José Paulo Florenzano: “Chegou a hora de reconhecer que a riqueza do futebol brasileiro, a sua inventividade, também se dá no campo político”.

Por Samuel Ribeiro dos Santos Neto

O que democracia tem a ver com futebol? Quem responde é José Paulo Florenzano, professor do Departamento de Antropologia da PUC São Paulo e pesquisador do futebol. Em sua carreira, navegou entre a antropologia urbana, a sociologia do esporte e a história política para entender melhor o futebol na cultura nacional. Escreveu o livro A democracia corinthiana: práticas de liberdade no futebol brasileiro, fruto de quase uma década de trabalho.

A obra analisa o movimento que mudou a gestão do Corinthians entre 1981 e 1985. Liderada por jogadores como Sócrates, Wladimir e Casagrande, a democracia corinthiana foi um sistema baseado no voto igualitário entre atletas, técnicos, funcionários e diretores. Tudo se decidia coletivamente: contratações, demissões, escalação. No contexto nacional, a ditadura militar se encerrava e o Brasil caminhava para a redemocratização.

Florenzano conversou com a ComCiência sobre o tema e as perspectivas para se pensar futebol e democracia na atualidade.

Durante um jogo no início de agosto, um torcedor foi retirado do estádio Arena Corinthians e conduzido à delegacia pela PM após gritar ofensas contra o presidente Jair Bolsonaro. O Corinthians emitiu uma nota e saiu em defesa do torcedor. O que isso nos diz sobre o contexto atual do futebol?

Há um recrudescimento da intolerância em relação à manifestação política na arquibancada. Não é uma invenção do atual governo, mas obviamente o clima tem se tornado cada vez mais adverso.

Isso representa um claro mecanismo de repressão. Parte da história das organizadas no Brasil e dos Ultras na Itália, por exemplo, era esse painel antropológico em que eles transformavam a arquibancada, se manifestando, criticando, se posicionando em relação a diversos temas. Então, o que aconteceu na Arena Corinthians nesse episódio se insere numa longa sequência de repressão à livre manifestação política nas arquibancadas.

Em relação à posição do Corinthians, o clube de fato se distingue por conta dessa tradição, por essa invenção da tradição de um time do povo que cultua a democracia. Essa ideia está muito presente na torcida organizada Gaviões da Fiel, e obviamente encontra respaldo na história da democracia corinthiana.

O que foi a democracia corinthiana? Por que estudá-la?

A democracia corinthiana entra na minha linha de pesquisa porque eu havia estudado a rebeldia no mestrado, e estudar a rebeldia significa se deparar com relações de poder. Eu sempre pensei na resistência ao exercício do poder dentro do futebol, nesse processo de medicalização do atleta, na estrutura hierárquica que o coloca em condição de mero comandado numa engrenagem movida por treinadores e comissão técnica.

A democracia corinthiana foi uma experiência propositiva que ofereceu um modelo alternativo a essa estrutura hierárquica, autoritária, baseada na aplicação da ciência experimental no futebol.

A riqueza do movimento reside na interlocução que ele manteve o tempo inteiro com os movimentos que estavam atuando na sociedade brasileira. Há relação da democracia corinthiana com o novo sindicalismo no ABC paulista, com as comunidades eclesiais de base, com a produção independente em São Paulo, enfim, uma série de movimentos que possuíam como denominador comum a reivindicação da autonomia.

Você caracteriza a democracia corinthiana como uma “prática de liberdade”. O que isso significa?

A ideia da prática de liberdade é a da autoconstituição do sujeito através da reflexão crítica sobre si mesmo. É uma ética que leva à reflexão sobre as regras que se busca seguir dentro de uma atividade profissional. É uma prática construída em conjunto, orientada pelo valor ético da autonomia, e que acaba englobando e estimulando outros agentes nessa direção.

Antonio Lucio/Agência Estado (AE)

Não se trata aqui da imposição de um modelo para todo mundo, mas pensar em coletividades que sejam autônomas para decidir e traçar esse caminho. Você pode pensar sobre experiência de liberdade no futebol e em outras áreas também. Pensar, por exemplo, no campo cultural, a produção independente em São Paulo, que é um movimento guiado por cantores como Arrigo Barnabé, grupos musicais como Premeditando o Breque e Língua de Trapo, que rompem com a indústria fonográfica e buscam uma alternativa autônoma diante das estruturas de poder. Pode pensar práticas de liberdade no campo religioso, com a experiência das comunidades eclesiais de base, que também rompem com a ideia de uma estrutura hierárquica e de uma leitura religiosa dogmática, que vem de cima para baixo.

E, ainda, pode pensar práticas de liberdade no campo da saúde, com o movimento pela saúde dos moradores da Zona Leste de São Paulo, que vai desembocar na construção do SUS, um modelo extraordinário de saúde pública, universal e equitativa.

Então, são essas experiências construídas pelos coletivos, que se recusam a aplicar a ideia do autoritarismo, da hierarquia ou de uma moral a qual você deve se submeter de maneira acrítica, replicando códigos de comportamento.

Há interpretações que colocam o futebol como elemento de alienação, como “o ópio do povo”. Quais são as limitações dessas perspectivas?

Esse foi o paradigma hegemônico na academia no Brasil, sobretudo até as publicações de Roberto DaMatta, que foram um ponto de inflexão no modo de encarar o futebol. A partir daí esse paradigma do “ópio do povo” foi abandonado.

