Um fantasma assombra o mundo. Mas… qual é mesmo sua identidade?

Por Reginaldo C. Moraes

O reino da pós-verdade não é uma consequência de qualquer “determinismo tecnológico” ou o fruto da “explosão da informação” que, supostamente, caracteriza nosso cotidiano, balcanizando e fragmentando a informação, disseminando a crença em tudo e, portanto, em nada. Aquilo que por vezes se tem chamado imprecisamente de “sombra do fascismo” é um filho legítimo do movimento de fim da história, isto é, da caricatura de democracia liberal e de mercado livre que os poderes fáticos do centro do mundo impuseram ao planeta como destino inelutável. É surpreendente que os personagens vocacionados para o sucesso hoje sejam encarnação da “anti-política”? Pode ser um empresário excêntrico e agressivo, pode ser um chefe cripto-hitleriano. A emergência desses tipos é uma descendência legítima da apologia da globalização. A mídia conservadora americana não via Trump como o candidato dos sonhos. Mas não podem rejeitar a paternidade. A imprensa liberal também o recusa, evidentemente. Mas não pode negar que ele é a versão cínica e truculenta daquilo que fazem, elegantemente, os falcões globalistas do Partido Democrata.

Em 2016, algumas eleições em países desenvolvidos registraram resultados inquietantes. Revelaram uma tendência relativamente nova: a degradação do eleitorado de “centro” ou “centro-esquerda” e o crescimento de alinhamentos extremistas. Duas dessas disputas, em particular, contrariaram as pesquisas de opinião e surpreenderam analistas da mídia e da academia: a decisão do Reino Unido de sair da União Europeia (o chamado Brexit) e a escolha de Donald Trump para a presidência norte-americana.

Em todos os casos parece insinuar-se, como caldo de cultura vitaminador, uma reação a efeitos deletérios do que se chama de globalização – a desagregação de comunidades, o desemprego, as ondas de imigrantes produzidas por desastres econômicos ou intervenções militares, estes últimos fenômenos diretamente gerados pelos governos de países “civilizados”. Essas motivações foram sublinhadas por diversas análises nos casos Brexit e Trump tanto no Reino Unido quanto nos Estados Unidos onde, curiosamente, a apologia da globalização era discurso avassalador na mídia, incluída a mídia moderada ou “progressista”. Tal apologia chegou a ser chamada de “pensamento único” a partir da famosa frase de Margareth Thatcher: “There’s no alternative” (“Não há alternativa”; a abreviatura em inglês tornou-se famoso e poderoso slogan político: “Tina”). A inevitabilidade da globalização foi o tom predominante na “modernização pragmática” dos partidos classificados na centro-esquerda, como o trabalhista inglês e o democrata norte-americano – personificada em Tony Blair e Bill Clinton, respectivamente.

O “pensamento único” e sua poderosa “mídia”, detentora do agenda-setting, foram rejeitados? Contra a frase de Pirandello, assim parece mas assim não é. Sob essa superfície em que parece brilhar a recusa do ponto de vista da direita “moderna” e globalista existe um efeito não necessariamente esperado, talvez não desejado, mas absolutamente legítimo, carnal, de sua atividade criadora. Aquilo que por vezes se tem chamado imprecisamente de “sombra do fascismo” é um filho legítimo do movimento de fim da história, isto é, da caricatura de democracia liberal e de mercado livre que os poderes fáticos do centro do mundo impuseram ao planeta como destino inelutável.

A ideia mestra do “pensamento único” neoliberal é esta: as decisões produzidas pelas relações de mercado são superiores àquelas produzidas por mecanismos políticos (assembleias, eleições etc.). O mercado é eficiente, impessoal, meritocrático. A política é ineficiente, desonesta, aberta ao compadrio. A versão midiática extremada desse argumento, sua forma agressiva de popularização é o desprezo e, mesmo, a criminalização da política.

Estabelecido o cenário do parágrafo anterior, é surpreendente que os personagens vocacionados para o sucesso sejam encarnação da “anti-política”? Pode ser um empresário excêntrico e agressivo, pode ser um chefe cripto-hitleriano. Insisto: a emergência desses tipos – ainda que surfando sobre as motivações de “perdedores da globalização neoliberal” – é uma descendência legítima da apologia da globalização, isto é, do discurso acima resumido. A mídia conservadora americana e o Tea Party não viam Trump como o candidato dos sonhos. Mas não podem rejeitar a paternidade. A imprensa liberal filo-clintoniana também o recusa, evidentemente. Mas não pode negar que ele é a versão cínica e truculenta daquilo que fazem, elegantemente, os falcões globalistas do Partido Democrata.

Mas… como chegamos a tais paradoxos?

A literatura sobre as relações entre mídia e política é enorme. Vai muito além do que cabe neste artigo e na minha competência pessoal. Vou retomar apenas meia dúzia de argumentos que talvez nos ajudem a entender fenômenos contemporâneos intrigantes. Se não explica, ajuda a desbastar o caminho.

