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Para evitar pressão extrativista e falhas na cadeia produtiva, Unicamp pesquisa domesticação de plantas medicinais
Extrativismo gera pressão sobre os recursos naturais, oferta incerta e baixa confiabilidade do material obtido, aponta pesquisador da Divisão de Agrotecnologia do Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas (CPQBA), onde foram concebidas as duas primeiras cultivares do Brasil: carqueja e macela.
Por Gustavo Steffen de Almeida
07/10/2016

É reconhecido o potencial das plantas da biodiversidade brasileira para fins alimentícios, extração de fibras têxteis e uso medicinal. Além de receber cada vez mais atenção de pesquisadores e indústria, o uso popular está recobrando força. A questão é que, desde sempre, as plantas medicinais utilizadas são, quase que totalmente, obtidas do ambiente natural, de variedades selvagens. Esse cenário motiva o desenvolvimento de uma ampla gama de pesquisas objetivando a chamada domesticação dessas plantas. No entanto, as pesquisas sofrem obstáculos, principalmente os decorrentes da legislação brasileira.

Todo o mercado de plantas medicinais – as utilizadas na pesquisa científica, as que são fontes de extratos incorporados a produtos industriais ou farmacêuticos e as vendidas ao público no mercado popular – é abastecido via extrativismo, informa Ílio Montanari Júnior, pesquisador da Divisão de Agrotecnologia do Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas da Universidade Estadual de Campinas (CPQBA/Unicamp).

Isso gera dois problemas: o primeiro é a pressão sobre os recursos naturais, que faz com que muitas das espécies medicinais mais importantes já estejam relacionadas em listas vermelhas, ameaçadas de extinção. O segundo diz respeito à cadeia produtiva, ou seja, a oferta incerta e a baixa confiabilidade do material obtido a partir das variedades selvagens. Além de não ser possível garantir a constância no fornecimento, as plantas obtidas do ambiente natural apresentam alta variação em termos de composição química – característica primordial quando se tratam de espécies medicinais.

Desse modo, o cultivo agrícola resolve o problema ambiental da sobrecoleta e padroniza a cadeia de produção, propiciando o fornecimento de matéria-prima de qualidade conhecida (principalmente quanto à composição química), em quantidade suficiente e de maneira constante.

No CPQBA, a equipe de Montanari se empenha em obter as variedades mais promissoras em termos de produção dos compostos de interesse e de adaptação à prática agrícola. Basicamente, o processo se dá através do melhoramento genético clássico, no campo. Nesse método, são escolhidos para o cruzamento “pais” que contemplem as características de interesse científico e/ou comercial desejadas (tamanho da planta, rendimento de óleo essencial, teor de princípio ativo etc.) e também boas características agrícolas, como resistência a pragas, produtividade e capacidade de rebrota, por exemplo. A partir daí se avalia a progênie (filhos) de primeira geração e se escolhem novos pais, realizando-se novo cruzamento e obtendo-se uma nova progênie (2ª geração) que vai ser analisada e selecionada, e assim sucessivamente. O objetivo é chegar às características que se deseja, obtendo-se novas cultivares, ou seja, variedades cultiváveis. “Essas já não são mais selvagens; é uma população transformada e já pode ser dada ao agricultor”, explica o pesquisador.

Da seleção inicial das espécies até a disponibilização da semente da nova cultivar, são necessários, no mínimo, dez anos, diz Montanari. O melhoramento clássico em campo, apesar de requerer mais tempo, é indispensável, pois metodologias modernas – como sequenciamento genético – não são suficientes.

Primeira etapa para pesquisas em várias áreas

As primeiras duas cultivares de plantas medicinais do Brasil foram concebidas no CPQBA. As espécies domesticadas são a carqueja (Baccharis trimera), com alegações de anti-inflamatória, vermífuga e antiparasitária, e a macela (Achyrocline satureioides), com potencial efeito calmante e antialérgico, além de aplicação industrial como enchimento de travesseiros. Ambas figuram em listas vermelhas de espécies ameaçadas em seu ambiente natural.

As cultivares foram registradas junto ao Ministério da Agricultura e são protegidas pela Lei de Proteção de Cultivares, análoga à Lei de Propriedade Industrial. Montanari afirma que a variedade já está licenciada, uma vez que uma empresa já se interessou em produzi-la em escala comercial. “Estamos produzindo as sementes”, informa.

Além dessas espécies, há no centro de pesquisa projetos de domesticação em andamento com diversas outras, dentre as quais fáfia (gênero Pfaffia), erva-baleeira (Cordia verbenacea), guaco (Mikania glomerata), espinheira-santa (Maytenus ilicifolia) – todas de interesse terapêutico – e estévia (Stevia rebaudiana), de interesse para a indústria alimentícia como edulcorante.

