Olhar para os animais e para o meio ambiente pode evitar novos coronavírus

Por Rafael Revadam

Saúde única, como é chamada a integração entre os estudos humanos, animais e de ecossistemas, pode auxiliar no controle de futuras doenças

Criado no século XX, o conceito de saúde única (one health, em inglês) defende que políticas efetivas para a prevenção e controle de doenças só surgirão com a integração entre a saúde humana, a saúde animal e o ambiente. Quando surge um vírus como a covid-19 essa integração fica mais evidente.

“O conceito de saúde única não é novo e foi proposto por órgãos como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Mundial da Saúde Animal (OIE) e a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), que reconhecem existir um vínculo muito próximo entre o meio ambiente, em todos os seus aspectos, a saúde animal e a saúde humana”, explica Paulo Abílio, pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde da Fiocruz. “As interações entre humanos, animais e ambiente ocorrem em diferentes maneiras e podem ser responsáveis por mudanças e impactos com efeitos em cascata, criando problemas no equilíbrio sustentável do planeta. Um exemplo é a transmissão de agentes infecciosos entre animais e seres humanos, muitas vezes ocasionada por mudanças ambientais, como o desmatamento ou o crescimento desorganizado e urbanização de áreas. Tais mudanças podem levar à ocorrência de zoonoses emergentes, reemergentes ou  novas, bem como o surgimento de vírus com potenciais de causar doenças em seres humanos”, completa.

De acordo com dados da OIE, 60% das doenças humanas têm em seu ciclo a participação de animais, ou seja, são zoonóticas. Além disso, 75% das doenças infecciosas emergentes em humanos (entre elas ebola, HIV e influenza) têm origem animal. A cada ano surgem cinco novas doenças, sendo três com o início em animais. “A saúde única ocorre quando aproximamos instituições e profissionais com diferentes expertises da saúde humana, animal e ambiental para atuarem em conjunto na resolução de um problema multifatorial. Isso inclui também o diálogo e aproximação com setores de comunicação, educação, comércio, turismo, entre outros”, detalha David Soeiro, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e especialista em epidemiologia e saúde pública do Instituto de Ciências Biológicas.

A ideia da saúde única é antiga. O filósofo Hipócrates, considerado o pai da medicina, afirmava que a saúde pública estava atrelada a um ambiente saudável. Já no século XIX, o médico patologista Rodolf Wirtchel defendia que não deveriam existir divisões entre a medicina humana e a animal. A ideia mais próxima da que temos hoje surgiu na década de 1960 com o epidemiologista veterinário Calvin Schwabe, que criou o conceito de medicina única.

“Alterações, modificações, desastres naturais e desastres provocados pelo próprio homem potencializam os riscos de surgimento de novos patógenos, atingindo normalmente uma população animal e, por último, a espécie humana. E isso tem sido visto com maior intensidade a partir da década de 1980 quando foram diagnosticados o ebola e o HIV”, pontua Nélio Batista de Morais, presidente da Comissão Nacional de Saúde Pública Veterinária do Conselho Federal de Medicina Veterinária.

Para Nélio, o surgimento de novos vírus e, consequentemente, pandemias e epidemias, ocasionou a visão atual de promoção e prevenção à saúde. “Há uma inversão na lógica do processo saúde-doença. Até o final do século passado se investiu massivamente na medicina curativa, no paciente individual, recuperado por uma droga, por um antibiótico ou por uma cirurgia. E olhou-se muito pouco para o coletivo. O que ocasiona danos à saúde da população? Esse é o grande foco do processo de saúde única”, diz.

Coronavírus e a saúde integrada

Até o fechamento desta reportagem, mais de 15 milhões de pessoas foram infectadas com o novo coronavírus no Brasil, com mais de 423 mil mortes, de acordo com dados do consórcio de veículos de imprensa criado em junho de 2020 para mapear os números da covid-19 no país.

Para o médico-veterinário Paulo Abílio, a pandemia escancara a necessidade de processos de saúde única. “A covid-19 é um grande exemplo de como os eventos estão intimamente relacionados. A origem do vírus, ainda que não bem definida, foi a partir de um morcego e envolve, provavelmente, um segundo mamífero como hospedeiro intermediário, que transmitiu ao homem como hospedeiro suscetível. A cadeia de eventos engloba animais silvestres, consumo de animais sem controle, monitoração ou regras sanitárias claras, permitindo o contato de novas formas patogênicas ao homem, aos animais e ao ambiente”, pontua.

O especialista também destaca outras ações que corroboram para o surgimento e desenvolvimento de doenças: desmatamento, desequilíbrio climático e contaminações ambientais podem gerar a proliferação de transmissores de doenças em plantações. Já o uso indiscriminado de agrotóxicos causa impacto na saúde humana. Por fim, a utilização sem controle na cadeia animal de antibióticos e hormônios proibidos também representa riscos para os consumidores, e o descarte indevido dessas substâncias gera contaminação ambiental. “Pensar em saúde única é pensar de forma coletiva os problemas e as soluções, criando oportunidades de prevenção e tornando o mundo mais sustentável e saudável. É a melhor estratégia para o enfrentamento a novos surtos epidêmicos globais”, aponta.

Entretanto, a aplicação da saúde única é ainda distante, pontua o pesquisador David Soeiro. “Apesar de fortemente incentivada no panorama internacional, no Brasil ainda temos ações muito mais debatidas e restritas ao ambiente acadêmico. Isso inclui as pesquisas realizadas nas universidades em parcerias com o setor público e as redes de colaboração interinstitucional, como a Rede One Health Brasil. Saúde única sem o estabelecimento de mecanismos de gestão e sem recursos dificulta a prática nos serviços públicos”.

“Ao longo dos últimos cinco anos houve congressos, seminários, simpósios, encontros e discussões que ajudaram a geração de diretrizes publicadas para o Ministério da Saúde e o da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Porém, não existe um órgão centralizado ou uma agenda de trabalho junto ao poder executivo para a saúde única”, destaca Paulo Abílio.

“É necessário transformar a saúde única numa política nacional. Passa também pelo Ministério do Meio Ambiente e por todos os órgãos ambientais estaduais e municipais, num trabalho estreito, integrado e intenso de monitoramento, acompanhamento, preparação, observação e de tomada de decisões”, completa o médico-veterinário Nélio Batista de Morais.

Nélio reforça que o monitoramento do meio ambiente é fundamental como forma de prevenção de novas pandemias. “Se houver uma vigilância efetiva, um controle do espaço ecológico, os danos finais para a sociedade serão bastante minimizados. É necessário acompanhamento da cadeia da produção de alimentos, desde o campo até o supermercado”.

Para a Organização Mundial da Saúde Animal (OIS), controlar os agentes infecciosos que podem ser transmitidos de animais para seres humanos e vice-versa é a maneira mais eficaz e econômica de proteger as pessoas. Isso somente será possível com estratégias de saúde pública implementadas a níveis nacional, regional e global.

Rafael Revadam é jornalista, pós-graduado em estudos brasileiros. Tem especialização em jornalismo científico e cursa mestrado em divulgação científica no Labjor/Unicamp.