Quando a novela da Globo dá uma forcinha para a literatura

Por Ana Augusta Odorissi Xavier e Rafael Revadam

Cresce também a influência de “guias”, que por meio das redes sociais dão palpites e dicas sobre quais livros ler (com todo cuidado para não soarem acadêmicos).

Das cinco novelas em exibição na televisão brasileira (sem contar reprises), três giram em torno do universo literário – duas são livremente inspiradas em obras específicas e a terceira utiliza recortes de diversos títulos em seu enredo. Ao mesmo tempo, influenciadores digitais movimentam público e mercado com indicações do que estão lendo. Em 2018, a youtuber Jout Jout fez com que um livro infantil publicado há anos entrasse na lista dos mais vendidos somente por divulgá-lo em um vídeo. Encenada, narrada ou compartilhada, a literatura vive um momento cada vez mais multimídia.

“A literatura sempre foi uma importante fonte de inspiração para narrativas em outras mídias. O que difere os tempos atuais é o uso do que alguns especialistas têm chamado de estratégias transmídias – ou seja, contar trechos ou pedaços dessas histórias usando múltiplas plataformas de mídia, explorando o melhor que cada uma pode fornecer em termos de experiência do usuário”, explica o professor Alan César Belo Angeluci, especialista em comunicação, televisão e cultura digital da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS). “A ideia de um universo narrativo em que cada consumidor é estimulado a procurar essas histórias ganha força quando as narrativas, de alguma forma, já fazem parte do repertório do público, como é o caso das obras literárias exploradas na TV. O fã da literatura ou que possui um laço afetivo com as obras é o foco dessas produções, que procuram o seu engajamento para ampliar o consumo da história que está sendo contada em um novo meio.”

Romance da autora Maria José Dupré, a obra Éramos seis ganhou, em 2019, sua quinta adaptação para a TV. Estreada no dia 30 de outubro, a novela homônima foi responsável por alavancar as vendas do livro que a originou, publicado pela primeira vez em 1943.  Dados da plataforma Estante Virtual, que reúne sebos e livrarias, apontaram um crescimento de 67% nas compras do livro somente no mês de outubro, comparando com janeiro. Além disso, do total de aquisições da obra até o momento em 2019, 42% ocorreram entre os meses de setembro e outubro, período da divulgação e início de veiculação da novela.

“Se nós perguntarmos o quanto o brasileiro lê livros tradicionais, a resposta é ‘muito pouco’, e diversas pesquisas indicam isso. Mas o que seria leitura no século XXI?”, indaga Angeluci. “Existem vários tipos de leitura. Há um grupo de pesquisa na Inglaterra (New London Group) que se dedica ao que eles chamam de multiletramentos: formas de ler o mundo não somente pelas lentes dos textos escritos, mas também pelo audiovisual, pelo grafite, pelos memes na internet, pelos podcasts etc. O ser humano tem hoje acesso a muito mais conteúdo do que há poucas décadas. Ele se comunica mais e lê mais, porém usando redes sociais, textos curtos, fotos, vídeos feitos por celulares e pelos stickers do Instagram. É preciso se perguntar o que queremos da literatura hoje: que permaneça restrita ao estereótipo da cultura culta em contraposição à popular?”

Uma editora como cenário de novela
Foi por conta de uma troca de exames médicos que a costureira Paloma (Grazi Massafera) conheceu o editor Alberto (Antonio Fagundes). Ao perceberem a paixão em comum pela literatura, os personagens se tornam amigos e começam a refletir sobre a vida usando obras da ficção. Este é apenas um dos motes da novela Bom sucesso, em exibição às 19 horas na Rede Globo. Além da imersão de personagens em contextos das obras, como a encenação de livros nos capítulos, o folhetim também tem uma editora como um dos principais cenários, e debate o mercado literário no país – entre os temas, a queda na compra de livros, a importância de conhecer obras clássicas e a entrada de influenciadores como escritores.

A ideia de trazer o universo literário para a televisão veio das vivências de Rosane Svartman, coautora da novela. “Há dois anos eu sou curadora da Arena Jovem, que é um espaço para debates e mesas dentro da Bienal Internacional do Livro, no Rio de Janeiro. E é o maior evento da América Latina dedicado à literatura, né? São mais ou menos 600 mil pessoas que passam pela Bienal. Eu fiquei muito impressionada como a literatura podia ser popular e como esse evento, que é um evento comercial, é impactante. Consegui enxergar ali um público muito diverso, bem interessado na literatura. Então, daí veio a ideia para uma das arenas da novela, que um dos universos fosse uma editora e que a gente pudesse falar de literatura e dos livros.”

Para a inclusão de livros à trama da telenovela, Svartman e Paulo Halm, que também assina a autoria de Bom sucesso, recorrem a obras que já leram, além de indicações da equipe de colaboradores, amigos e conhecidos. “A narrativa da novela é o que mais importa. Então, a gente vai pensando qual livro se encaixaria nessa narrativa. É claro que às vezes vem a ideia de um livro super legal para uma cena super legal, e a gente tenta fazer com que a história chegue naquele livro, mas é mais difícil isso acontecer.” Entre alguns casos, a indecisão de Paloma por dois amores ganha diálogos de Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado; enquanto a sensação de um amor não-correspondido vivida por Alberto é vista aos olhos de Quasímodo, personagem de O corcunda de Notre Dame, escrito por Victor Hugo.

