Editorial:
Ciência, Tecnologia e Inovação: desafios e contraponto
Carlos Vogt
Reportagens:
MCT busca construir agenda para a ciência brasileira
Sistema de C & T é gerido por diversas instituições
Fundos garantem injeção de novos recursos à tecnologia
Programas especiais financiam pesquisas
Fapesp é modelo no fomento à ciência e tecnologia
A inovação tecnológica nas grandes empresas
Incubadoras geram empregos e inovações
Comunidade científica faz prévia para conferência nacional
O Brasil tem cientistas, mas faltam empregos
Artigos:
O intinerário da pesquisa no Brasil:
Evando Mirra
Os desafios para transformar conhecimento em valor econômico:
Roberto Nicolsky
Livro Verde pode ampliar conceito de política científica:
Ulisses Capozoli
Interação Rhodia-universidades no Brasil:
Saul D'Ávila
Quando o setor produtivo faz C&T:
Adermerval Garcia
Poema
Bibliografia
Créditos

 

 

Quando o setor produtivo faz C&T

Ademerval Garcia

A produção de ciência e tecnologia no Brasil atual é ainda muito pequena, embora, em algumas áreas, o país venha alcançando destaque. O que acontece conosco é que, diferentemente de outros países atuantes em C&T, a grande maioria de nosso quadro de pesquisadores está nas universidades e institutos de pesquisa, e não diretamente ligados ao setor privado. Esta realidade reflete o desinteresse de nosso empresariado em desenvolver pesquisas dentro de suas próprias fábricas, ora optando pela compra de pacotes tecnológicos internacionais ou simplesmente deixando de investir. Esse desinteresse decorre, principalmente, da dificuldade de diálogo entre o setor produtivo e a universidade, e mais ainda da permanente instabilidade de nossa economia, o que desencoraja inovações a não ser em produtos e serviços onde as margens ofereçam garantia contra as constantes turbulências.

O setor citrícola nacional, mesmo fazendo parte de um setor primário onde teoricamente a pesquisa de ponta não seria primordial, é uma das áreas mais atuantes em pesquisas e tecnologia. Maior produtor de citros e suco de laranja do mundo, exportando quase a totalidade do suco de laranja que produz para os exigentes mercados da Europa, Estados Unidos e Japão, entre outros, o setor investe na geração de tecnologia de logística de transporte, conservação e movimentação de produto congelado, transporte a granel em navios especialmente desenvolvidos - o único país do mundo a dispor desses navios-tanque - controle de qualidade e rastreamento a partir do copo na mão do consumidor até a semente na mão do viveirista. Investindo fortemente na proteção do parque citrícola, também o maior do mundo, com 700 mil hectares e quase 200 milhões de árvores, de onde deriva sua matéria prima, a indústria de suco de laranja tem plena consciência de que a proteção a esse parque não pode mais depender exclusivamente de aplicação de produtos agroquímicos, os quais, hoje muito mais 'limpos' do que no passado, constituem, não obstante, séria ameaça ao meio ambiente e a água cada vez mais escassa. Não bastasse o fato de São Paulo ser o maior produtor mundial de citros e também maior exportador de suco de laranja, sexto item da pauta de exportação nacional, a economia gerada pelo setor é de R$ 7 bilhões/ano. O desenvolvimento de pacotes tecnológicos que garantam maior controle ou eliminação de qualquer praga ou doença que ataque os pomares é fator primordial para a manutenção e crescimento dessa cultura, uma vez ser esta uma questão prioritária para a garantia da competitividade do negócio.

Para assegurar a continuidade desse crescimento econômico foi preciso criar um novo modelo onde todo o setor fosse beneficiado, já que o problema é comum. Surgiu daí um formato próprio de produção e estímulo à pesquisa científica. O Fundecitrus - Fundo de Defesa da Citricultura - atua como um interlocutor, fazendo a interface entre o setor produtivo, as agências de financiamento e as instituições e universidades. Nosso papel é de articulador, uma vez que identificamos a necessidade de desenvolver determinada pesquisa em benefício da produção, centramos o foco no problema, buscamos junto às universidades e institutos de pesquisas os melhores especialistas mundiais no assunto em questão, e atuamos junto às agências de fomento para a obtenção de verba além de também financiar alguns projetos. Essa articulação só é possível em função do trabalho realizado pelo nosso corpo próprio de pesquisadores, que atua desde a identificação do foco e dos atores responsáveis por todo o processo, até a condução e a coordenação do pacote tecnológico a ser gerado.