Complexo midiático, ferramenta do poder e parte do poder
Em 1956, Wright Mills* esboçou uma análise em The power elite (publicado no Brasil em 1975: A elite do poder, Zahar, capítulo XIII, “A sociedade de massas”) dos meios de comunicação que, de certo modo, revia os julgamentos que fizera anos antes. Em 1950, Mills escrevera um ensaio (“Os meios de comunicação de massa e a opinião pública, capítulo XVI de Power, politics and people, publicado no Brasil pela Zahar em 1965) apontando a eleição de Truman – contra a vontade da mídia e as previsões das pesquisas – como uma prova da “independência de julgamento” do povo norte-americano e dos limites de influência da mídia. Em 1956, retificava essa avaliação. E esse novo argumento parece luminoso para entendermos o presente.

Mills começa por reconhecer que, de fato, os indivíduos tomam decisões a partir de seus interesses e de sua realidade “material”. Mas os interesses precisam ser identificados, definidos, interpretados pelos indivíduos. E nesse intervalo – entre o que se chama de realidade e a sua percepção – atuam os meios de comunicação. Mills “desculpa” Marx por subestimar esse efeito porque, diz ele, no seu tempo não existia rádio, cinema ou TV.

Os meios de comunicação, diz ele, “determinam as imagens, os maneirismos, os padrões e os objetivos das massas urbanas”. E, desse modo, geram “uma espécie de esquema para emoções de massa programadas de antemão”. O efeito é profundo, é mais do que um véu sobre a realidade, os meios “expropriam a capacidade de visão”. Seu enunciado é precioso:

“O sistema de comunicações de massa dos Estados Unidos não é autônomo; reflete a sociedade, mas de maneira seletiva; reforça determinados aspectos, generalizando-os, e através dessa generalização e reforço cria todo um mundo.”

Chamo atenção para o termo “autônomo”. Não há neutralidade ou moto interno nesse sistema. Ele é focalizado e, portanto, depende de quem controla o foco. Esse detalhe é relevante para percebermos como, dez anos depois, um ideólogo e estrategista da nascente Nova Direita abordava o mesmo tema.

Em 1975, Kevin Phillips publicava Mediacracy: American parties and politics in the communications age. Nele, o autor (e ator político) afirmava que a nova mídia, concentrada e com audiência nacional, estava superando o papel da velha aristocracia americana, da elite empresarial conservadora e da imprensa dos barões regionais.

Mais uma vez, o argumento precisa ser contextualizado para entendermos seu sentido. Phillips escreve em um momento em que as grandes corporações americanas começam uma ofensiva organizada para moldar a opinião pública e conter as “ameaças ao livre mercado”. A Câmara de Comércio e outras entidades faziam o chamado e as grandes empresas e fundações “filantrópicas” dos líderes empresariais conservadoras começavam a criar numerosos think tanks, grupos de ação e propaganda, exércitos de lobistas e “formadores de opinião”. Por isso chamei a atenção para o termo utilizado por Mills: os meios não são autônomos, seu foco é dirigido.

A ceva do rebanho e a construção dos currais
De fato, essa ofensiva corporativa é bem mais antiga. Desde 1930. Só que agora as dimensões eram outras. Dos salões de culto, jornais e revistas locais, cadeias de rádio para a telinha omnipresente e omnisciente. O novo altar, o novo pastor.

Kevin Kruse conta essa estória em One nation under God: how corporate America invented christian America. Um conjunto de empresários, preocupados com o avanço de ideias “coletivistas”, tomaram a iniciativa de organizar um contra-movimento destinado a disputar a hegemonia, isto é, a criar um outro senso comum na sociedade americana. A primeira coisa que tinham que fazer era identificar os instrumentos e os atores adequados. E assim mapearam uma rede de líderes religiosos conservadores, conectando-os com o mundo da mídia. Em pouco tempo, o rádio-evangelismo se propagou. Mais tarde a campanha “cívica” se estenderia à telinha da TV. E esse foi um tremendo salto de custos mas, também, de alcance e penetração.

O televangelismo revelou-se um tremendo agente de domesticação das massas e de cristalização de um movimento conservador de larga audiência. A migração do salão de culto para a telinha foi quase que natural, embora bem programada. O outrora reservado espaço do oratório, canto sagrado para uma estátua ou quadro, dava lugar a outro espaço, também sagrado e coercitivo, a sala da TV: quando o aparelho mágico fala e exibe suas imagens, calamos, ouvimos, por vezes nos inebriamos ou, simplesmente, seguimos a fé. Não por acaso, as igrejas perceberam que tinham que ir à TV: não se trata apenas da TV ir ao templo, o que também acontece, mas do templo se deslocar para a TV. A “participação”, a comunhão, a “Eclésia”, a reunião dos espíritos se faz pela tela.

