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Artigo
O jurídico e o político em direção à alteridade
Por Cláudio Reis
10/06/2014
Como se sabe, uma das características do Estado moderno é a presença de um corpo jurídico, racionalmente definido, como meio de legitimar a sua ação perante o mundo social. Essa sua marca segue a tentativa de criar um ambiente social coerente com determinado projeto de sociedade. Sendo inicialmente marcado pelo elemento coercitivo, esse Estado, já a partir do final do século XIX e início do XX, começa a avançar em direção ao consenso. De qualquer forma, seja como elemento de coerção, seja de consenso, o aparelho estatal moderno teve como motivação histórica a educação do seu cidadão, seguindo determinados interesses socioeconômicos. Conformar a massa de seus cidadãos a um horizonte histórico-social passou a ser sua fundamental tarefa.
 
Desse modo, o Estado atuou como uma força jurídica, e também política, para coibir as manifestações sociais que pudessem romper com a unidade desejada. Ainda que historicamente isso tenha provocado certo grau de harmonia entre os indivíduos, tornados cidadãos, não ocorreu, no entanto, sem profundas contradições. Afinal, a perspectiva de eliminar as diferenças existentes no mundo social teve importantes desdobramentos para a própria organização da sociedade. A perseguição e a violência a diversos indivíduos, grupos e classes sociais que, em algum momento de suas existências, provocaram a ordem estabelecida, acabaram sendo a postura do Estado. Assim, a chamada intolerância esteve presente nessa instituição perante massas inteiras. E o direito esteve a seu serviço. E esse processo deu-se a partir das suas tradicionais e atuantes marcas de classe e religiosa que, agora, devem ser acompanhadas das definições recentes, como gênero e raça, entre outros.
 
A crise dessa forma do Estado se relacionar com seus cidadãos veio, no início do século XX, com a emergência dos regimes nazi-fascistas. Esse foi o momento em que o Estado, enquanto força política homogeneizadora, assumiu a sua forma mais agressiva e desumana frente aos sujeitos constituídos historicamente fora do Ocidente hegemônico. No caso alemão, esse aparelho incorporou concepções racistas, defensoras de uma suposta pureza humana, o que acabou alimentando a tendência uniformizadora das ações do Estado moderno.
 
O direito, nesse momento, também acabou trabalhando a serviço de tal processo. Sua contribuição à punição e à criminalização dos "inimigos" da ordem e da sociedade fora decisiva. A rejeição à diversidade social, cultural e política foi a marca desse direito. Os tribunais são instituições difíceis de serem superadas. Por sua característica de dar racionalidade e legalidade ao Estado, resistem aos diversos regimes políticos.
 
Com a crise desse direito voltado à homogeneização, surge a necessidade, após o fim da Segunda Guerra Mundial, de se criar um novo ordenamento jurídico que pudesse interferir na organização dos Estados. Essa alteração fez a própria instituição estatal ganhar uma nova configuração.
 
Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, os Estados que a adotaram passaram formalmente a ter a obrigação de se relacionar de outro modo com a sociedade. Não mais no sentido de acabar com a multiplicidade, mas, ao contrário, admiti-la como legítima. Em seu Artigo II, afirma-se: "Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição." Aqui, há uma tentativa de fazer o Estado expandir a sua proteção sobre seus cidadãos. O que significa fazer da sua organização uma instância avessa a qualquer tipo de ação agressiva contra o cidadão – pelo menos, a partir da referência acima destacada.
 
O objetivo desses direitos universais é fazer o Estado não apenas proteger a diversidade que compõe o mundo social, mas também não violentar, a partir de suas próprias ações, seus cidadãos. Nesse momento, a universalidade jurídica passa a traduzir, por meio de leis, uma humanidade rica em sua diversidade, isto é, não uniformizada.
 
Fruto da ação política dos inúmeros setores da sociedade civil, os organismos estatais foram levados a incorporar e construir um corpo jurídico voltado à defesa da multiplicidade étnica, religiosa, racial etc., reconhecida pela humanidade a partir do grande holocausto.
 
Entretanto, esses processos não são evolutivos, isto é, não há uma superação natural e mecânica entre uma perspectiva histórica restrita e outra expansiva. Há, sim, o convívio entre ambas, em que uma se sobrepõe à outra de acordo com o contexto histórico. Em momentos de relativa estabilidade socioeconômica, o Estado tende ampliar a sua tolerância política perante o mundo social; já em situações opostas, tende a se recolher enquanto instituição reconhecedora de alteridade. Em épocas de crise social ou econômica, os aparelhos de Estados recorrem ao poder da força de forma a se sobrepor aos aspectos de consenso.
 
Ao que parece, os dias atuais estão sinalizando o predomínio desse último aspecto. Não é difícil constatar empiricamente essa situação, ou seja, a crescente agressão aos inúmeros setores tradicionalmente marginalizados na sociedade brasileira, por exemplo. Agressão que parte tanto da sociedade civil quanto do Estado.
 
