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Carlos Vogt

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Modelagem Matemática Aplicada à Saúde Pública

Hyun Mo Yang

A matemática teve o seu progresso intimamente associado ao esforço para a compreensão dos fenômenos naturais, graças aos espíritos inquiridores de pensadores que não se contentaram apenas com as descrições qualitativas dos mesmos. Desde tempos antigos, a geometria, por exemplo, tem sido desenvolvida para tratar de problemas de mensuração para calcular áreas de terras e volumes de celeiros. A linguagem concisa, precisa e abrangente - em termos de símbolos (ou notações) - da matemática tem sido útil para elaborar idéias e metodologias para compreender e explorar o mundo físico. Não foi sem razão que Galileu defendeu ardentemente uma descrição quantitativa - e dedutiva - dos fenômenos naturais que pudesse ser preditiva (utilizando fórmulas matemáticas), deixando de lado a comodidade de descrições apenas qualitativas e factuais dos fenômenos.

Uma vez que a compreensão de fenômenos naturais deve ser baseada em idéias desenvolvidas a partir de intuições (pensamento novo) e conhecimentos já adquiridos, o uso de modelos é de grande valia. Os modelos são desenvolvidos a partir de uma elaboração cuidadosa de idéias voltadas para partes do fenômeno, que permitirão a aferição das suas hipóteses em confronto com as observações. Assim, modelos podem ser modificados, aprimorados ou substituídos por outros para se obter uma compreensão correta daquilo que está ocorrendo na natureza. O desenvolvimento de modelos matemáticos para explicar as observações do mundo físico teve grande avanço desde tempos antigos. Por exemplo, a lei da atração gravitacional é um resultado de modelagem matemática, e a sua importância deve-se ao fato de ser uma lei universal, ou seja, consegue explicar tanto o movimento das estrelas e galáxias quanto o movimento de pequenos objetos em queda livre na terra. O extraordinário desenvolvimento dos modelos físicos deve-se ao fato de que os fenômenos naturais envolvem seres inanimados que são passíveis de serem observados repetitivamente, o que não é verdade em se tratando de seres vivos. Portanto, devido à extraordinária complexidade de fenômenos biológicos, modelos quantitativos para compreensão destes fenômenos bio-médicos têm menos história que a dos modelos em Física.

Entretanto, desde há muito tempo, a preocupação de alguns médicos com a saúde pública levou-os a uma acurada investigação a respeito de fatores relacionados à transmissão de doenças que assolavam muitas cidades. Das suas observações e conclusões resultaram a moderna epidemiologia - que consiste em determinar e isolar o agente etiológico, a forma de transmissão, a patogenicidade e o nível de prevalência na população. As observações epidemiológicas e a coleta de dados, junto com o acúmulo de conhecimentos bio-médicos, permitiram determinar os fatores relacionados com a transmissão de agentes patogênicos. Neste contexto, as aplicações de análises estatísticas - muitas delas desenvolvidas para explorar e explicar os dados epidemiológicos - foram essenciais pois permitiram discriminar e ordenar fatores envolvidos na transmissão das infecções.

Assim, a determinação de agentes microbianos causadores das infecções e as claras evidências da forma de transmissão pelos modelos epidemiológicos e estatísticos criaram condições para elaboração de modelos matemáticos com a finalidade de entender a dinâmica da sua transmissão. Os modelos matemáticos aplicados à saúde pública têm duplo objetivo: descritivo e preditivo. Em primeiro lugar, um modelo matemático deve explicar a situação vigente de uma epidemia em uma comunidade. Se um modelo não descrever as observações epidemiológicas, então deve-se proceder a uma reformulação de idéias quanto à transmissão da doença. Se um modelo passar por esse primeiro teste, ele pode ser usado para predizer as possíveis mudanças resultantes de alterações nas condições bióticas ou abióticas. É claro que, quando possível, deve ser feita uma nova validação do modelo. Um modelo é considerado robusto se explicar, também, essas mudanças satisfatoriamente.

Exemplo: Epidemiologia matemática de doenças infecciosas.
Para desenvolver um modelo matemático em epidemiologia, deve-se conhecer a biologia da propagação de epidemias para, então, empregar métodos de quantificação dos aspectos essenciais da dinâmica da transmissão do agente infeccioso. Em relação à biologia da transmissão de epidemias, a análise dos conhecimentos biológicos permite a escolha dos fatores essenciais (levando em consideração o que se deseja elucidar) envolvidos na dinâmica da transmissão. A posterior quantificação permite uma síntese das idéias a respeito da transmissão de epidemias. A análise biológica e a síntese matemática permitem desenvolver modelos minimalistas, tão essenciais na compreensão de fenômenos biológicos, pois: 1) ressaltam os efeitos de um fator biológico envolvido na transmissão de epidemias, e 2) oferecem meios de comparação entre dois fatores atuantes na dinâmica. Dessa forma, um modelo matemático minimalista preocupa-se em fazer uma caricatura da realidade, com o intuito de extrair algumas informações úteis.

