A Unicamp e os novos desafios de inclusão

Por José Alves de Freitas Neto

O intuito da Unicamp com as cotas é ampliar a presença da população negra entre seus estudantes e promover a convivência entre grupos diversos quanto às origens étnicas, sociais e culturais. As experiências indicam que as cotas são um instrumento para combater o racismo existente na sociedade brasileira e as fortes desigualdades determinadas pela origem étnico-racial, num país marcado pela exclusão e por seu passado escravocrata. 

Muitos poderiam se perguntar se a adoção de cotas étnico-raciais não seria suficiente para a inclusão dos indígenas. A resposta é não. As realidades educacionais de indígenas e da população negra não são comparáveis. Embora os dois grupos tenham sido tradicionalmente excluídos, a população negra foi submetida à educação regular tradicional contemplada pelo vestibular. Submeter estudantes com experiências educacionais muito distintas a um processo de seleção padronizado é perpetuar a exclusão de indígenas. 

A Unicamp implementará mudanças em seu sistema de ingresso aos cursos de graduação a partir de 2019. A adoção de cotas étnico-raciais para autodeclarados pretos e pardos e a criação de um vestibular indígena são duas das mais importantes alterações do ponto de vista da diversidade do perfil de estudantes e da pluralidade de saberes e experiências que eles trazem consigo. A ideia é que a universidade tenha em seu interior a representatividade da população e sua diversidade sociocultural, econômica e de trajetória escolar.

A estrutura educacional brasileira é extremamente seletiva e excludente. Os sistemas de seleção, via Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ou pelos vestibulares das principais universidades públicas, reproduzem uma lógica de hierarquização e privilégios naturalizados ao longo do processo escolar. Na Unicamp, no vestibular de 2018, mais de 83 mil candidatos disputarão 3340 vagas, numa média de 25 candidatos por vaga. O perfil étnico-racial contempla uma maioria de inscritos brancos e submetidos a um processo de escolarização que privilegia saberes e protagonismos dos grupos brancos. O silenciamento e a invisibilidade de saberes que não são de matriz europeia é uma forma de perpetuar preconceitos e legitimar escolhas epistêmicas que marginalizam saberes indígenas, africanos e afro-americanos.

A Constituição brasileira prevê que a educação seja universalizada e que, ao mesmo tempo, múltiplos saberes sejam contemplados para promover o exercício da cidadania. Mas, para negros e indígenas, o reconhecimento e o respeito a seus direitos, saberes e culturas ainda são um desafio. A perspectiva eurocêntrica do pensamento científico e social é tão arraigada que, para muitos, é quase uma heresia colocar em perspectiva que haja outros saberes que devem ser contemplados e considerados para além do exotismo e da curiosidade.

O processo de escolarização é um dos fundamentos para a cidadania e para a democratização dos saberes, técnicas e artes. Mas as escolas também perpetuam as desigualdades que deveriam combater. O rendimento escolar não é uniforme e não ocorre com a mesma velocidade em nenhum grupo. A heterogeneidade étnico-racial, social e a desigualdade econômica têm uma grande correlação com o desempenho escolar em qualquer tipo de estudo sobre sistemas de avaliação e impactam processos seletivos, como o vestibular.

A democratização do ensino, o maior acesso às escolas, não significou um sistema minimamente igualitário. Qualquer banco de dados sistemático indica as oscilações entre regiões e famílias com perfis sociais, culturais e econômicos diferentes. A escola, seguramente, não é a única produtora de valores, nem a única instituição capaz de impactar transformações no capital simbólico e cultural de uma pessoa.

Nesse sentido, ao pensar a reformulação de seu sistema de ingresso, a Unicamp retoma alguns dos princípios defendidos na criação de seu vestibular, em 1987. Quando o professor Rubem Alves, em 15 de outubro de 1985, propunha a criação de um vestibular próprio para a Unicamp ele registrou que sendo “inevitável que haja um processo de seleção daqueles que vão ingressar em nossas universidades, é necessário não nos esquecermos de que há muitas alternativas ainda não exploradas de se fazer isto”.[i] A variedade de critérios de admissão, como as cotas e o vestibular indígena, pode reduzir as desigualdades de acesso e fortalecer a pluralidade de pessoas, saberes, histórias e experiências que estimulem a produção de outros conhecimentos e modos de ler o mundo.

O vestibular indígena

A criação de um vestibular específico para os indígenas justifica-se como uma política de ação afirmativa que, para além da inclusão, reconhece direitos culturalmente diferenciados desses povos. A adoção de processos seletivos diferenciados parte da constatação de que a escolarização indígena tem suas especificidades e que essas, por sua vez, devem respeitar os modos de produção e transmissão de conhecimentos próprios de cada povo, como previsto na Constituição Federal.

