Manaus, ainda que fluvialmente isolada do país, não conseguiu se manter longe do desastre da covid-19

Por Monique Rached

Imagem: Gabriela Romero/MsF

Manaus vive uma tragédia sanitária e humanitária. O epidemiologista Jesem Orellana, da Fiocruz Amazônia, já emitiu alguns comunicados na tentativa de evitar o aumento das mortes. No primeiro, divulgado em janeiro de 2021, intitulado “Manaus está perdida e a covid-19 explodiu”, o pesquisador clamava pela decretação imediata de um lockdown – que até hoje não aconteceu. 

No início de maio Orellana divulgou novo alerta, sob o título “Retomada da segunda onda em Manaus”, com gráficos mostrando uma interrupção na queda dos casos de síndrome respiratória aguda grave, e após duas semanas, o início da ascensão da curva. Pedia a revisão de algumas medidas recentes de afrouxamento do isolamento, como “a liberação de eventos com até 100 pessoas, o retorno ao ensino presencial em diferentes níveis educacionais e o acesso à praia da Ponta negra”.

Vale ressaltar que não é correto chamar de terceira onda este momento da pandemia vivenciado em Manaus. Não houve um padrão claro de estabilização em níveis baixos, então se trata de uma retomada da segunda onda.

“Talvez o comportamento distinto da curva epidêmica durante a segunda onda, em relação à primeira, tenha surpreendido alguns técnicos despreparados e até cientistas que alardeavam, equivocadamente, falando sobre a criminosa imunidade de rebanho pela via natural, a mesma que está sendo objeto de investigação na comissão parlamentar de inquérito (CPI da covid-19)”, relata Orellana

A retomada ou recrudescimento da segunda onda em Manaus terá um outro perfil de mortalidade devido à vacinação de grupos prioritários, em especial dos maiores de 59 anos, segundo o epidemiologista da Fiocruz.

O colapso da rede médico-hospitalar do estado resultou em taxas de mortalidade elevadas, que no fim de março e início de abril chegaram a atingir o valor de 288,9 mortes/100 mil habitantes segundo a Fundação de Vigilância em Saúde (FVS-AM).  

Um grande estudo epidemiológico desenvolvido em grande parte de forma voluntária ajudou a mapear a situação. A epidemiologista Jaila Dias Borges, professora da Universidade Federal do Amazonas, coordena o projeto batizado de DetectCov-19, no qual 3046 pessoas de Manaus são acompanhadas desde agosto de 2020. O estudo já revelou em sua primeira fase a tendência de a covid-19 ter maior incidência entre as pessoas que tomaram algum tipo de medicamento “preventivo” (os mais relatados foram ivermectina e o paracetamol). Entre aqueles que não tomaram nada, 25,9% tiveram o anticorpo IgG positivo, contra 38,6% para os que tomaram algum tipo de remédio “preventivo”, mostrando uma maior exposição ao vírus entre os que se julgam, erroneamente, “protegidos”.

O estudo tem caráter longitudinal, ou seja, pretende acompanhar esse grupo amostral ao longo do tempo. Esses resultados, com taxas de infecção maiores para pessoas que utilizaram remédios sem nenhuma comprovação de eficácia contra covid-19, se repetiram em duas outras amostragens.

Jaila relata o desafio de encarar uma pesquisa desse porte em pleno início de pandemia. A equipe do projeto contou com o trabalho voluntário de mais de 30 pessoas para realizar as coletas de sangue e testagens de anticorpos. Entre os voluntários estão professores, alunos de graduação e pós-graduação, os quais precisaram deixar de lado, por um tempo, seus próprios projetos de pesquisa para poder atuar no DetectCov-19. “De nossa ideia inicial, que não tinha recurso algum, chegamos ao projeto longitudinal com mais de 3 mil pessoas recrutadas”, conta Jaila.

Outro resultado desse estudo apontou a condição de pobreza como mais um fator de influência na incidência de casos de covid-19. Na primeira etapa da pesquisa, o segmento da população com renda maior do que seis salários mínimos apresentou taxa de 24,4% para testes de covid-19 positivo. Já entre as pessoas com renda de até três salários mínimos essa taxa foi de 35,5%.

Os pesquisadores envolvidos nesse estudo trazem para a discussão o termo sindemia, que se refere à influência do contexto social e econômico no agravamento de uma doença. Nesse caso, para controlar a pandemia na região amazônica são necessárias políticas públicas específicas voltadas para o perfil de desigualdade social.

Jaila reforça que a situação ainda está longe do controle, e as pessoas insistem em descumprir as medidas preventivas corretas. “No início do projeto não tínhamos perdido ninguém, mas agora foram 15 mortes, o que é um número altíssimo em um universo de 3000 pessoas. Estamos estudando e ao mesmo tempo vivenciando e sentindo a dor dessas pessoas”, lamenta.

A professora da UFAM também reflete sobre a ideia comum de que as comunidades tradicionais na Amazônia sejam isoladas. “Se fossem tão isoladas a covid-19 não teria feito o estrago que fez no interior do Amazonas”, diz. Para Jaila, o ambiente tinha características favoráveis para impedir o que aconteceu, uma vez que Manaus não possui sequer estradas que a conecte com outras capitais do Brasil. Porém, mesmo assim a covid-19 galgou proporções devastadoras na região, inclusive batendo recordes de mortes.

Orellana afirma em seu último comunicado que “na Índia o descontrole da epidemia também levou à morte muitas pessoas por asfixia devido ao esgotamento do oxigênio medicinal nos hospitais. No entanto, por lá esse crime bárbaro está sendo considerado como genocídio pelo Tribunal Superior Allahabad, o que também pode ocorrer no Brasil, dada a tragédia vivenciada em Manaus e em municípios do interior do estado”.

Jaila aponta que a pandemia trouxe um ritmo acelerado de acontecimentos que ainda não puderam ser estudados propriamente. No futuro, a esperança é olhar para vários dados que a pandemia trouxe e gerar novas reflexões.

O projeto DetectCov-19 tem previsão para ser finalizado em fevereiro de 2022.

Monique Rached é bióloga com especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp.