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O trabalhador vai ao paraíso? As nuances de sentimento que o trabalho produz
Por Gabrielle Adabo
10/09/2014
“Vivendo numa sociedade altamente capitalista, como um formigueiro gigante, não é tão difícil encontrar serviço. Desde que, é lógico, não se exija determinado tipo ou conteúdo de trabalho”. É com esse conformismo que o escritor freelancer, protagonista do livro Dance, dance, dance, de Haruki Murakami, descreve a sua profissão. Ele encara a tarefa de escrever como qualquer outra atividade, aceitando todo e qualquer trabalho que lhe incumbam, “como um limpa-neve”, por exemplo. “Estamos cientes de que esse nosso insignificante trabalho serve apenas para a nossa subsistência. Independentemente do que seja, já que é necessário fazer, o melhor é fazê-lo bem feito. É nesse sentido que digo que somos profissionais”, justifica-se. Será, portanto, que “numa sociedade altamente capitalista”, todos nós estamos destinados a ser como o personagem de Murakami, simplesmente admitindo a finalidade prática do trabalho e deixando o prazer de lado? Ou será que é possível fazer do trabalho uma fonte de felicidade?

Um dos principais teóricos a analisar a condição do trabalhador na sociedade capitalista, Karl Marx, em O capital, entende o trabalho como “um processo de que participam o homem e a natureza”, e expõe a exploração à qual o trabalhador está submetido nesse sistema. Em O trabalho alienado, publicado em 1844, Marx diz que “a efetivação do trabalho tanto aparece como desefetivação que o trabalhador é desefetivado até morrer de fome. A objetivação tanto aparece como perda do objeto que o trabalhador é despojado dos objetos mais necessários não somente à vida, mas também dos objetos do trabalho. Sim, o trabalho mesmo se torna um objeto, do qual o trabalhador só pode se apossar com os maiores esforços e com as mais extraordinárias interrupções. A apropriação do objeto tanto aparece como estranhamento que, quanto mais objetos o trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto mais fica sob o domínio do seu produto, do capital”.

Já o sociólogo francês Georges Friedmann, em seu Tratado de sociologia do trabalho, definiu o trabalho como “traço específico da espécie humana” e “um denominador comum e uma condição de toda vida humana em sociedade”. O que é considerado trabalho animal, como o das formigas e abelhas, por exemplo, de acordo com ele, não é mais do que um mero comportamento instintivo, segundo atribuição da psicologia zoológica. A característica desse comportamento humano seria a utilidade, mas, principalmente, essa transformação da natureza pelo homem por meio da técnica de que falava Marx, natureza que, por sua vez, também age sobre o homem e o modifica.

Friedmann lembra, no entanto, que a sociedade que Marx analisou era baseada em atividades rurais e industriais. É preciso considerar, também, segundo esse autor, que o trabalho adquire significados diferentes dentro de determinadas sociedades e culturas. Ele lembra que nem sempre o trabalho manual é valorizado dentro de uma sociedade e é delegado a classes consideradas como inferiores, exemplo que podia ser visto nas cidades gregas clássicas. Em outro exemplo contrário, ele retoma a situação da antiga União Soviética, sua contemporânea, no momento em que ele escreve, que impõe o valor do trabalho manual.

Friedmann também fala que a coação sentida pelo trabalhador diferencia o trabalho das demais atividades e da ação, esta marcada pela liberdade. “O trabalho é ação quando se alimenta de uma disciplina livremente aceita, como, às vezes, a do artista que realiza uma obra de fôlego, sem ser premido pela necessidade”, diz ele. “Mas esses casos parecem raros, conforme o testemunho dos próprios criadores. De acordo com esta nossa perspectiva, basta observar que Balzac, acossado pelos credores, escrevendo a Comédia humana, e o grande burguês Proust, empenhado na difícil (escrita de) Em busca do tempo perdido, eram ambos ‘trabalhadores’, cada qual à sua maneira”, completa.

Ele afirma, ainda, que “o trabalho só é ação quando exprime as tendências profundas da personalidade e a ajuda a realizar-se”. Ou seja, se alguém está realmente empenhado em uma atividade que tem essas características, ela pode ser considerada livre e criativa, ainda que contenha traços de coação como periodicidade e coordenação. O trabalho pode, portanto, marcar o indivíduo também de forma positiva. “A subjetividade vivida por ocasião das atividades de trabalho vai desde os estados de insatisfação, de tristeza e mesmo de depressão, de neurose, até estados de autorrealização, de satisfação, de desafogo e, em casos extremos (raros), de alegria”. O trabalho, segundo ele, também pode incidir positivamente sobre a personalidade. “Em particular, todo trabalho que corresponde a uma escolha livremente feita, a aptidões, é um fator de equilíbrio psicológico, de estruturação da personalidade, de satisfação durável, de ‘felicidade’”.

