Editorial:

As cidades e os muros
Carlos Vogt

Reportagens:
Prós e contras da revitalização urbana
Enfim o Estatuto da Cidade
Programa Habitat procura desenvolver a qualidade de vida nas cidades
Ocupações revelam déficit habitacional
Fórum Social propõe uma outra cidade possível
Novas metrópoles, velhos problemas
Conflitos entre centro e periferia
Qulaidade das águas é cada vez pior
Lixo é problema ambiental com agravantes sociais
Transporte em São Paulo: conflitos e soluções
Poluição sonora piora ambiente urbano
Preservação ambiental: destino alternativo para o litoral sul de São Paulo?
Cidade tenta unir tecnologia com inclusão social
Educação para uma nova cidade
Brasília contrastes de uma cidade planejada
Vilas significaram distância entre patrões e operários
Artigos:
Dimensões da tragédia urbana
Ermínia Maricato

Aprovação do Estatuto da Cidade
Geraldo Moura

O passado nas cidades do futuro
Cristina Meneguello
"As cidades nos países subdesenvolvidos" em um mundo globalizado
Tatiana Schor
Cidades e seus fragmentos
Rogério Lima
Cidade, língua, escolae a violência dos sentidos
Cláudia Pfeiffer
Poema:
Manual do novo peregrino
Carlos Vogt
 
Bibliografia
Créditos

 

 

As insatisfatórias fronteiras entre o Brasil urbano e o Brasil rural

As cidades brasileiras vêm passando por uma reestruturação. A febre de construção de edifícios de luxo já não se restringe a áreas nobres ou centrais. Os galpões que antes abrigavam fábricas em bairros tipicamente industriais, hoje são transformados em condomínios para classe média e alta. Nas áreas de antigas fazendas surgem condomínios fechados horizontais. Com todas essas mudanças ainda seria possível fazer a distinção entre urbano e rural, entre centro e periferia? O Brasil é um país urbano ou rural?

De acordo com os resultados do Censo Demográfico de 2000, 81.2% da população reside em áreas urbanas. Este percentual cai para 57% em outras pesquisas realizadas por equipes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do Instituto de Pesquisa Econômicas Aplicadas (Ipea) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Para José Eli da Veiga, professor da Universidade de São Paulo (USP) e secretário do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CNDRS), a explicação de tamanha diferença está na metodologia aplicada para classificar e contar a população brasileira. É considerada urbana, na metodologia em vigor, toda sede de município (cidade) e de distrito (vila), sejam quais forem suas características. Dessa forma, em estatísticas oficiais, cidades com poucos habitantes têm o mesmo peso de metrópoles.

O caso extremo - citado pelo professor no artigo O Brasil verdadeiro urbano, publicado no início do ano no jornal Estado de S. Paulo - está no Rio Grande do Sul, onde a sede do município de União da Serra é uma cidade na qual o recenseamento de 2000 só encontrou 18 habitantes. Essa não é uma exceção, já que no último censo foram identificadas 1.176 sedes de municípios com menos de 2 mil habitantes, 3.887 com menos de 10 mil e 4.642 com menos de 20 mil. Todas com status de cidade.

O grande risco do que Veiga chama de "ficção estatística" é fortalecer a idéia da progressiva extinção da população rural, tornando irrelevante qualquer política voltada à dinamização da sociedade rural. "No fundo, supõe-se que dar mais atenção ao Brasil rural seria como 'gastar vela com mau defunto' já que mais dia menos dia todos estarão nas cidades", assinala no texto A encruzilhada estratégica do Brasil Rural, apresentado no seminário Brasil Rural - Na virada do Milênio, realizado em abril de 2001, em São Paulo.

A definição vigente de cidade, como ressalta o professor, é obra do Estado Novo. Foi o Decreto-Lei 311, de 1938, que transformou em cidades todas as sedes municipais existentes, independentemente de suas características estruturais e funcionais. Embora, em 1991, o IBGE tenha definido três categorias de áreas urbanas (urbanizadas, não-urbanizadas e urbanas-isoladas) e quatro tipos de aglomerados rurais (extensão urbana, povoado, núcleos e outros) foi mantida a convenção de que toda a sede de município é necessariamente espaço urbano, seja qual for sua função, dimensão ou situação. Pouquíssimos países do mundo usam esse critério. Apenas El Salvador, Guatemala, Equador e República Dominicana.