O reconhecimento da educação diferenciada não se coaduna com a proposta de um vestibular único. A existência de escolas específicas, bilíngues, interculturais e diferenciadas, além da experiência de muitos que não possuem o português como língua materna, são algumas das justificativas para um processo seletivo próprio para os indígenas.

Muitos poderiam se perguntar se a adoção de cotas étnico-raciais não seria suficiente para a inclusão dos indígenas. A resposta é não. As realidades educacionais de indígenas e da população negra não são comparáveis. Embora os dois grupos tenham sido tradicionalmente excluídos, a população negra foi submetida à educação regular tradicional contemplada pelo vestibular. Submeter estudantes com experiências educacionais muito distintas a um processo de seleção padronizado é perpetuar a exclusão de indígenas. Na Unicamp o ingresso de indígenas é pequeno. Nos últimos dez anos, dependendo da edição do vestibular, foram selecionados entre 7 e 17 candidatos indígenas num universo de mais de 3300 aprovados, enquanto os negros foram 22% dos matriculados em 2017.

As políticas de inclusão não devem significar homogeneização e de destruição das diferenças. Os indígenas lutam por reconhecimento das diferenças e das equivalências nas experiências educacionais.

O vestibular indígena fará com que candidatos com experiências educacionais similares concorram entre si. A proposta em discussão na Unicamp prevê, num primeiro instante, a adesão voluntária dos cursos de graduação e o oferecimento de, no mínimo, duas vagas adicionais em cada curso. Com as duas vagas, espera-se, que os indígenas selecionados não se sintam isolados e tenham, sob vários aspectos, a oportunidade de compartilhar experiências e superar os desafios em sua trajetória acadêmica.

Durante as audiências públicas realizadas na Unicamp, em 2016, lideranças estudantis, pesquisadores e professores indígenas relataram experiências e manifestaram a importância de a universidade potencializar a presença de indígenas a partir de um vestibular próprio. As questões pontuavam que, para além da inclusão dos estudantes, a Unicamp ganharia com a diversidade. Tratava-se de uma oportunidade também para a instituição. Num dos depoimentos registrados nas audiências, lemos um emocionante relato de Maiara, Terena de Mato Grosso do Sul e estudante de ciências sociais:

“E nós hoje estamos lutando por um outro território, um território universitário científico, nós estamos através das cotas, através das ações afirmativas, lutando por um novo território, o território onde a gente possa dialogar sobre os nossos conhecimentos tradicionais, e os conhecimentos adquiridos na universidade. E estamos lutando a favor disso, e tentando não só fazer esse diálogo, mas também fazendo com que a universidade consiga ter frutos com isso.[…] A gente pode trazer muito benefício para a universidade, mas a gente também está não só pela universidade, a gente está cada um pelo seu povo, cada uma pela sua família, cada um buscando seus objetivos, não de forma individual, não por uma profissão, a gente busca políticas que nos beneficiem, não só em questão de buscar direitos, não só na questão de tipo, ah, estou aqui porque é direito meu, não apenas isso, a gente busca benefícios para outros que esperam de nós. E a gente vive nesse constante impasse de sermos indígenas, de mantermos uma tradição, de mantermos um pensamento político, e ao mesmo tempo estarmos aprendendo outras coisas, e assim o grupo vai construindo políticas dentro da universidade”[ii]

A referência à busca de uma outra territorialidade, a de saberes universitários para além dos saberes tradicionais, à busca de direitos para o seu povo e pela tarefa que assumem diante de seus grupos é uma forma muito diferente de se relacionar com a universidade. A nova territorialidade é importante para a convivência multicultural de indígenas e do restante da população brasileira.

Os povos indígenas têm seus direitos constantemente ameaçados. As reservas indígenas, por exemplo, são alvo de investidas constantes. Aproximadamente 13% do território brasileiro está sob administração dos povos indígenas, sendo que na Amazônia Legal esse número se aproxima de 25% de sua extensão. A diversidade cultural e étnica presente nos territórios indígenas e a biodiversidade são patrimônios inegáveis para o mundo e as universidades ainda conhecem muito pouco desses universos. Ter estudantes dessas regiões, tal como os indígenas que vivem em grandes cidades, são algumas das possibilidades de incremento na pesquisa e no ensino de que se beneficiariam as universidades, caso promovessem maior inclusão de indígenas.

A presença de maior contingente de estudantes indígenas apresentará desafios para a Unicamp e para as universidades que decidem implementar ações mais vigorosas para promover a inclusão. O modelo de organização da vida universitária deve se deslocar para acolher e conviver com as diferenças e outras visões de mundo. As formas de aprendizagem e de circulação de saberes não podem ser vistas como uma posse individual ou como uma mercadoria que se acumula. Outras referências epistemológicas e de compartilhamento devem ser experimentadas com a maior presença de indígenas. As práticas comunitárias presentes na maior parte dos mais de 260 povos, por exemplo, devem ser um estímulo para outras práticas de aquisição do conhecimento, de produção da ciência e de valorização das culturas.