“ A importância do trabalho na vida das pessoas tem sido consistentemente apontada na literatura científica. Além de prover os meios necessários para a subsistência humana e satisfazer nossas necessidades básicas, o trabalho ajuda a definir o status que o indivíduo assume na sociedade, contribui para a formação da identidade pessoal, permite a organização do tempo e possibilita o enriquecimento das redes de relações sociais. O trabalho pode, inclusive, operacionalizar nossa capacidade criativa e permitir nossa transcendência no tempo e espaço por meio do que produzimos.”, afirma a professora do Departamento de Administração da Universidade de Brasília (UnB) e doutora em psicologia social, do trabalho e das organizações Tatiane Paschoal. Esse tempo dedicado ao trabalho, segundo ela, seria um componente fundamental para desenvolver a felicidade e o bem-estar social.

Paschoal alerta que, em qualquer pesquisa sobre felicidade, o primeiro desafio é responder à questão “o que é felicidade?”. “ No campo da psicologia, tem havido uma tradição no estudo do bem-estar. Muitos pesquisadores da psicologia organizacional e do trabalho, por exemplo, considerariam mais adequado o uso do termo ‘bem-estar’ ao invés de ‘felicidade’. A verdade é que, nos últimos anos, temos visto um aumento de pesquisas científicas que se referem à ‘felicidade’ e ao ‘bem-estar’ como sinônimos. Segundo os autores adeptos desse movimento, quando falamos em felicidade, estamos claramente nos referindo às experiências positivas das pessoas”, explica.

Fonte de alegria e sofrimento

“Para a saúde mental aplicada ao trabalho, o trabalho pode ser uma fonte de prazer e satisfação para as pessoas, uma fonte de realização, na medida em que a pessoa pode escolher uma determinada profissão, uma determinada atividade. Freud já falava disso em O mal-estar na civilização”, afirma o professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutor em saúde coletiva Valmir Antonio Zulian de Azevedo. Por outro lado, segundo ele, o trabalho também pode ser uma fonte de sofrimento que gera doenças. “Isso acontece, em geral, quando o trabalho contém elementos que agridem a mente, o psiquismo, do trabalhador. Esses fatores podem ser os mais diversos, desde apreensão por atingir resultados, metas, até uma relação conflituosa com superior hierárquico, uma situação de discriminação, de assédio”, enumera.

De situações como essas, conforme aponta Azevedo, surgem uma série de transtornos psíquicos relacionados ao trabalho. “Um dos mais reconhecidos é a Síndrome do Estresse Pós-Traumático que está associada a eventos como, por exemplo, um acidente de trabalho que causa uma lesão grave e o indivíduo tem uma dificuldade em função da angústia e da ansiedade de retornar à mesma atividade que ele fazia, ao mesmo ambiente, à mesma situação e conviver com as mesmas pessoas”, explica. “Hoje em dia, há, também, muitos casos de depressão associados ao trabalho em função de perdas que os indivíduos apresentam ou vivenciam na sua experiência de trabalho, trabalham em um ambiente bastante competitivo, e, nessa competição, você tem perdedores, e há perdedores que chegam a se deprimir”, exemplifica.

Outro transtorno que Azevedo descreve como uma variante do estresse é o chamado burnout ou, em português, esgotamento profissional. “É um quadro que acomete profissionais que se dedicam a causas humanísticas muitas vezes idealizadas como, por exemplo, educadores, profissionais da área de saúde, profissionais do serviço social. Eles veem seus projetos fracassarem e isso significa um impacto como se fosse uma ruína. Também acomete executivos que se dedicam muito às empresas, que se doam em termos de tempo e de recursos às empresas, e podem sofrer o burnout quando, eventualmente, sofrem um revés como uma demissão”, enumera Azevedo. Ele acrescenta que também há as situações de estresse causadas pela violência em categorias profissionais que a enfrentam no dia a dia, como policiais, motoristas de transporte coletivo de grandes cidades, bancários, e até mesmo professores e profissionais de saúde.

O sofrimento pode atingir limites extremos, como os casos de morte por excesso de trabalho, problema vivenciado pelos japoneses e que fez surgir até mesmo uma palavra para designar a situação: “karoshi”. Esse fenômeno é mostrado pelo documentário Happy, de Roko Belic. O sofrimento psíquico pode chegar a outro extremo, o suicídio dos trabalhadores. Um caso emblemático, analisado pelas pesquisadoras Selma Venco e Margarida Barreto, no artigo “O sentido social do suicídio no trabalho”, ocorreu na empresa FranceTélecom. Em 2004, houve quatro suicídios de trabalhadores e, entre janeiro de 2008 e janeiro de 2010, outros 34.

Barreto, que é coordenadora da Rede Nacional de Combate ao Assédio Moral no Trabalho, professora convidada da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e doutora em psicologia, ressalta que “a felicidade, depende, e muito, de fatores externos, ou seja, das condições de trabalho tanto quanto das relações laborais que se estabelecem com os outros ou o poder”. Fatores como reconhecimento, respeito, autonomia, liberdade para criar e participação na tomada de decisões são essenciais para o bem-estar no trabalho, segundo a pesquisadora.