Dado o caráter pluridisciplinar do CPQBA, a domesticação dessas plantas é a primeira etapa na realização de muitas pesquisas conjuntas com outras divisões do centro. A partir do cultivo das variedades é possibilitada a extração em maior escala de seus óleos essenciais e extratos e, por conseguinte, o isolamento de seus princípios ativos. Essas substâncias dão margem a uma ampla gama de pesquisas, através das quais se visualizam aplicações em áreas como saúde humana e animal, alimentos e proteção agrícola.

Um percurso sinuoso

Apesar dos progressos conseguidos pelos pesquisadores envolvidos com a domesticação das plantas medicinais e da importância desse tipo de pesquisa, a chamada bioprospecção (exploração científica da biodiversidade com intuito de encontrar novos compostos de interesse) no Brasil se vê enredada num sem-fim de controvérsias.

“É muito difícil trabalhar com plantas medicinais por causa das leis brasileiras”, diz Montanari. O problema começou com a criação do Conselho Nacional do Patrimônio Genético (CGen), órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), e a publicação da medida provisória 2186-16 de 2001, que tratava do uso da biodiversidade. Com o legítimo intuito de regulamentar o uso do patrimônio genético e combater a biopirataria, tais medidas acabaram por tornar-se excessivamente restritivas. Foram imensamente prejudicados os cientistas que, há décadas, realizavam pesquisas com plantas nativas brasileiras – até mesmo as amplamente difundidas, a exemplo da mandioca, do caju ou do abacaxi. “Cerca de 40 mil pesquisadores foram colocados na ilegalidade do dia para a noite”, lamenta o pesquisador.

Somente em 2011 foi lançada uma nova portaria a fim de legalizar a situação desses pesquisadores. Mas a portaria não resolveu o problema. Por causa de divergências entre a legislação imposta pelo CGen e as políticas de proteção ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama), alguns dos que trabalhavam com as espécies nativas, em especial as medicinais, viram-se metidos em imbróglios jurídicos ou mesmo sujeitos a pesadas multas quando tentaram registrar a propriedade intelectual de suas novas cultivares, como foi o caso de Montanari. O mais recente capítulo dessa intricada novela foi o lançamento, no ano passado, da lei 13123, ou Nova Lei de Biodiversidade. Segundo as novas diretrizes, o processo será facilitado mediante o cadastramento dos pesquisadores, que obterão autorização para o uso de recursos da biodiversidade. “O problema é que o formulário de cadastro ainda não existe!”, diz Montanari. O que é confirmado pelo próprio site do MMA, onde se lê que o funcionamento do cadastro depende de regulamentação, e é solicitado que se aguarde a publicação da normatização da referida lei. Diante disso, muitos pesquisadores se veem confrontados com o dilema de continuar ou não suas pesquisas – algumas já bem avançadas – com recursos genéticos nativos.

O pesquisador da Unicamp teme que o Brasil esteja deixando passar grandes oportunidades em decorrência da burocracia e de processos complicados. “O Brasil poderia colocar no mundo muitos produtos baseados em nossa biodiversidade. Estamos perdendo o bonde.”

Domesticação de plantas selvagens

Existe uma ideia popular de que, já que uma planta nasce sozinha na mata, ela simplesmente vai nascer quando a plantarmos, e irá crescer do jeito e no tempo que quisermos. No entanto, as plantas selvagens, que são aquelas encontradas na natureza, possuem características diferentes entre si e que, frequentemente, são antagônicas ao processo de produção agrícola.

A agricultura exige uma germinação uniforme, com todas as plantas brotando praticamente ao mesmo tempo e crescendo a uma taxa comum, o que permite uma população de plantas com características homogêneas. No entanto, no ambiente natural não é assim que ocorre, pois ainda que dentro da mesma espécie, cada variedade da planta (são muitas as variedades) tem seu ritmo próprio de crescimento, características de germinação e requisição nutricional, o que é uma estratégia evolutiva da espécie para adaptar-se frente às alterações do ambiente.

“Se todas as plantas germinarem e começarem a crescer ao mesmo tempo, um evento extremo, como uma queimada, pode eliminar toda a população”, diz Ílio Montanari Júnior. Por isso, existem processos fisiológicos, como a dormência das sementes, que possibilitam que as plantas germinem a tempos diferentes.

Outros aspectos como tamanho, forma e produtividade acabam apresentando enorme variação dentro de uma população selvagem.

Assim sendo, a pesquisa em domesticação de plantas visa identificar variedades selvagens que apresentam características de interesse e adaptá-las às condições de agricultura, promovendo populações com características as mais uniformes possíveis.