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Pequenos abastecem mercado interno e externo

O último censo agropecuário, realizado em 1996, aponta que a pequena agricultura tem uma significativa colaboração na produção total de alimentos e emprega a grande maioria dos agricultores. Esses números surpreendem pois, historicamente, as políticas públicas beneficiaram em particular os grandes latifundiários, em detrimento dos pequenos agricultores, que quase sempre ficaram sem apoio institucional. Uma das propostas de mudança, considerando-se essa realidade envolve a adequação das linhas de crédito e subsídios à realidade do agricultor familiar no Brasil. Além disso, parece haver um consenso entre especialistas, agricultores e militantes da necessidade de cooperação entre os pequenos agricultores, principalmente os recém assentados.

Segundo dados do último censo, a agricultura familiar ocupa 30,5% da área total dos estabelecimentos rurais e concentra apenas 25% do total de crédito agrícola. Porém, ela agrega 77% do total de trabalhadores ocupados na agricultura e representa 38% do valor bruto da produção nacional. Alem disso, só para se ter uma idéia, 67% do feijão, 84% da mandioca e 49% do milho produzidos no Brasil são produtos da agricultura familiar.

Foi considerado agricultor familiar, no censo, aquele que administra o próprio estabelecimento e cujo trabalho dos membros da família é superior ao trabalho contratado. Para evitar que grandes latifúndios improdutivos fossem incluídos como agricultura familiar foi estabelecido um limite na área da propriedade. Com poucas exceções, o agricultor familiar é pequeno agricultor.

Ademar Ribeiro Romeiro, professor do Instituto de Economia da Unicamp, lembra que existem diversas pequenas propriedades gerando muito lucro, como os produtores de flores de Holambra, interior de São Paulo. Nesse sentido, o conceito de pequeno produtor pode ser enganoso. Para o pesquisador, podemos considerar como pequeno aquele que tem uma propriedade com baixa produtividade, em área pequena e gerando baixa renda, como nos assentamentos do MST ou algumas propriedades de agricultura familiar.

Na avaliação de Romeiro, "apesar de ser colocada como se fosse a contracorrente, a pequena agricultura faz parte da nossa realidade, e a convivência do grande com o pequeno reflete a situação no Brasil, com uma brutal concentração de renda". Para ele, a atividade não está em declínio, como se pensa, pois mesmo não tendo os devidos incentivos ela é responsável por uma significativa parcela do total da produção nacional.

Já na avaliação do professor Antonio Márcio Buainain, também do Instituto de Economia da Unicamp, o modelo do pequeno está em declínio. Para ele, a crise social no campo que resultou na emergência e fortalecimento do movimento social pela reforma agrária é uma prova de que a agricultura familiar está em crise, mas não de que ela é inviável. "Ao contrário, os dados que apresentamos em nosso livro Agricultura familiar e reforma agrária no século XXI mostram a capacidade de resistência da agricultura familiar às condições adversas". Segundo Buainain, o importante é discutirmos os motivos que levaram a agricultura familiar à crise.

Uma das desvantagens do pequeno produtor rural em relação ao grande é a impossibilidade do acesso às tecnologias que permitem os chamados ganhos de escala. "A marginalização da agricultura familiar não ocorre por uma inviabilidade tecnológica, na verdade o que faz com que ela perca espaço mais rapidamente é todo o conjunto de atributos que devem acompanhar a inovação tecnológica, aos quais ela não tem acesso", afirma Buainain. Esses atributos seriam proporcionados por serviços praticamente inexistentes para o pequeno produtor como crédito agrícola, assistência técnica, educação rural e redes de distribuição dos produtos no mercado. O agricultor familiar não precisa de um trator muito potente para ser competitivo, um trator de tamanho pequeno, por ter o custo de manutenção menor e ter a possibilidade de ser usado em grupo, compensaria a vantagem do grande por produzir em escala. Mas este trator adequado ao pequeno nem sempre está disponível no mercado, e quando está o produtor não tem condições para comprá-lo O principal problema do pequeno produtor não seria, então, estrutural, mas decorrente da ausência de crédito e investimentos.

Buainain lembra que, no passado, tivemos uma política para a agricultura comercial que produziu muitas distorções, incentivou a concentração de renda, de terra e da produção. Na medida em que o pequeno agricultor estava excluído desse modelo era penalizado, pois dificilmente tinha condições de receber os benefícios das políticas públicas. "Hoje precisamos de uma política que tenha um viés ao contrário, discriminando favoravelmente o agricultor familiar", afirma o pesquisador. Para ele, não é possível assumir que pequenos e grandes produtores são todos iguais. O desigual deveria ser tratado com desigualdade. Nesse sentido, seria necessária uma linha de crédito particular para o pequeno agricultor, que leve em consideração a diversificação da produção, pois as políticas de terra no Brasil, em geral, são destinadas a um único produto e o pequeno agricultor familiar não é especializado, mas explora um sistema com muitos produtos, inclusive para o consumo próprio.