“Convivemos hoje com uma lógica contraditória, na medida em que se vive com a instabilidade do trabalho e as exigências de flexibilidade do trabalhador para as demandas da empresa, enquanto ela, a empresa, mantém uma conexão fria e calculista, quase obsessiva pelo lucro, o que pode ocasionar tanto a adesão sem críticas de trabalhadores, em especial à alta gestão, como o desprazer e sofrimento para o coletivo”, analisa Barreto. Condições como essas não contribuem para a satisfação e o bem-estar, segundo a pesquisadora; ao contrário, geram “doenças, instabilidade emocional, tensão e outras expressões de sentimentos tristes, de vazio, de isolamento que é imposto e que o trabalhador se auto impõe”.

“Quando os trabalhadores são pressionados moralmente através de gritos, palavrões, quando não têm seu esforço reconhecido pelo grupo ou chefias, quando há abuso de poder e suas opiniões não são consideradas ou levadas em conta, quando seus sentimentos e adoecimento sequer são considerados; quando perde o emprego ou é humilhado e desqualificado profissionalmente, esses são atos que podem levá-lo, não somente à tristeza profunda, à depressão, mas até mesmo ao suicídio”, exemplifica Barreto.

Na ânsia pelo lucro, as empresas fecham postos de trabalho e demitem para diminuir custos, ideologia cada vez mais difundida e que compromete o espaço para as ações coletivas e a democracia, segundo a pesquisadora. “O trabalhador de valor é aquele que produz, que não perturba, que não contesta”, afirma. “Neste contexto, o pensamento coletivo é de sujeição, aceitação por falta de outra oferta de emprego, conformismo. Esse discurso das empresas, apesar de falar em flexibilidade e oportunidades, é um discurso forte e fechado. Não se pode questionar, sem o perigo de ser colocado no ostracismo”, analisa.

O caminho para o paraíso

A felicidade no trabalho, portanto, não é responsabilidade somente do indivíduo que opta por uma determinada carreira. “ Estudos sugerem que a escolha de uma profissão e atividades de trabalho compatíveis com metas ou valores pessoais têm uma associação significativa com o bem-estar no trabalho”, afirma Paschoal. A própria personalidade do indivíduo, segundo ela, também pode interferir na sensação de felicidade e explicar por que alguns se sentem melhores em um determinado trabalho do que outros. “ Mas é importante ressaltar que enquanto os estudos sobre bem-estar geral, que avaliam a satisfação da pessoa com a vida e suas emoções no dia a dia, apontam a personalidade como um dos antecedentes mais fortes, os estudos conduzidos nas organizações de trabalho sugerem um efeito direto e considerável das variáveis organizacionais sobre o bem-estar no trabalho. Este depende principalmente dos aspectos da organização ou do contexto em que o trabalho é realizado”, completa.

De nada adianta, portanto, a empresa investir em aumentar o pensamento positivo do trabalhador e oferecer atividades como aulas de dança, academias e massagens no ambiente de trabalho, se a organização e as condições de trabalho não favorecem o bem-estar do funcionário. “As organizações não podem promover a felicidade das pessoas, mas podem oferecer condições de trabalho e desenvolver práticas que permitam as experiências de bem-estar”, resume.

“Apesar de muita falácia e propaganda, são pouquíssimas as empresas que pensam, de fato, no bem-estar e na felicidade de seus empregados, apesar do discurso de felicidade corporativa. Diria que o prazer no trabalho começa por sermos reconhecidos e respeitados por aquilo que fazemos”, propõe Barreto. De acordo com ela, fica difícil fortalecer as relações sociais que o trabalho, assim como outras dimensões da vida de cada um, implica, se o ambiente estimula a competição, a individualidade e provoca sofrimento. Somados a isso, há ainda os extremos da precariedade do trabalho análogo ao escravo e do trabalho infantil que ainda persistem.

“O que garante bem-estar e saúde no trabalho passa tanto por alterações de ordem conjuntural quanto estrutural. É fundamental o apoio e fortalecimento dos laços de camaradagem no coletivo e é necessário sentir-se incluído de fato; realizar um trabalho que tenha significado, no qual o trabalhador tenha autonomia para organizar e intervir em suas tarefas; que faça ou realize o seu trabalho de acordo com seu ritmo, invertendo a lógica que persiste e na qual o homem deve submeter-se às máquinas, ao ritmo imposto, às metas inatingíveis. O cálculo matemático não pode se impor à vida”, reforça Barreto. “ O bem-estar e a saúde mental, devem fazer parte da política geral de segurança e saúde no trabalho. Sem isso, é miragem falar em felicidade no trabalho”, finaliza.