Passado o desafio do ingresso, emergem outras questões igualmente importantes, como a política de permanência e de desenvolvimento acadêmico. No caso dos indígenas, as questões são ainda mais complexas do que aquelas relacionadas à inclusão de estudantes contemplados com políticas de ação afirmativa. Para não nos alongarmos na questão é necessário pensar em novas práticas didáticas, oferecimento de apoio para a adaptação ao universo acadêmico, promover ações para atenuar o risco de evasão e estimular os vínculos entre os estudantes e suas comunidades, além de coibir qualquer forma de discriminação e racismo.

As cotas para a população negra

A adoção do princípio de cotas étnico-raciais, aprovada pelo conselho universitário em 30/05/2017, expressou o reconhecimento de que a Unicamp deve definir políticas para ampliar a diversidade étnico-racial do seu corpo discente, de modo a garantir que os diferentes grupos da sociedade estejam representados entre os estudantes admitidos na instituição, permitindo, assim, acesso a uma formação de qualidade a grupos tradicionalmente excluídos. A discussão na Unicamp foi exitosa graças à atuação do movimento negro, que há muito reivindicava a adoção das cotas e encampada, mais recentemente, pelo movimento estudantil.

Conhecendo as experiências de ação afirmativa realizadas na própria Unicamp, como o Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social (PAAIS), criado em 2004, e o Programa de Formação Interdisciplinar Superior (ProFIS), de 2011, a universidade decidiu avançar na proposta de inclusão de pretos e pardos. A experiência exitosa em outras universidades do país fez com que a Unicamp apresentasse um modelo ousado, que busca ter em seus quadros a mesma representatividade da população negra do estado de São Paulo, ou seja, 37,2% de seus matriculados.

A adoção das cotas, portanto, é um mecanismo que visa ultrapassar os índices observados nos vestibulares anteriores, como se observa nos gráficos.

Porcentagem de candidatos autodeclarados pretos e pardos (PP), inscritos e matriculados, segundo o ano do vestibular. Fonte: Dados compilados a partir do site da Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest): www.comvest.unicamp.br

As cotas étnico-raciais, excluídos os indígenas pelos motivos explicitados anteriormente, pretende que todos os cursos e turnos tenham a meta estabelecida pelas cotas. Os dados entre 2003 e 2017 mostram que houve crescimento de autodeclarados pretos e pardos, mas omite que a distribuição entre os cursos não é homogênea nos cursos, conforme a política de bonificação aplicada no PAAIS.

O intuito da Unicamp, com as cotas, é ampliar a presença da população negra entre seus estudantes e promover a convivência entre grupos diversos quanto às origens étnicas, sociais e culturais. As experiências indicam que as cotas são um instrumento para combater o racismo existente na sociedade brasileira e as fortes desigualdades determinadas pela origem étnico-racial, num país marcado pela exclusão e por seu passado escravocrata.

A convivência entre grupos diversos quanto às origens étnicas, sociais e culturais, um dos resultados esperados da ampliação de estudantes negros e das outras políticas de ação afirmativa implantadas na Unicamp, deve servir como instrumento para o combate a quaisquer formas de preconceitos, sobretudo o racial. Outro ponto importante a ser assinalado é que uma universidade plural é desafiada a pensar outros temas, e a multiplicar os pontos de vista sobre os problemas científicos e sociais com que lidam estudantes e professores.

Os bons desafios que a comunidade acadêmica da Unicamp se propôs indicam uma nova postura.  Uma postura que desestabiliza concepções, procura ser mais inclusiva e reforça o compromisso com toda a sociedade, fazendo com que todos os grupos convivam num espaço de respeito, solidariedade e valorização das diferenças e da cultura democrática.

José Alves de Freitas Neto é professor do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e coordenador executivo da Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest). Autor de Bartolomé de Las Casas: a memória trágica, o amor cristão e a memória americana (Annablume) e coautor de A escrita da memória (ICBS) e História geral e do Brasil (Harbra). É autor de diversos artigos e capítulos sobre cultura e política na América Latina (séculos XIX e XX).

[i] Comissão Permanente para os Vestibulares da Unicamp (Comvest). Vestibular Unicamp: 30 anos. Campinas: Editora da Unicamp, 2016. p. 12.

[ii] Ver http://www.comvest.unicamp.br/wp-content/uploads/2017/06/Proposta-Gt-Audi%C3%AAnciasP%C3%BAblicas-e-Cotas2016-17.pdf. p. 27. Acesso em 08/11/2017.