Por um lado, você tinha uma limitação desse paradigma teórico, que era ligado a uma abordagem marxista tradicional, que pré-definia o futebol como um objeto da alienação, o que dispensava a pesquisa porque a resposta já estava dada.

Por outro lado, num momento posterior houve uma perda, porque havia algo de interessante nessa primeira abordagem, que era pensar como o futebol pode, em determinadas conjunturas, ser instrumentalizado por interesses políticos.

A história mostra que era uma tentativa recorrente do poder instrumentalizar o futebol. Mas penso que é possível pensar o futebol como um campo de batalha, em sentido gramsciano, de uma trincheira que está em disputa por visões de mundo opostas, por interesses antagônicos. Então, não é algo cuja resposta é dada de antemão.

Por outro lado, há uma visão romântica do futebol como terreno de liberdade e superação das desigualdades. Como isso aparece nas pesquisas?

É interessante observar que há um movimento que leva de um extremo ao outro na academia. Primeiro há a ideia do “ópio do povo”, e depois a celebração do futebol como o reino da igualdade, democrático, que aplica regras impessoais e consagra o mérito.

Por isso a análise deve ser cuidadosa, para perceber em que circunstâncias uma experiência do futebol pode materializar uma ideia de democracia e se articular com outros movimentos que estão em curso.

É isso que ocorre no contexto da redemocratização da sociedade brasileira. Mas é necessário ter cuidado e também perceber quando e como o futebol pode ser usado por regimes autoritários, como na Itália de Mussolini e no Brasil do golpe de 1964.

Mas nem uma coisa nem outra podem ser levadas até a última consequência. A riqueza do futebol é que ele é tão contraditório e produtor de tantas significações, que escapa ao controle de qualquer projeto político, seja de direita, seja de esquerda.

Para pensar democracia e futebol no Brasil de hoje, quais são os desafios colocados?

Os desafios hoje são imensos, porque a história não é cumulativa. Quero dizer, às vezes há retrocessos, porque a sociedade é feita de correlação de forças.

No caso do futebol, você tem hoje o projeto das arenas, um modelo que coloca no auge da estrutura os valores econômicos e despolitiza o futebol. O apoliticismo é um valor hoje reproduzido dentro dessa cultura global do esporte, com a ideia de que política e esporte não andam juntos, de que são coisas antagônicas.

É um discurso que tenta camuflar o fato de que a prática do esporte é uma prática política. Se você organiza o futebol como uma empresa, você está veiculando valores de um determinado tipo de sociedade. Então, a margem de atuação autônoma dos atletas hoje, não só no futebol e não só no Brasil, me parece bastante reduzida.

Isso não significa que não possa ocorrer uma reviravolta, porque há uma tradição de luta dentro do esporte. Você pode pensar numa tradição de luta nossa, que remete à democracia corinthiana, que remete ao Afonsinho, ao Reinaldo. Nós temos uma tradição de resistência e inventividade política. Você pode pensar uma tradição muito forte e viva nos Estados Unidos, que passa pelo Muhammad Ali, pela manifestação do black power nos Jogos Olímpicos de 1968 e mais recentemente pela National Football League (NFL).

Essas manifestações no campo esportivo se alimentam dos movimentos em curso na sociedade e vice-versa. Mas hoje a correlação de forças me parece muito desfavorável, especialmente no caso do Brasil.

Há práticas de liberdade nas torcidas organizadas?

Sem dúvida. As práticas de liberdade no futebol não estão só dentro de campo, não têm só o atleta como ator importante. Essa história também se desenrola no território do torcer, nas arquibancadas, e as torcidas organizadas são parte constitutiva desse processo.

Há a própria constituição dessas torcidas, que se pensam de uma maneira independente em relação ao exercício do poder dos dirigentes, se contrapondo a eles. E também um compromisso dessas torcidas em determinados momentos com o processo de luta na sociedade, como as manifestações com faixas em favor da anistia nas arquibancadas ou a experiência da Coligay no Sul. A existência de torcidas de mulheres, cuja presença já é possível de registrar na década de 1970, também é exemplo.

Mas claro que as organizadas também são atravessadas por uma série de contradições e pressões políticas. As torcidas podem também, dependendo do contexto, sufocar essas práticas de liberdade, de uma maneira contraditória, por exemplo negando o direito de novas torcidas presentes no espaço da arquibancada.

Que problemas se colocam hoje para os pesquisadores do futebol?

Indiscutivelmente o futebol das mulheres, e acho que a última Copa do Mundo mostrou isso. É um ponto quente no mundo do futebol.

Outro ponto é o surgimento de torcidas com organização mais horizontal, com uma mobilidade crítica maior, ocupando um espaço híbrido, ao mesmo tempo nas redes sociais e no espaço físico.

A questão racial também continua mais presente do que nunca.

Finalmente, acho que no nosso caso é preciso cada vez mais pensar que o valor simbólico do futebol brasileiro não se esgota na dimensão estética, em um jogo bonito. Claro que isso ainda tem que ser objeto de estudo, mas acho que chegou a hora de reconhecermos que a riqueza do futebol brasileiro, a sua inventividade, também se dá no campo político.

Nós temos uma história política do futebol brasileiro. Futebol arte não é só futebol bonito, futebol arte é essa tradição política que nós temos.

Samuel Ribeiro dos Santos Neto é mestre em educação física pela Unicamp. Atualmente é aluno do curso de especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp.