Paulo Saldiva: ‘Adoece-se em todo lugar, mas morre-se na periferia’

“O código de endereçamento postal é tão importante para determinar o risco de morrer quanto a biologia do vírus e sua relação com as características individuais de cada pessoa”, diz professor da USP.

Entrevistado por Leandro Magrini

Paulo Saldiva é médico, patologista, e professor do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP. Divulgador científico bastante ativo, Saldiva possui um programa semanal na rádio USP, Saúde e meio ambiente, em que discute alternativas para o combate à poluição, com a adoção de práticas mais sustentáveis e adaptadas ao Brasil. Comentarista do Jornal da Cultura desde 2012, apresentou recentemente na TV Cultura o Urbanite, programa em que mostra como a cidade interfere na saúde e na qualidade de vida de seus habitantes, e apresenta alternativas para viver melhor. Além de ser ciclista e gaitista.

O médico desenvolve pesquisas nas áreas de anatomia patológica, doenças respiratórias e saúde ambiental, tendo publicado mais de 600 trabalhos científicos em revistas especializadas. Foi diretor do Instituto de Estudos Avançados da USP e membro de comitês da Organização Mundial de Saúde que estabeleceram os padrões de qualidade do ar e o potencial carcinogênico da poluição atmosférica. 

Nessa entrevista para a ComCiência, ele fala sobre algumas questões centrais relacionadas à pandemia do coronavírus, lições, desafios e expectativas para o mundo pós pandemia.

De que modo a pandemia do novo coronavírus difere de outras que a humanidade enfrentou no passado?

A pandemia do novo coronavírus compõe uma sequência de epidemias de doenças virais de transmissão interpessoal que vem se acentuando nos últimos anos. Por exemplo, tivemos no século XX duas grandes pandemias de influenza: a gripe espanhola, no início do século; e a gripe asiática, em 1957.

Neste século já tivemos quatro grandes pandemias: Sars (síndrome respiratória aguda grave) em 2002; H1N1 pelo vírus influenza em 2009; Mers (síndrome respiratória do Oriente Médio) em 2012; e Sars-cov-2 (novo coronavírus) agora em 2020.

Ou seja, saímos de um padrão de duas pandemias por século (no século XX), para duas pandemias por década (no século XXI).

Vimos que o mundo se modificou. Existe um adensamento populacional muito maior, maior chance de interação com ambientes e animais silvestres que podem transmitir vírus para os quais nós não estamos preparados, e também uma enorme mobilidade, fazendo com que possamos facilmente atravessar continentes e transportar esses vírus.

Especialistas de diferentes áreas (antropólogos, cientistas sociais e das ciências médicas) têm destacado que a vida pós-pandemia do novo coronavírus não será mais como a conhecíamos, levando a mudanças, como por exemplo, no estilo de vida das pessoas. Quais devem ser as mudanças mais significativas?

Em geral essas pandemias também levam a uma melhoria das condições de saúde, não há dúvidas. O progresso da medicina sempre foi impulsionado a partir de tragédias e pressões demandadas por grandes eventos de massa.

Por exemplo, no caso de pandemias que ocorreram com guerras, ou até o saneamento, que nasceu dessas “febres”. Assim como as primeiras vacinas, como a da varíola, passando por descobertas de Robert Koch, Louis Pasteur e por quase tudo que se imaginou em termos de desenvolvimento médico. Agora vai acontecer a mesma coisa.

Teremos também a valorização da preservação ambiental. Veja, por exemplo, no caso do vírus ebola, que quase se espalhou pelo mundo porque o reservatório dele, o morcego, começou a estender sua distribuição devido à alteração no seu ecossistema pelas plantações de palma, levando-o a se espalhar pela África em busca de novos habitats e chegou perto de aeroportos.

Vemos, então, que ninguém mais está seguro, porque o controle de uma doença viral de transmissão interpessoal é muito difícil na medida em que nunca vivemos tão amontoados em cidades, e nunca nos movemos tanto.

A maioria dos países estava longe de estarem preparados para enfrentar uma pandemia, com algumas exceções como Alemanha, Coreia do Sul, Nova Zelândia e a própria China (onde a pandemia se iniciou). Que lições podem ser tiradas para o futuro?