Um exemplo bastante conhecido dessa nossa maneira própria ou política de produção de ciência e tecnologia é o estudo do genoma da Xylella fastidiosa, bactéria causadora da
CVC - Clorose Variegada dos Citros ou amarelinho em nossos pomares, que provocou só neste ano um prejuízo ao setor de R$ 650 milhões. Os sintomas do amarelinho provocam o entupimento dos vasos do xylema e, conseqüentemente, a morte econômica das laranjeiras, devido à redução drástica no tamanho do fruto. Em 1997, quando a Fapesp - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo decidiu investir na área da genômica, havia vários microorganismos candidatos, se é que podemos chamá-los assim, para participarem da escolha. Coube ao Fundecitrus o papel de ajudar a provar a importância da opção pelo seqüenciamento do genoma da Xylella. Um dos requisitos para aprovação era que o problema tivesse importância sócio-econômica. Esse foi fácil provar já que é inquestionável a importância do setor, e a incidência da doença na ocasião era de 34%, número bastante expressivo. Outro ponto, foi mostrar que era possível seqüenciar a bactéria já que seu genoma tinha o tamanho adequado. Aí surgiram alguns questionamentos. Essas dúvidas foram causadas pela própria falta de informação que havia sobre a bactéria. Para saná-las, nossa instituição convidou dois dos maiores estudiosos da Xylella no mundo, os pesquisadores Joseph M. Bovê e Monique Garnier , do Institut National de La Recherche Agronomique (INRA) da França, para uma estada no Brasil. A palavra desses especialistas foi crucial para a escolha da bactéria para estudo. Além disso, a Fapesp convidou o Fundecitrus para ser seu parceiro no projeto.

Em dezembro de 1997, teve início o seqüenciamento da Xylella fastidiosa. O mapeamento da bactéria causadora do amarelinho foi realizado por uma rede de 200 pesquisadores e é um estudo essencialmente brasileiro. Também foi viabilizado um projeto inédito com a formação da rede Onsa - Organização para o Seqüenciamento e Análise de Nucleotídeos, uma malha virtual criada pela Fapesp que reuniu pesquisadores de 35 laboratórios de diferentes universidades e institutos de pesquisa paulistas. A rede Onsa, além de fazer com que a pesquisa fosse possível, não exigiu nenhum investimento em infra-estrutura nem em corpo administrativo, mais uma peculiaridade do projeto.

A Fapesp foi a instituição responsável pela alavancagem do estudo que colocou o país na dianteira da pesquisa genômica na área agrícola, investindo US$ 15 milhões. O Fundecitrus foi o ator responsável pela facilitação do projeto além de parceiro financeiro da Fapesp, patrocinando cerca de US$ 500 mil. A aplicação prática desse estudo é de médio a longo prazo, mas os resultados preliminares já são bastante animadores. Por outro lado, várias informações geradas por outras pesquisas com o amarelinho, resultaram no aperfeiçoamento das técnicas de manejo. A produção de mudas sadias, o controle químico das cigarrinhas (inseto transmissor da doença), e a poda na base do ramo afetado ou eliminação da planta com sintomas graves, faz com que a incidência da doença seja reduzida drasticamente. Quem ganha com isso é o citricultor, que vê seu pomar menos afetado pela doença.

Um outro exemplo de resultado dessa articulação científica para a geração de tecnologia é o trabalho realizado pelo Fundecitrus objetivando o controle do bicho furão, mais uma praga que aflige nossa citricultura. O bicho furão é uma mariposa que deposita seus ovos nos frutos, especialmente maduros, provocando seu apodrecimento e queda. Além de tornar a fruta imprestável, essa larva compromete a qualidade do suco. Nos anos 90, essa praga começou a se alastrar pelos nossos pomares, provocando um prejuízo de aproximadamente US$ 30 milhões/ano. Não se conhecia nada sobre essa mariposa e para combatê-la o produtor pulverizava aleatoriamente os seus pomares. Identificado o problema, nossa instituição passou a atuar.