Para que a análise da configuração territorial possa evitar a ilusão imposta pela metodologia oficial, Veiga defende a combinação do critério de tamanho populacional do município com a densidade demográfica e sua localização. Seria uma tipologia alternativa, capaz de captar a diversidade dos municípios.

As três convenções - tamanho populacional do município, densidade demográfica e localização - já são utilizadas. O critério mais simples é o de tamanho populacional, em que não são consideras áreas urbanas, municípios com menos de 20 mil habitantes. Todavia, há muitos municípios com menos de 20 mil habitantes que têm altas densidades demográficas, e uma parte deles pertence a regiões metropolitanas e outras aglomerações. Nessa ótica, seria rural a população dos 4.024 municípios que tinham menos de 20 mil habitantes em 2000.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) define três categorias de regiões : "essencialmente rural", em que mais de 50% da população está em localidades com densidade inferior a 150 habitantes por quilômetro quadrado;
"relativamente rurais", nas quais entre 15% e 50% dos habitantes vivem em locais com a mesma densidade demográfica; "urbana", quando 85% da população se encontra em localidades com densidade acima de 150 hab/hm2.

Na opinião de Veiga, não é possível adotar plenamente esse padrão no Brasil, pois existem diferenças substanciais entre a superfície dos municípios brasileiros e as unidades político-administrativas dos países da OCDE, além das dificuldades de trabalhar com uma classificação tríplice, em face da atual divisão entre lugares urbanos ou rurais em todos os municípios do país.

A melhor configuração territorial do Brasil é, de acordo com o professor, a resultante da pesquisa IBGE/Ipea/Unicamp. A rede urbana identificada nessa pesquisa é formada por 455 municípios, com uma população, em 2000, de 96.3 milhões (57% do total de 169.6 milhões de brasileiros). Eles são residentes de 12 aglomerações metropolitanas, outras 37 aglomerações e 77 centros urbanos. "Esse é o Brasil inequivocamente urbano", afirma.

Para distinguir, dentre os restantes 5.052 municípios existentes em 2000, aqueles que pertenciam ao Brasil rural e os que se encontravam em posição intermediária, o critério utilizado pelos pesquisadores foi o de densidade demográfica que varia de acordo com o tamanho populacional dos municípios. Estão classificados no Brasil rural, 30% da população, ou seja, 51.6 milhões de brasileiros. Não pertencem ao Brasil urbano e nem ao rural, 13% da população (21.7 milhões).

Conceitos extrapolam a objetividade

Na opinião da professora Maria Tereza Luchiari, da Unicamp, isolar as variáveis quantitativas como número de habitantes, tipos de atividades e construções, a exemplo do que faz o IBGE, não é mais suficiente para distinguir o urbano do rural. O conceito de urbano vai além dos dados concretos. Urbano é o modo de vida, que não está mais restrito à cidade. "Hoje há atividades rurais que são de concepção urbana. É o caso de quando se usa uma tecnologia de ponta em uma área agrícola ou um hotel fazenda que oferece todos os atributos do modo de vida urbano", explica.

A divisão entre centro e periferia, de acordo com Luchiari, não é mais tão rígida. "Até os anos 70, a área central das cidades brasileiras era caracterizada por ser melhor equipada, enquanto a periferia era associada aos pobres. Hoje não se sustenta mais esse modelo centro-periferia, nem na escala das relações internacionais, nem na estrutura urbana das cidades. A periferia hoje está no centro e vice-versa", afirma.

A justaposição centro-periferia é um fenômeno recorrente em várias cidades mundiais. No Brasil, as cidades, principalmente as da região sudeste, estão cada vez mais perdendo suas áreas rurais em conseqüência da conurbação. Americana, na região metropolitana de Campinas, é um exemplo de cidade predominantemente urbana, com quase nenhum espaço rural.