Precisaremos ter uma espécie de vigilância global, uma vez que não importa que uma doença esteja ocorrendo muito longe, porque ela pode chegar até você em questão de semanas. E isso demanda uma cooperação internacional, e novas formas tanto de testagem e de identificação dos novos agentes virais, como produção mais eficiente e rápida de vacinas. Isso implica que vai haver uma valorização da ciência.

Outros efeitos colaterais positivos de uma pandemia é dizer que nós temos que ter primeiramente uma solidariedade global; um financiamento global para fazer frente aos custos de desenvolvimento de vacina em um curto espaço de tempo; a necessidade de sistemas públicos de saúde efetivos; e a necessidade de um investimento contínuo em ciência e tecnologia.

A ciência brasileira, as instituições de ensino e pesquisa públicas, e nosso sistema de saúde, tão atacados e dilapidados recentemente, particularmente no atual governo federal, com cortes maciços de recursos e sucateamento, têm mostrado sua força e qualidade, ao serem evidenciados de modo frequente nos noticiários e revistas científicas internacionais. Você acredita que os pesquisadores e instituições de pesquisa do Brasil, e o SUS, sairão fortalecidos frente à opinião pública após a pandemia?

Acho que a ciência brasileira será reforçada, assim como o sistema público de saúde, o que se contrapõe um pouco a uma ideia privatista que era hegemônica. Algumas coisas – como as doenças públicas e globais – demandam medidas globais e públicas. E isso talvez seja um efeito colateral positivo dentro de uma tragédia.

Estamos assistindo a efeitos mais pronunciados da epidemia em áreas e regiões em que as condições de vida da população são mais precárias e de extrema desigualdade social – regiões periféricas, comunidades e favelas nas regiões metropolitanas de São Paulo e Rio de Janeiro, e em cidades das regiões norte e nordeste, que possuem os níveis mais baixos de cobertura sanitária e de acesso à água potável. Como você vê este cenário?

Vemos o Brasil como um laboratório natural para entender esse cenário, porque temos bons dados de saúde, mas também condições muito diversas de acesso a saneamento, e de desigualdade social e econômica. Observamos em São Paulo que o risco de morrer é muito determinado pelos indicadores socioeconômicos. Adoece-se em todo lugar, mas morre-se na periferia, mostrando que o código de endereçamento postal (CEP), que é um marcador síntese de uma série de vicissitudes e desigualdades, é tão importante para determinar o risco de morrer quanto a biologia do vírus e sua relação com as características individuais de cada um.

Nações e regiões administradas por políticos que não negligenciaram informações e o conhecimento científico sobre o coronavírus para lidar com a pandemia efetivamente impediram a morte de milhares de pessoas. Qual a expectativa para o Brasil, em que temos visto o crescimento de movimentos de negação da ciência, especialmente no meio político, com forte componente religioso?

A ciência pode fazer muita coisa, mas ela tem seus limites e seus tempos. Assim, abre brecha para o surgimento do fetiche da ciência: remédios prometidos como a salvação (mas que não são), ou então uma esperança muito grande na ciência como redentora.

Isso vai demandar o fortalecimento de uma pesquisa não imediata, não pandêmica, mas um investimento contínuo na ciência – e que estava sofrendo especialmente no nosso país um decréscimo e uma desvalorização tanto econômica quanto sobre o reconhecimento do seu papel na sociedade.

Eu tenho uma expectativa positiva. O desmonte de certas visões – que inclusive não são bem religiosas, porque alguns “matizes da religião” me parecem empresas – acontecerá, já que podem vender a ilusão, mas não conseguem eliminar o risco fatal. Talvez com isso você desmascare todas essas concepções “religiosas” erradas e também crenças em “conspirações” como o movimento antivacina.

Acho que mesmo aqueles que professam a desconfiança da vacina hoje gostariam de ter uma vacina para chamar de sua, para retomar sua vida, seu convívio e suas atividades econômicas.

Leandro Magrini é formado em biologia, com mestrado em ecologia e conservação de recursos naturais (UFU) e doutorado em biologia comparada (USP). É aluno de especialização em jornalismo científico pelo Labjor (Unicamp).