Se o televangelismo foi um capítulo importante desse empreendimento ideológico, a transformação do jornalismo em info-entretenimento não foi menos importante. Se a TV exibe novelas e filmes, cada vez mais faz o “noticiário” parecer a uma novela. O “jornalismo” policial dramatiza os eventos, as mesas-redondas esportivas criam pantomimas ensaiadas, o telejornal é construído como uma sequência de tomadas. Não parece causal que o editor do Jornal Nacional, da Globo, seja um publicitário e não um jornalista: o JN é uma sequência de tomadas “artísticas” destinadas a produzir uma emoção. Tudo é desenhado para esse fim, da seleção de temas relevantes ao tom da narrativa, das imagens e infográficos às caras e bocas dos apresentadores, dos depoimentos dos “especialistas” ao formato das manchetes.

O reino da pós-verdade não é, assim, uma consequência de qualquer “determinismo tecnológico” ou o fruto da “explosão da informação” que, supostamente, caracteriza nosso cotidiano, balcanizando e fragmentando a informação, disseminando a crença em tudo e, portanto, em nada.

Mágicos S.A. – o mercado da ilusão programada
A pós-verdade é um objetivo programado e, até, um ramo de negócios, um empreendimento. É isso, de certo modo, o que mostra o livro de Ari Rabin-Havt – Lies, incorporated: the world of post-truth politics. O autor – que já escrevera uma instigante análise do fenômeno Fox News, afirma que a democracia americana (entre outras) fora capturada por agentes que partiam do princípio da não existência de algo classificável como “a verdade”. Eram profissionais da “pós-verdade”. Essa prática deliberada da mentira, diz ele, destrói a confiança pública no sistema político e desvia a atenção desse público de temas como a regulação legal. Para completar, a enxurrada de mentiras manufaturadas cria uma balcanização da cultura política, tornando impossível qualquer consenso ideológico.

A avaliação é grave e, de certo modo, confirmada pelos próprios agentes que ele cita. Certa vez um ideólogo neocon, David Horowitz, disse, acintoso: O importante é você ter um slogan, repeti-lo, colocá-lo na TV – “na política, televisão é realidade”. Isso explica, em certa medida, o tamanho e relevância adquiridos pelos movimentos neoconservadores. A presença na mídia lhes deu uma amplitude muito maior do que realmente possuíam. Fala-se, assim, em um tsunami reacionário com Trump – quando, na verdade, a eleição de Trump foi, nesse sentido, até mesmo um fiasco. Ele não teve mais votos do que seus antecessores – McCain e Mitt Romney. O sucesso se deu em outra dimensão: a capacidade de jogar com as regras do sistema e ganhar mesmo perdendo. E, principalmente, alardear a veracidade do “tsunami” que não houve.

Robert King Merton sublinhara a diferença entre o comportamento dos corpos físicos e o dos humanos. O enunciado da lei galiléica da queda dos corpos que não altera o comportamento da pedra. Mas o enunciado das inclinações do comportamento do ser humano em determinadas condições certamente o faz, se o “objeto” toma consciência dessa inclinação. Isso o transforma em sujeito, em algo que reage à previsão da lei e a altera fundamentalmente. Isso supõe, é claro, o acesso a tal conhecimento e à capacidade de interpretá-lo. Merton, uma das cabeças mais brilhantes da ciência social americana, fez a mais aguda das observações: o que aconteceria se tal conhecimento fosse exclusivo de determinado conjunto de indivíduos? A simples pergunta provoca arrepios na espinha.

A formação de um corpo de “especialistas” e a montagem de uma máquina de produção e condicionamento de percepções conduziria, talvez, àquilo que se poderia chamar de realidade paralela da “pós-verdade”. Não, não necessariamente isso é uma conspiração ou um filme de Indiana Jones. É um resultado da mercadorização geral da vida, inclusive da atividade política. A produção da pós-verdade se torna um ramo de negócios. Kevin Phillips dizia que o complexo midiático substituía partidos, oligarquias dominantes. Melhor retificar: ele é parte relevante desse aparato de dominação…

Voltemos ao começo deste artigo. Quando chega ao seu clímax, a ideologia da “mercadorização geral” não se dá bem com profissionais da política. Gente como Ted Cruz, Rick Santorum, Rand Paul, Aécio Neves e Fernando Henrique são demasiadamente identificados com o perfumado mundo da política profissional. No ponto de fusão, a política da não-política precisa de outsiders, aparentemente anti-sistêmicos mas profundamente conservadores. E essa mistura costuma ser explosiva.

Reginaldo C. Moraes é professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) e pesquisador-produtividade do CNPq. Nos últimos anos tem dirigido projetos sobre Estados Unidos com apoio da Fapesp.

* Os mais importantes livros de Wright Mills foram publicados pela Editora Zahar, mas estão esgotados. As obras em português ainda podem ser adquiridas após buscas pacientes em sebos. Para mais informações sobre Charles Wright Mills, leia o texto de José Paulo Netto no blog da Editora Boitempo [nota do editor].