Segregação dos condomínios fechados

O modelo contemporâneo de urbanismo, que inclui a formação de condomínios fechados, é inspirado no modelo norte-americano, em que se privilegia a privatização dos espaços públicos. De acordo com Maria Tereza Luchiari, são imaginadas cidades ideais em que a população possa se isolar de todos os problemas. O que nem sempre é o que acontece na realidade.

A proliferação de condomínios fechados acaba colocando em evidência a cisão social. "É a segregação das elites", diz a pesquisadora. As pessoas de maior poder aquisitivo foram atraídas por esses empreendimentos imobiliários em busca de amenidades, como local com áreas naturais, distância da violência, do barulho e menos trânsito.

Os condomínios fechados estão localizados tanto em áreas mais distantes (antes consideradas como periferias ou rurais) quanto centrais. É comum ver condomínios de luxo ao lado de favelas. Essa proximidade em nada melhora a infra-estrutura disponível para os vizinhos pobres. Isso porque a territorialidade é seletiva, ou seja, os condomínios têm sua própria infra-estrutura e serviços, disponíveis ao grupo social que pode arcar com o valor do investimento, o que reforça a segregação social.

Mesmo com o isolamento físico há uma relação entre os moradores dos condomínios fechados e a vizinhança. O que é chamado, de acordo com Luchiari, de fragmentação articulada. Embora os condomínios sejam uma unidade independente, os moradores precisam contratar serviços profissionais (por exemplo, pedreiro, pintor, empregada doméstica, eletricista e encanador), que habitam os núcleos residenciais em seu entorno. Em muitos casos, a população carente é ainda mais prejudicada, pois tem o seu acesso ao interior do condomínio dificultado pelos esquemas de segurança e pela ausência de transporte público.

Políticas de desenvolvimento

Elaborar e propor um plano de desenvolvimento sustentável do Brasil Rural é a finalidade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CNDRS), formado por representantes de nove ministérios, dez organizações da sociedade civil e sete entidades paragovernamentais.

Em abril será lançado um esboço preliminar do Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável do Brasil Rural. Este será amplamente divulgado e debatido durante os dois meses seguintes de maneira a que se tenha em junho uma versão inicial. Subsídios essenciais para o processo de discussão já foram publicados pelo Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (NEAD) e estão disponibilizados no portal www.nead.org.br. A versão final do Plano será submetida a avaliação na I Conferência Nacional para o Desenvolvimento Sustentável do Brasil Rural, a ser realizada em Brasília nos dias 15 a 17 de novembro.

O Plano deve conter diretrizes, objetivos e metas que favoreçam sinergias entre a agricultura e os setores terciários e secundários de economias locais, além de oferecer novas e melhores perspectivas aos 4.500 municípios rurais, nos quais vivem quase 52 milhões de brasileiros.

Do ponto de vista da forma física, a professora da Unicamp não condena os condomínios fechados. "O problema não é a forma que, em alguns casos, pode proporcionar uma alternativa ambientalmente correta, já que o zoneamento interno, normalmente independente, pode auxiliar na preservação de áreas verdes. A questão é a sua função elitista".

O que também tem preocupado estudiosos é o futuro das novas gerações. Os condomínios fechados não contêm diversidade social. Os moradores integram um grupo social homogêneo, com mesmo perfil sócio-econômico, padrão de consumo, gostos e hábitos. "É um caminho perigoso. Tenho medo em relação às gerações mais novas criadas nesses condomínios. Eles não têm convívio com o outro. Temos exemplos de gangues de condomínios no Rio, São Paulo e Brasília", alerta Luchiari.

A segurança é a maior justificativa para a formação dos condomínios fechados. No entanto, Luchiari ressalta o fato de países que mantêm seus espaços públicos, como Japão e países europeus, apresentarem os índices mais baixos de criminalidade, enquanto os Estados Unidos, onde se originou esse modelo urbanístico, têm os maiores índices.

(LC)

 

 

Atualizado em 10/03/2002

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