Sem esperança, mas sem desespero

Por Claudio Angelo

Por que parei de acreditar que podemos resolver o aquecimento global

No verso final de seu assombroso poema Quede água?, musicado de forma igualmente assombrosa por Lenine, o letrista Carlos Rennó delineia um guia de sobrevivência para a humanidade no Antropoceno: “Sem esperanças, mas sem desespero/no futuro que tivermos”. Não importa quantas vezes eu ouça, a canção não falha em me levar às lágrimas.

Parte do álbum Carbono (2015), de Lenine, Quede água? pinta um quadro sufocante de como as mudanças do clima e outras formas de degradação ambiental estão retirando do alcance dos seres humanos a substância essencial à vida. A doçura do violão do cantor pernambucano não esconde – antes ressalta – uma narrativa pesada, de selvas virando savanas, rios secando, cidades sendo tomadas pelo mar e nações entrando em guerra “por um córrego, um chuvisco”.

É uma letra sobre resignação, escrita sob o impacto da crise hídrica paulistana de 2014/2015 e evocando o exemplo de resiliência do árido Nordeste – que também nos é lembrado o tempo todo pelas escolhas melódicas de Lenine. Diferentemente de outras canções que abordam a temática ambiental (e acabam virando manuais de conduta insuportáveis), aqui não há chance de final feliz se tomarmos consciência e mudarmos nossos maus modos; há uma situação à qual podemos almejar, no máximo, sobreviver, se aprendermos a lidar com um mundo irremediavelmente piorado.

Ironicamente, essa obra-prima do fatalismo apareceu num tempo de renovação da esperança. Poucos meses depois do lançamento de Carbono, líderes mundiais reunidos em Paris fecharam o primeiro acordo global contra as mudanças climáticas, pondo fim a anos de negociações frustradas. O multilateralismo estava em alta, com EUA e China deixando as diferenças de lado por um instante a fim de tentar garantir a sobrevivência da humanidade (afinal, não há disputa geopolítica possível num planeta destruído). Por um breve momento, as cenas narradas por Rennó pareceram evitáveis.

Quatro anos depois, às portas do ano em que as metas de Paris deveriam começar a ser cumpridas, é preciso encarar os fatos: não há mais chance de limitar o esquentamento da Terra no 1,5oC preconizado pelo tratado como ideal para a segurança climática. Tampouco há chance de uma estabilização “bem abaixo” de 2oC, limiar definido por Paris e pela ciência a partir do qual os impactos climáticos tornam-se muito mais difíceis de manejar. Salvo em caso de milagre ou de algum cataclismo thanosiano, devemos nos preparar para um aquecimento ao redor de 3oC no fim deste século. Quanto mais cedo admitirmos que não há final feliz em vista, mais cedo poderemos nos preparar para o que vem por aí. Sem esperanças, mas sem desespero.

Os líderes que negociaram o Acordo de Paris sabiam que o tratado já nascia sob um risco enorme: seu sucesso era totalmente dependente do alinhamento de astros único daquele momento da história. Sua implementação estava condicionada não apenas à manutenção, mas a uma ampliação da cooperação internacional para além dos sonhos mais loucos de qualquer marxista-cultural-globalista. Paris demandava mais multilateralismo, mais transferência de tecnologia, mais solidariedade internacional, mais dinheiro fluindo dos países ricos para os pobres.

E, mesmo assim, a chance de dar certo sempre foi pequena. Em 2018, no seu relatório Aquecimento Global de 1,5oC, o SR15 – o documento mais importante e mais criminosamente desprezado já escrito neste século –, o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) conclui que não há nada nas leis da física que impeça a humanidade de atingir a meta do 1,5oC. Só que, para termos uma chance de 66% de estabilização, o nosso “teto de gastos” de CO2, ou seja, tudo o que podemos emitir daqui até o final dos tempos, seria algo entre 570 bilhões e 420 bilhões de toneladas. Como hoje emitimos cerca de 50 bilhões de toneladas por ano, gastaríamos o borderô em cerca de uma década. O problema é que a incerteza nesse número pode ser de 750 bilhões de toneladas ou mais. Ou seja, não pode ser descartada a possibilidade de já termos estourado nosso limite.

Pare por um momento para refletir sobre a premissa: o maior indicador de sucesso do acordo do clima seria uma chance de dois terços de nos mantermos na meta. Imagine-se agora entrando num avião e ouvindo antes da decolagem que seu voo tem uma chance de um terço de não chegar ao destino. Rejeitamos um risco pessoal dessa magnitude, mas embarcamos felizes num risco planetário semelhante. E nem ele estamos evitando.

Como o papel aceita tudo, o IPCC traduziu esses borderôs numa frase críptica sobre trajetórias de emissão que é uma pérola do autoengano: “Em trajetórias modeladas que excedem pouco ou nada o 1,5oC, as emissões antropogênicas líquidas declinam cerca de 45% em relação aos níveis de 2010 até 2030”. É mais ou menos o equivalente a um diagnóstico de câncer terminal que o médico assinasse com um smiley e um PS: “Sorria! Enquanto houver vida há esperança!”