Um dos fundamentos biológicos a ser considerado no modelo é o tempo de geração de uma infecção. Este tempo é a soma dos períodos latente e infeccioso. Um outro fundamento biológico a ser levado em consideração refere-se à capacidade de indução da imunidade por meio de vacina. Uma vez que um indivíduo suscetível (os que nunca tiveram contato com vírus) seja vacinado, o seu sistema imunitário é estimulado e, então, induzido à produção de anticorpos. Um último fundamento biológico considerado no modelo relaciona-se à capacidade de transmissão da infecção. Para que uma nova infecção ocorra em uma população, um encadeamento de fatores deve ocorrer. O primeiro desses fatores está intimamente ligado com o complexo relacionamento existente entre os indivíduos em uma comunidade. Para que uma nova infecção ocorra, é necessário que indivíduos infectantes (os que tiveram contato com vírus, sobreviveram durante o período latente, e estão eliminando vírus para o meio-ambiente) e suscetíveis tenham encontros relativamente próximos (no caso de transmissão aérea de vírus) para, então, propiciar condições favoráveis para transmissão do agente infeccioso. Entretanto, a efetiva transmissão da infecção depende de transmissibilidade ou infectividade do vírus (a capacidade do vírus circulante infectar um indivíduo suscetível).

Considerando-se esses fatores biológicos, são feitas as hipóteses de quantificação para infecções de transmissão direta. Primeiro, o processo infeccioso inicia-se quando um indivíduo suscetível entra em contato com o agente infeccioso, passando a ser designado de latente (não transmissor da doença), pois nesse período o vírus aumenta de concentração no seu organismo. Posteriormente, vem o período infeccioso, quando os indivíduos são denominados de infectantes, caracterizado pela eliminação do vírus no meio-ambiente e, concomitantemente, pelo combate ao agente invasor com a produção de anticorpos específicos, resultando na eliminação do invasor do seu organismo. Finalmente, tem-se o período imune que, em geral, é permanente e os indivíduos são denominados de recuperados ou imunes. Assim, o modelo considera uma comunidade dividida em quatro compartimentos não interceptantes. Segundo, uma estratégia de vacinação reside em inocular vírus atenuado que possa estimular o sistema imunitário, porém sem o poder de gerar doença (patogenicidade), transferindo os indivíduos suscetíveis diretamente para o compartimento dos indivíduos recuperados, quebrando a cadeia de transmissão da doença. Estuda-se, assim, a vacinação como uma forma de controle de epidemias e, também, de evitar morbidade. Finalmente, no que se refere à transmissão de infecção, uma nova infecção ocorre se um indivíduo suscetível entrar em contato com vírus expelido pelo indivíduo infectante. Esse encontro de pessoas permite, em uma primeira aproximação, considerar que o risco de uma pessoa sadia tornar-se doente é diretamente proporcional ao número de indivíduos infectantes, resultando em um dos fundamentos da epidemiologia matemática, a lei da ação das massas (a hipótese do encontro aleatório entre os indivíduos suscetíveis e infectantes homogeneamente misturados em uma população). Esse risco é designado força de infecção, cujo valor multiplicado pelo número de indivíduos suscetíveis resulta na incidência (número de novos casos da doença por unidade de tempo).

Um modelo baseado nas considerações acima é denominado modelo matemático determinístico compartimental. É um modelo muito simples que descreve muito bem a dinâmica de transmissão de infecções quando a população em estudo é composta por um número muito grande de pessoas. Uma característica desta modelagem é a presença de valores limiares, que é um outro fundamento da epidemiologia matemática. Em outras palavras, a estabilidade dos pontos de equilíbrio é dada unicamente pelo valor limiar relacionado ao parâmetro de contatos. Essa fórmula escrita em função de outros parâmetros fornece o valor limiar (número mínimo) do tamanho da população para que a doença possa se estabelecer em níveis endêmicos. Usando-se os resultados deste modelo, pode-se caracterizar epidemicamente uma comunidade, ou seja, faz-se ajuste dos parâmetros epidemiológicos do modelo. Uma vez determinados os valores para todos os parâmetros do modelo, pode-se considerar a aplicação do modelo.

Um dos objetivos da epidemiologia de doenças infecciosas consiste em delinear os mais eficientes mecanismos de intervenção, quantificando o esforço de cada um deles. Uma das importâncias da modelagem matemática reside na sua aplicação para prever a magnitude de variações quando se varia um conjunto de parâmetros epidemiológicos. Para muitas doenças infecciosas a vacina é uma forma eficiente de controle. Nesse sentido, modelos matemáticos fornecem valores concernentes ao esforço de vacinação (proporção de indivíduos suscetíveis que devem ser vacinados) para diferentes esquemas de vacinações.

O nível de endemicidade de doenças infecciosas pode ser explicado evocando diversos fatores, sejam bióticos ou abióticos. Nesse contexto, modelos matemáticos podem fornecer subsídios para determinar qual o fator preponderante na dinâmica da transmissão de infecções. Para tanto, não se requer gastos elevados na preparação e na execução de experimentos de campo. Por exemplo, a esquistossomíase é uma doença que prevalece em muitas regiões e os esforços de controle desta doença, baseados na aplicação de moluscicidas, em evitar contato com águas infestadas com cercárias e em saneamento básico não conseguiram eliminá-la. Mesmo que todos esses fatores sejam importantes, a dificuldade na erradicação desta doença é mostrada quando se leva em consideração os efeitos da imunidade concomitante na modelagem matemática. Portanto, devido às capacidades preditiva e comparativa, os modelos matemáticos estão ocupando uma posição muito importante na epidemiologia contemporânea.

Hyun Mo Yang é professor do Departamento de Matemática Aplicada do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica da Unicamp

 

Atualizado em 10/02/2002

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