Mas a busca pelas obras vai além da imaginação de Alberto e Paloma. Dados da plataforma de comércio eletrônico Zoom apontaram um aumento na procura por determinados livros, conforme são citados nos capítulos de Bom sucesso. O maior destaque é para O mágico de Oz, de L. Frank Baum, que teve um crescimento de 15% nas buscas, em comparação com o mesmo período em 2018.

Para Svartman, a novela vem tendo bons números de audiência em parte porque as pessoas querem falar de literatura. “Isso, para mim, dá bastante esperança”.

Quando a rede estimula uma fuga da rede
Diversas pessoas têm gasto tempo navegando na internet em busca de dicas e conselhos para fazer exatamente o contrário: passar mais tempo fora da rede, mais especificamente, desfrutando de um bom livro. O foco são perfis que têm surgido em redes sociais como Instagram e YouTube dedicados especialmente à difusão de literatura. Nestes espaços, chamados de perfis literários, milhares de seguidores acompanham o conteúdo compartilhado por influenciadores sobre suas rotinas de leitura, opinião sobre obras, resenhas e material de divulgação de novas publicações.

Expressar a sua percepção sobre os livros que lia e encontrar pessoas para conversar sobre eles era a única pretensão de Pedro Pacífico, advogado formado pela Universidade de São Paulo (USP), quando criou sua conta no Instagram em 2016. Hoje, o @book.ster é um dos maiores perfis literários do país, com mais de 133 mil seguidores. “Acho que as pessoas acabaram se identificando comigo porque sou um leitor comum falando sobre livros”, ressalta. Essa cumplicidade digital fez com que muitas indicações suas, quase sempre com base em seu gosto pessoal, esgotassem rapidamente em livrarias e plataformas de e-commerce. “Eu até pensei ‘não pode ser influência, deve ter sido coincidência’. Mas comecei a perceber que, em um certo momento, a própria Amazon e algumas editoras começaram a me procurar. Foi aí que pensei que, de fato, devia estar influenciando.”

O criador do @book.ster concorda que a leitura não é um hábito dos brasileiros. Por outro lado, acredita que o número crescente de seguidores em seu perfil demonstra que o problema não é a falta de vontade de ler, mas que muitas vezes as pessoas não sabem como começar. “A partir do momento que você mostra que é possível, sim, você construir esse hábito, com alguns minutos do seu dia para a leitura, e que tem muitos livros bons, é muito difícil pensar na ideia de não gostar de ler. Sinto que o que eu faço na verdade é dar um guia, uma orientação para as pessoas, porque elas ficam um pouco perdidas e, então, por se identificarem comigo, acabam ouvindo a minha opinião e seguindo meu gosto.”

Já na concepção de Mellory Ferraz, sua formação em estudos literários pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) é responsável, em parte, pela credibilidade que tem com o público de 121 mil seguidores no canal Literature-se. Há praticamente 10 anos ela compartilha na web a paixão pelos livros – primeiro em um blog, depois em vídeos no YouTube e perfis no Facebook e Instagram. Mellory também atua como revisora freelancer, professora de redação e curadora do Garimpo Clube do Livro, além de cursar a segunda graduação, em letras. Ela argumenta que as redes sociais são ambientes de massificação, no sentido positivo da palavra, e por isso requerem uma linguagem diferente da utilizada na academia. “É claro que aquelas pessoas que estão ali não estão interessadas em uma linguagem acadêmica, então eu tenho que saber dosar muito bem isso, levar o que é interessante. A pessoa que vai em um canal literário não procura um artigo, um ensaio, um documento acadêmico, até porque seria impossível fazer isso com um vídeo no YouTube.”

Por ser influenciadora, mas também atuar no mercado editorial, Mellory chama atenção para o peso da responsabilidade das personalidades digitais em relação às críticas que publicam em suas redes. Ela acredita que é preciso levar em conta a complexidade do processo de criação de um livro, enquanto produto, principalmente no cenário atual do consumo de literatura no país. “As minhas críticas [às obras lidas], mesmo que negativas ou com pontos negativos a serem ressaltados, sempre são de uma maneira muito respeitosa. Vejo alguns canais que acabam metendo o pau e tento, acima de tudo, dar uma crítica mais equilibrada, no sentido de sobriedade, para que a pessoa entenda que é possível ela gostar do livro.”

Ana Augusta Odorissi Xavier é farmacêutica e tecnóloga em alimentos pela UFSM, mestre em ciência de alimentos pela UEL e doutora em ciência de alimentos pela Unicamp, onde trabalha como profissional de pesquisa. Atualmente é aluna do curso de especialização em jornalismo científico do Labjor.

Rafael Revadam é jornalista formado pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul, pós-graduado em Estudos Brasileiros pela Fundação-Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Atualmente, cursa a especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.