Porque a chance de as emissões caírem em 45% em relação aos níveis de uma década atrás nos próximos 11 anos, meus amores, é nula. As próprias metas dos países em Paris, as NDCs, que mesmo cumpridas à risca nos levariam acima dos 3oC, têm calendário de cumprimento até 2030 e o ajuste de sua ambição antes disso é incerto. Em dezembro do ano passado, o consórcio Global Carbon Project mostrou que as emissões cresceram quase 3% entre 2017 e 2018 e afirmou que o pico nas emissões “ainda não pode ser vislumbrado”. A China, que sozinha emite quase um quinto do CO2 do planeta, pretende aumentar suas emissões absolutas até 2030. E somente as usinas termelétricas a carvão já contratadas ou em construção na Ásia já levarão ao estouro da meta.

Se a matemática e a física parecem implacáveis é porque ainda não falamos da política. Não há nenhuma carta no baralho político internacional hoje que sequer se aproxime dos objetivos do Acordo de Paris. Estamos testemunhando o exato oposto: a ascensão da extrema-direita em países como os EUA (2o maior emissor), o Brasil (7o maior) e vários países da União Europeia (3o maior) reduz os espaços democráticos, manda às favas a cooperação internacional, corta ajuda financeira aos países pobres, refreia o ímpeto europeu de liderança e elimina a ciência das políticas públicas. Basta dizer que o ministro do Meio Ambiente do Brasil, em tese o encarregado de liderar a implementação das metas do país, é negacionista do clima. Mesmo que sejam transitórios, o populismo de direita e seu negacionismo embutido roubaram o resto do tempo que já não tínhamos para agir.

Qualquer adolescente que olhe para o cenário pode perceber o tamanho da enrascada. E, de fato, uma adolescente percebeu: a sueca Greta Thunberg, 16, que em 2018 iniciou uma greve escolar solitária por mais ação no clima que explodiu em 2019 num movimento global e tornou “greve pelo clima” o termo do ano em língua inglesa do dicionário Collins (o mesmo que consagrou “fake news” em 2017).

A resposta dos adultos ao movimento iniciado por Thunberg é o puro creme do mindset que nos trouxe aonde chegamos: “aiiiinn, mas que radical!” ou “riquinha que nunca passou fome e quer ferrar as criancinhas pobres”, ou, ainda, “simplista, fundamentalista e pré-política”, nas palavras do sociólogo Demétrio Magnoli. Migo, seu loko, deixa o Ernesto Araújo te explicar o que é “fundamentalismo”. Há 30 anos a ciência vem gritando sobre as causas e da mudança do clima e os riscos da inação. A “política” não fez nada. Não sei se Magnoli e outros sábios que analisam o século 21 com lentes do 20 têm filhos e netos. Mas, diante do que está em jogo, o movimento de jovens surpreende por ser pouco radical. O tempo acabou, queridos. Faz duas décadas que o tempo acabou.

Há um tabu no movimento ambientalista e na ciência sobre dizer abertamente que não dá mais para conter a mudança do clima. Pessimismo desengaja, diz o mantra da comunicação climática: se as pessoas acharem que não dá para mudar nada, não farão nada. Essa noção precisa cair. Há 20 anos eu escrevo sobre clima e há 20 anos assisto às mesmas cenas de contorcionismo retórico segundo as quais “se agirmos agora podemos evitar o pior”. Há 20 anos o “agora” é chutado um pouco mais para a frente. Alguns pesquisadores, como o americano David Victor e o alemão Oliver Geden, e escritores, como os americanos Jonathan Frazen e David Wallace-Wells, vêm gritando que o rei está nu. Passa da hora de engrossar esse coro.

Porque a esperança é péssima conselheira a esta altura do campeonato. A esperança nos autoriza a esperar mais um pouco antes de investir trilhões de dólares para preparar cidades como Beira e Luzon contra supertufões, ou restaurar manguezais e construir quebra-mares no Rio, em Santos e em Recife para proteger contra ressacas mais frequentes. A esperança em evitar o pior nos autoriza a procrastinar com o planejamento do abastecimento de água em Brasília e em São Paulo e a tratar nossas hidrelétricas como se no futuro elas fossem gerar a mesma energia que sempre geraram no passado. A esperança nos faz tolerar desmatamentos adicionais no Brasil.

Mas, o pior de tudo, a esperança nos dá o conforto de não precisar olhar com a urgência necessária para bilhões de pobres, que terão seu acesso a comida, água e serviços básicos ainda mais dificultado pelo clima nas próximas décadas e adoecerão mais, morrerão mais e migarão mais. Se 1 milhão de refugiados sírios na Europa redesenharam a vida e a política no continente, imagine o impacto de centenas de milhões de migrantes no mundo todo.

Como ensina Carlos Rennó, não ter esperança não significa ceder ao desespero. Não há uma fronteira fixa entre 2oC e o apocalipse. Cada termelétrica fóssil desligada e cada hectare de Amazônia preservado é menos carbono na atmosfera e menos desgraça no nosso caminho. O ambientalismo e a ciência importam mais do que nunca, e as tecnologias de substituição aos combustíveis fósseis também ajudam a melhorar a qualidade de vida de todo mundo. A transformação da economia global já em curso precisa ser acelerada e a dimensão climática não pode mais ficar de fora da política e do voto. Não salvar tudo não significa perder tudo. Mas é preciso pressa e – sim – uma boa dose de radicalismo para salvarmos o que resta.

No futuro que tivermos.

Claudio Angelo, 44, é coordenador de Comunicação do Observatório do Clima e autor de A espiral da morte – como a humanidade alterou a máquina do clima (Companhia das Letras, 2016). E-mail: claudioangelo@observatoriodoclima.eco.br

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