Em 1997, a pesquisa foi encomendada ao professor Dr. José Roberto Postali Parra, especialista em biologia de inseto da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP). Durante 2 anos, o professor Parra trabalhou para identificar os hábitos do bicho furão. Uma de suas descobertas foi que a mariposa só se movimentava à noite, o que mostrou a ineficiência e o desperdício da pulverização com produtos químicos durante o dia. Também foi desenvolvida uma dieta artificial para a praga como forma de monitoramento. Já em 1999, outro cientista foi acionado, dessa vez o professor Evaldo Vilella, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), especialista em desenvolver feromônio sexual (substância química produzida pelas fêmeas que atrai os machos para o acasalamento). Sob a orientação desses dois cientistas, um dos doutores da equipe do professor Evaldo ficou com a tarefa de descobrir e sintetizar a molécula do feromônio. Foi escolhido o laboratório da Fuji, no Japão, o mais bem equipado para o desenvolvimento da sintetização, e para lá seguiu o nosso doutor. Esse trabalho foi realizado em tempo recorde, sendo concluído em apenas 6 meses. O resultado foi a produção de uma pastilha que contém o feromônio sexual do bicho furão utilizado para o controle dessa praga. O monitoramento é feito através do registro do número de machos adultos coletados e, a partir desse número, é indicado o momento exato da aplicação de inseticidas.

Durante o ano 2000 foram realizados testes em campo para assegurar a qualidade do produto. Provada sua eficácia, o passo seguinte foi viabilizar a sua comercialização. Outro parceiro foi procurado, dessa vez a Coopercitrus (Cooperativa dos Cafeicultores e Citricultores de São Paulo). Achamos que a cooperativa, por ser uma prestadora de serviços ao produtor, seria a ponte ideal para comercializar o kit do feromônio sexual do bicho furão sem intenção de lucro. Acertada a parceria, em 2001 passamos para a fase de registro e ajuste do produto. Sua liberação pelo Ministério da Saúde aconteceu no final de agosto, e agora a Coopercitrus já está importando a pastilha do Japão para disponibilizá-la ao produtor ainda neste mês. Pacote concluído, fica para nossa instituição e os pesquisadores envolvidos o papel de treinar os agrônomos da cooperativa para o uso adequado do produto, disseminar a informação para o produtor, e a satisfação de viabilizar para o setor citrícola o controle de mais uma praga através do desenvolvimento de um pacote tecnológico. Nesse exemplo do bicho furão o Fundecitrus financiou todo o projeto que totalizou US$ 200 mil, valor quase que irrisório quando consideramos a importância do problema e dos resultados obtidos.

O que pretendemos mostrar com esses exemplos é a viabilidade de parceria entre os vários agentes na produção da pesquisa científica, seja ela realizada ou financiada pelo setor produtivo. Basta identificar o foco do problema, buscar os parceiros adequados, determinar atribuições específicas e obter o financiamento necessário. É uma rede de pessoas interessadas no mesmo projeto que deve ser montada. Para isso, consideramos primordial a participação do setor privado como coordenador da pesquisa. Achamos que esse nosso modelo de produção científica vem contribuindo enormemente para a manutenção e crescimento do parque citrícola nacional, e que outros setores poderiam unir esforços da mesma forma. Já está na hora do empresariado brasileiro acreditar na realização de ciência e tecnologia dentro do seu próprio quintal. Só assim deixaremos de ser exclusivamente acadêmicos para implementarmos pesquisas mais aplicadas, concorrendo de igual para igual nesse mercado globalizado.

Concluindo, é preciso ficar atento para o fato de que a ciência e a tecnologia devem agora ser vistos, desenvolvidos e empregados não apenas na inovação tecnológica para atender aos consumidores cada vez mais exigentes, mas para aumentar a competitividade num mundo onde as commodities sofrem constante desvalorização, onde o protecionismo se exacerba caba vez mais, e onde os consumidores e seus governos pretendem consumir produtos politicamente corretos que protejam o ser humano e o meio ambiente. É uma nova forma de ver a C&T, não apenas como ferramenta para ampliação dos negócios mas também para a simples manutenção do mesmo.

Ademerval Garcia é presidente da Abecitrus - Associação Brasileira dos Exportadores de Cítricos e do Fundecitrus - Fundo de Defesa da Citricultura.

Atualizado em 10/09/2001

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