística, escrevendo na imprensa com regularidade. Aurora Fornoni Bernardini, sua discípula dileta, foi pela mesma linha, também equilibrando, com o padrão mais elevado, as exigências da academia com a atividade jornalística. E nomes de destaque como Paulo Bezerra e Rubens Figueiredo também são chamados com regularidade a ocupar espaços na imprensa.

Outro fator talvez seja a privilegiada inserção da literatura russa na cultura brasileira – completamente assimétrica quanto à penetração de nossa literatura na produção da Rússia, e também desproporcional com relação à escassa presença de imigrantes ou descendentes de russos em nossa sociedade.

Para um descendente de italianos, que estudou o idioma no colégio e vive em uma cidade que reivindica preparar uma pizza melhor do que a da pátria-mãe, a comparação com os russos parece uma gangorra. A grande presença de oriundi, por aqui, não nos garante um conhecimento mais do que superficial da literatura italiana, enquanto a reputação dos eslavos também é inversamente proporcional à quantidade de descendentes, mas no sentido contrário: pessoas que nunca provaram kvas ou borche, nem entraram em uma dacha, debatem com profundidade e conhecimento de causa as glórias da literatura da terra de Dostoiévski e Tolstói e, dentre os tradutores e professores universitários de russo, abundam sobrenomes latinos. Como, digamos, o cinema norte-americano e a música pop britânica, a literatura russa parece nos pertencer tanto quanto a seu país de origem.

Bruno Barretto Gomide vem contando, em suas pesquisas e livros, a história da penetração das letras cirílicas no Brasil, do final do século XIX até hoje, e identificando as diversas “febres de eslavismo”, cuja temperatura parece se recusar a baixar.

E o debate da tradução tem sido especialmente premente na russística porque, durante décadas, a difusão da literatura russa no Brasil dependeu quase que exclusivamente de traduções indiretas. E, aí, as vilãs são as famigeradas traduções francesas.

Não se trata, aqui, de crucificar traduções indiretas em geral. Boa parte do prestígio e do conhecimento dos autores russos em nosso país deve-se a traduções indiretas, não raro feitas por escritores de renome, dotados de senso de estilo e conhecedores de seu ofício. Eu mesmo só fui me familiarizar com esse universo após ler traduções indiretas de obras-primas como Os irmãos Karamázov e Anna Kariênina. Tampouco se devem execrar as modernas traduções francesas, realizadas com rigor e apuro.

O problema é que, no final do século XIX e começo do século XX, sua qualidade variava, com uma gama que “ia do aceitável à mutilação”, como descreve Gomide: “Halpérine-Kaminsky elaborou, por sua conta, um novo final para Os irmãos Karamázov. A lenda do Grande Inquisidor ficou irreconhecível. E os pedaços excluídos do romance viraram, milagrosamente, uma ‘outra’ obra de Dostoiévski, Les précoces”.[1]

Assim ele resume as principais mudanças que os tradutores/traidores daquela época faziam nos livros russos: “1) quebra e redução de parágrafos: períodos mais extensos são fragmentados em diálogos curtos. A alteração é mais problemática nas extensas explanações filosóficas e metafísicas e nas exasperações da consciência das personagens; 2) nivelamento da linguagem: perde-se o complexo jogo entre cômico, melodramático e trágico – a alternância vertiginosa de gêneros presente em Dostoiévski fica reduzida a um registro sentimental; 3) adições de texto, às vezes capítulos inteiros; 4) mudança de léxico para termos mais suaves; 5) manutenção de algumas expressões típicas em russo para dar cor local”.[2]

Uma empreitada pioneira de tradução direta foi a do imigrante russo Georges Selzoff (Iúri Zéltzov), cuja Edição Cultura publicou, entre 1930 e 1932, uma Bibliotheca de Auctores Russos, com 12 títulos vertidos do original[3]. Louvável, o esforço de Selzoff infelizmente revelou-se efêmero. No pós-guerra, revelaram-se mais sustentáveis as iniciativas de outros dois emigrados: o já citado Boris Schnaiderman e a não suficientemente valorizada Tatiana Belinky. Costuma-se considerar a tradução de Crime e castigo, de Paulo Bezerra, publicada pela Editora 34 em 2001, como o “marco zero” de um momento em que a tradução direta parece ter se firmado de forma definitiva no mercado brasileiro, com a proliferação de tradutores e de editoras interessadas em literatura russa.

Como se vê, a história da tradução direta de literatura russa no Brasil é ainda relativamente recente, e a isso talvez devamos creditar as discussões com que vez por outra ainda nos deparamos, sobre a legitimidade, necessidade, pertinência ou até mesmo “utilidade” de novas traduções de obras já anteriormente traduzidas. Para mim, que tenho ligação antiga com a música de concerto, a ideia de uma tradução “definitiva” parece tão fetichista quanto a de uma gravação “definitiva”. Cada geração, cada cultura e cada país relê, reescreve e retraduz a seu modo as obras de arte que encara como clássicas – e que adquirem tal status justamente por sua capacidade de superarem as circunstâncias locais e temporais, e serem reapropriadas e reinterpretadas em contextos e épocas distantes daqueles em que foram produzidas. Sim, só há um Guerra e paz, de Tolstói, como só há um Édipo rei, de Sófocles, ou só uma Nona Sinfonia, de Beethoven. Porém, o número de interpretações dessas obras tende ao infinito. Uma nova tradução traz as marcas de sua época, com escolhas que refletem o modo de pensar, as preferências, prioridades e preocupações de quando e onde foi feita. Não se trata da obra em si, mas uma de suas inúmeras leituras possíveis.

O ideal, obviamente, seria que todo mundo pudesse ler o que bem entende na língua original – a Bíblia em aramaico, Homero em grego antigo, o Livro das mil e uma noites em árabe. Não é impossível que, com o acelerado desenvolvimento tecnológico, um algoritmo sofisticado venha a possibilitar que isso aconteça em um futuro não muito distante. Enquanto essa utopia ou distopia não se concretizar, continuaremos necessitando desse atravessador que compra caqui na zona rural para revendê-lo no perímetro urbano, sabendo que algumas frutas vão se machucar ou estragar no processo, mas que, de outra forma, não poderemos ter acesso ao seu sabor. Pois, na sábia formulação de Boris Schnaiderman, a tradução não é uma mera operação linguística: “para traduzir, fazemos transposição de um texto para uma outra cultura”[4].

Irineu Franco Perpétuo traduziu diretamente do russo obras como Pequenas tragédias e Boris Godunov, de Alexandre Pushkin, Os dias dos Turbin e O mestre e margarida, de Mikhail Bulgákov, A estrada e Vida e destino, de Vasily Grossman, Notas do subterrâneo de Fiódor Dostoievski e A morte de Ivan Ilitch de Liev Tolstói. Formado em jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, é autor de Populares & Eruditos (em parceria com Alexandre Pavan) e História concisa da música clássica brasileira, entre outros livros. Foi o editor convidado do dossiê Música da revista ComCiência (março de 2018).

[1] Gomide, B. B.. Da estepe à caatinga: o romance russo no Brasil (1887-1936). São Paulo: Edusp, 2011, p. 118.

[2] Gomide, B. B.. Da estepe à caatinga: o romance russo no Brasil (1887-1936). São Paulo: Edusp, 2011, p. 121.

[3] Bottmann, D.. “Georges Selzoff, uma crônica”. Rio de Janeiro: PUC-Rio, Tradução em Revista 14, 2013/1; p. 208.

[4] Schnaiderman, B.. Tradução, ato desmedido. São Paulo: Perspectiva, 2011, pg. 28.