Na França, por exemplo, o governo subsidia pequenos, médios e grandes agricultores. Romeiro conta que lá ocorreu um processo de especialização, em que os grandes produzem grãos, os médios trabalham com pecuária de corte e os pequenos atuam na pecuária leiteira, que exige mais mão-de-obra. Para o pesquisador, sem subsídios as atividades agropecuárias desapareceriam em muitas regiões. Uma justificativa usada pelos agricultores franceses é que, além da produção de alimentos, eles são responsáveis pela gestão da paisagem, portanto o subsídio também seria para o embelezamento cênico que alimenta a mais rentável indústria européia: a do turismo. No entanto, segundo o professor "é preciso ter claro que seria possível manter essas atividades de gestão da paisagem sem subsidiar a produção de produtos concorrentes com aqueles provenientes de países em desenvolvimento". Há, neste caso, uma questão de lobbies que deveria ser enfrentada para que o comércio entre países ricos e pobres se realize em bases justas.

"A problemática nos EUA e Europa não é a do pequeno e do grande", afirma Buainain. Nos países desenvolvidos, o agricultor familiar não se parece em nada o pequeno brasileiro, em sua maioria pobre; lá não existe a questão da pobreza rural, e o problema dos agricultores refere-se à manutenção do nível de renda, proteção dos seus mercados, acesso aos mercados internacionais e assim por diante. Como no Brasil a maioria dos agricultores familiares está abaixo da linha da pobreza, a grande deficiência dos programas de incentivo à agricultura familiar é que eles só funcionam de forma eficaz para o extrato superior da agricultura familiar, já integrada ao mercado - pois tem um conjunto de recursos básicos que permitem a utilização dos instrumentos de mercado. As políticas públicas deveriam, segundo o pesquisador, tratar a situação da maioria dos agricultores familiares com instrumentos de promoção de desenvolvimento, e não com intervenções tópicas, como ocorre hoje no próprio Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).

Futuro dos assentamentos e formas de cooperação
Com o significativo aumento do número de assentamentos rurais torna-se importante pensar nas alternativas para o futuro desses pequenos produtores. Buainain acredita que "é preciso considerar a questão do pós-assentamento com muita calma". Para ele, não podemos esperar que um agricultor que foi assentado em situação de absoluta precariedade se torne um agricultor sustentável em apenas um ou dois anos. Muitas vezes, o trabalhador consegue seu lote depois de passar anos sem acesso à terra, como no caso de catadores de cana, laranja e algodão. Além disso, na grande maioria dos casos, o trabalhador passa meses, às vezes anos, em acampamentos antes da distribuição das terras. Portanto, é preciso dar tempo e criar condições para que eles se tornem produtores sustentáveis. Os assentados, na maioria dos casos, estavam em situação de total indigência econômica e social e a maioria sem a possibilidade de inserção produtiva no meio urbano, por falta de condições básicas como educação. Na avaliação do pesquisador, "caso essa população pelo menos se estabilize por alguns anos no campo, com condições de sobrevivência adequada, o programa de reforma agrária já pode ser considerado bem sucedido".

Um dos principais caminhos encontrados pelos pequenos agricultores para contornar a falta de apoio institucional e a concorrência com o grande produtor são as diferentes formas de cooperação. Os pequenos produtores rurais vêm se estruturando de forma cooperativa há muito tempo. Desde em associações informais para produzir e comercializar produtos em grupo, até na formação de cooperativas que visam o beneficiamento dos produtos para agregação de valor aos produtos agropecuários - como, por exemplo, na ordenha mecânica para a produção de leite tipo B e na produção de queijos e doces. Porém, para Buainain, o fato de existir uma afinidade na luta pela terra não significa que, uma vez conseguido esse objetivo, as associações políticas estão capacitadas para passar ao estágio do associativismo para a produção. O estilo de produção de cada produtor pode ser diferente e a simples transposição da associação na luta pela terra para o momento da produção pode trazer problemas, "fato que vem se evidenciando em muitos assentamentos com rupturas dos grupos e formação de novos movimentos", afirma o professor.

Nesse sentido, o MST promove diversos cursos para que os trabalhadores rurais dos acampamentos e assentamentos entrem em contato com as diversas formas possíveis de cooperação, como as Cooperativas de Crédito e Serviço, as Cooperativas de Produção Agropecuária e as associações informais. Estas podem levar, por exemplo, a descontos para comprar material para a construção das casas no atacado ou à compra de um trator em grupo. Os acampamentos, nas ocupações do MST, além de se constituírem como uma forma de pressão para acelerar a reforma agrária, atuam como uma espécie de preparação para a vida em comunidade que se propõe para o futuro assentamento.

Para João Calixto da Silva, morador do Assentamento I de Sumaré, interior de São Paulo, os principais problemas relacionados à consolidação das cooperativas são as políticas de crédito agrícola, com juros próximos aos de mercado; a cultura individualista que caracteriza a vida nas cidades; e o medo dos empréstimos por parte dos companheiros. Para o morador, é importante que jovens e crianças tenham a oportunidade de estudar e conhecer as alternativas para o pequeno agricultor, como as cooperativas institucionalizadas e o uso de tecnologias, como tratores. "Para sobrar tempo para outras atividades, pois o agricultor além de trabalhar a terra, tem que atuar também como empresário", afirma Calixto.

(AP)

 
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Atualizado em 10/06/2003
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