No entanto, um elemento importante chama a atenção: o fato desse processo estar assentado em um contexto em que os ganhos, em termos jurídicos, são significativos. Principalmente em relação aos grupos subalternos, as conquistas no campo das leis são importantes nas últimas décadas na sociedade brasileira. Como explicar esse fato? Como compreender essa situação, já que mesmo diante de um corpo jurídico que possui uma perspectiva que busca entender a realidade a partir das particularidades, ainda assim, não consegue impedir diversas formas de violência contra aqueles a quem serve? Violência cometida tanto pelo Estado como pela sociedade.
 
Atualmente, a sociedade brasileira tem à sua disposição inúmeros dispositivos legais para que haja a garantia do respeito à integridade de diversos setores sociais, historicamente perseguidos por suas crenças religiosas, por suas manifestações culturais, por sua cor de pele, por sua idade, por seu gênero e por sua condição socioeconômica. E essas conquistas, frutos da reivindicação dos afetados, em grande medida foram incorporadas pelo próprio Estado. Portanto, formalmente, temos um corpo estatal que atende aos anseios históricos, surgidos pós Segunda Guerra Mundial, justamente preocupados em coibir a barbárie ocorrida contra os "inimigos da pureza e da "civilização". No entanto, o cotidiano demonstra um profundo descolamento entre essa dimensão formal e aquilo que ocorre com os indivíduos concretamente.
 
Nesse sentido, mesmo quando a universalidade das leis está em diálogo com as particularidades constituídas no mundo social, existem obstáculos concretos que impedem a sua aplicação efetiva. Tais impedimentos são de inúmeras características: econômica, cultural, social, educacional etc. Aqui, entretanto, destacaremos o político.
 
É certo que as leis assumem um papel pedagógico diante dos cidadãos, mesmo que tenha seu elemento coercitivo presente. Todavia, a sua efetivação não se dá por meio de força mecânica, como se uma vez instituídas nada mais se põe como necessário a fazer. Para elas se efetivarem, é preciso a organização de outros espaços que reforcem o processo educativo. E um deles é, sem dúvida, o espaço político.
 
É certo que, nas últimas décadas, inúmeras conquistas foram efetivadas acerca da garantia de direitos para um número considerável de grupos sociais, historicamente subalternizados. Na sociedade brasileira, índios, negros, mulheres, homossexuais, entre outros, foram contemplados por uma série de avanços jurídicos. O que significa a aplicação de uma leitura sobre as leis, na qual a sua universalidade está em pleno diálogo com as múltiplas manifestações do mundo social. De qualquer forma, ainda se faz necessário enfrentar alguns desafios para que, concretamente, tais avanços sejam colocados em prática. Em muitos casos houve – e ainda há – uma sobreposição da luta por meio jurídico, em relação ao político. E, aos poucos, essa forma de encaminhar as ações, cada vez mais demonstra que o esvaziamento do político, em benefício do jurídico, pode ser um equívoco. Afinal, a concentração, das forças sociais que visam o avanço democrático, no campo do direito, pode trazer consequências importantes como, por exemplo, o esvaziamento da luta política.
 
Retirar-se dos espaços das marchas e das mobilizações de rua, para se limitar ao escrito da lei, enfraquece decisivamente o poder dos grupos sociais subalternos. A organização política, por parte dos setores historicamente marginalizados, aliás, é uma aliada indispensável para o avanço nas conquistas no campo das leis. Portanto, a eficácia da universalidade das leis, no sentido de atender as particularidades existentes no mundo social, somente avança quando está acompanhada da organização política. O poder necessário para que tais grupos possam ter seus direitos respeitados será alcançado a partir do avanço político conquistado.
 
Assiste-se diariamente a diversos tipos de ataques à dignidade humana. Quanto a isso não é possível ir contra. E, na maioria das vezes, essa situação se dá justamente em desrespeito às leis. Crimes contra mulheres, crianças e adolescentes, negros, moradores das periferias e índios. Setores historicamente subalternizados e que, por esse motivo, necessitam muito mais do que leis, mas fundamentalmente de organização política. Afinal, sem disputar o poder nesse campo, fica praticamente impossível se retirar da condição de subalterno.
 
Neste momento, o que está em questão é a tentativa de se construir uma outra hegemonia, isto é, uma nova e massificada concepção de mundo. A edificação de uma nova leitura sobre a vida e sobre o outro, com características que levem em conta a dialética entre o universal e o particular, o gênero humano e suas formas específicas de manifestação.
 
É certo que o direito exerce um papel importante para a elaboração desse processo, entretanto, não pode ser isoladamente reconhecido. É preciso interligá-lo às demais esferas da vida social, ou seja, ao cultural, ao econômico, ao filosófico etc. Aqui tentou-se ressaltar a importância do seu diálogo com o político, como uma forma de avançar no processo de conquistas e garantias para os subalternizados.
 
Para finalizar, deve-se salientar que essa construção visa justamente à superação das noções de "intolerância" e "tolerância" – afinal, essas dimensões são expressões de um contexto histórico específico, marcado por inúmeros estranhamentos –, em direção à concretização da plena alteridade.
 
Claudio Reis é doutor em ciências sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor de teoria política da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).