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Da doença à saúde: os caminhos dos patógenos e das epidemias
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Medicina de viagem e a importância no controle de epidemias
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Campanhas de imunização: um diálogo entre propaganda e educação
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Modelos de análise de decisão na introdução de novas vacinas
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Vacinas e a educação em ciência
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Reportagem
Da doença à saúde: os caminhos dos patógenos e das epidemias
Por Michele Gonçalves
10/10/2014
Um mapa mundi repleto de setas intercontinentais em todas as direções. A princípio, poderíamos pensar em fluxos comerciais, rotas aéreas, correntes marítimas, migrações. Ninguém diria, entretanto, tratar-se de um intercâmbio invisível aos olhos: o de microrganismos.

Stefan Cunha Ujvari, médico infectologista do Hospital Oswaldo Cruz, conta em seu artigoA história da disseminação dos microrganismos” que a colonização do mundo pode ser facilmente recontada pelos patógenos. Segundo ele, vírus e bactérias geneticamente muito semelhantes aos que hoje circulam já estavam presentes em seu ancestral comum com os chimpanzés. Herpes e papilomavirus humano (HPV), por exemplo, assim como o bacilo da tuberculose, seguiram infectando os ancestrais como o Homo erectus, Homo ergaster e o Homo habilis, até chegar à linhagem do homem moderno.

Da África para o Oriente Médio, de lá para a Europa e depois Ásia, Oceania e finalmente América. Ujvari explica que até mesmo as rotas de migração humana foram repensadas pelos pesquisadores após comparações do material genético de agentes infecciosos encontrados em fósseis. A chegada à América, por exemplo, que antes se acreditava ter ocorrido apenas pelo estreito de Bering durante a ultima glaciação, parece ter sido feita também pelo litoral, pois análises constataram ovos de parasitas intestinais nas fezes dos primeiros homens americanos, ovos que só se desenvolviam em terrenos úmidos e quentes, clima incompatível com Bering.

A revolução da alimentação e do modo de vida colaborou com a disseminação de doenças, assim como a domesticação de animais, que expôs o homem a novos vírus. O aumento populacional se encarregou de propagar as doenças, e muitas epidemias dizimaram milhões até que a natureza dos patógenos fosse conhecida e surgissem as técnicas de imunização e vacinação. Joffre Marcondes de Rezende cita em seu livro À sombra do plátano: crônicas de história da medicina como as epidemias afetaram impérios antigos. Atenas, por exemplo, declinou em 428 a.C. por conta do tifo, assim como parte do império romano, que perdeu até o imperador Marco Aurélio pela doença. No livro, o autor conta também que a peste negra, surgida na Ásia, matou 24 milhões de pessoas no oriente por volta dos anos 1300 e um terço da população na Europa, tendo chegado à América em torno de 1900.

Durante os séculos XVIII e XIX, o continente europeu sofreu ainda com outras epidemias como as de febres amarela e tifoide. Conforme aponta Uvjari, com a revolução industrial e a urbanização, veio a proliferação de doenças como tuberculose, diarreia e aquelas que se beneficiavam da velocidade de locomoção – propiciada pelas embarcações a vapor – para chegar ativas do outro lado do mundo, como o cólera. A dengue saiu da Índia em 1960 levada pelas embarcações para a África e chegou à América em 1990.

Em linhas gerais, o surgimento e desaparecimento de epidemias tem como ingredientes condições biológicas, ambientais e sociais, elenca Edimilson Ramos Migowski de Carvalho, infectologista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele esclarece que novos vírus podem vir à tona a partir de misturas genéticas; ocupação de novos espaços (como o caso do ebola); ou ainda por práticas socioeconômicas ou culturais como canibalismo e alimentação de animais não domesticados. “As epidemias são sempre multifatoriais”, enfatiza. Doenças também podem retornar por falhas na saúde pública: cobertura vacinal (como a coqueluche, que hoje voltou a ser considerada emergente), fornecimento de água de qualidade, saneamento e recolhimento de lixo.

Ciência na história da imunização

O mecanismo da vacina foi elucidado cientificamente em 1798 pelo médico inglês Edward Jenner no trabalho Variolae vaccinae. Mas a técnica de exposição ao patógeno causador de uma doença para aquisição da imunidade ficou conhecida no ocidente ainda muito antes da concepção de Jenner. Segundo a pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Tânia Maria Fernandes, no trabalho Imunização antivariólica no século XIX no Brasil: inoculação, variolização, vacina e revacinação, a tentativa de imunização contra a varíola foi trazida do oriente para a Europa no início do século XVIII.

No início, a proteção contra a varíola consistia, segundo Fernandes, em implantar no homem sadio o vírus contido na secreção retirada de pessoas doentes. A prática, conhecida como variolização, era arriscada, pois um em cada cinquenta pacientes morria. Após as observações de Jenner, descobriu-se que, ao infectar o paciente com uma variante bovina do vírus, chamada vacina, desenvolvia-se uma condição benigna e segura da doença, com efeito imunizante.

Somente mais de 70 anos depois é que Louis Pasteur elucidou a relação causa-efeito entre a presença de microrganismos patogênicos e doenças, e cunhou o nome do vírus vacina a qualquer preparação que envolvesse a utilização de patógenos para imunização. O cientista francês descobriu um método de atenuação dos vírus e desenvolveu a primeira vacina produzida em laboratório – a antirrábica.

Embora criada no fim do século XIX, a vacina só se desenvolveu, de fato, ao longo do século XX. O impacto antes disso, segundo Gilberto Hochman, pesquisador da Casa Oswaldo Cruz (COC) especialista em história da saúde e políticas sociais, foi específico para a ação contra a varíola. Para outras epidemias, ainda estava longe de ser eficiente. “Do ponto de vista do impacto, temos que pensar na vacina moderna ao longo do século XX. O declínio das doenças antes disso devia-se mais às mudanças de padrões nutricionais, de saneamento etc”, aponta.

Desafios políticos e erradicação de doenças

As doenças passíveis de serem erradicadas, explica o infectologista Carvalho, da UFRJ, são principalmente as doenças virais relativamente estáveis, que tenham o ser humano como único hospedeiro e que não se tornem crônicas, como é o caso da poliomielite, varíola e sarampo, ao contrário da difteria, difícil de ser erradicada porque fica crônica e é assim transmitida a pessoas não vacinadas. “No caso do ebola, como acomete animais e não há como vaciná-los, não é plausível pensar em erradicação, apenas em controle, mesmo que se desenvolva uma vacina”, alerta o pesquisador.

Os requisitos para considerar uma doença erradicada ou controlada variam. “Para as doenças controladas, como difteria, tétano e coqueluche, mantêm-se níveis elevados de vacinação regular e observação de dados epidemiológicos, para que pessoas não vacinadas não sejam infectadas por portadoras (pessoas vacinadas ainda podem ser portadoras do vírus). Como a imunidade provocada pela vacina não é para sempre, ou seja, baixa depois de um tempo, a doença pode voltar a circular”, explica Carvalho. “Já para as doenças passíveis de erradicação, uma vez que pessoas não estejam mais infectadas, o vírus não tem possibilidade de reaparecer. Nesses casos, depois de um tempo, param a vacinação, assegurando a vigilância nos laboratórios que armazenam o vírus para evitar terrorismo”, diz. É o caso da varíola, única doença erradicada mundialmente até hoje.

Para Dilene Raimundo do Nascimento, historiadora e também pesquisadora da COC , a questão política é altamente relevante. “Para as doenças passíveis de vacina, o que falta para a produção e distribuição em larga escala é, em primeira instância, recursos financeiros. Quando o Ministério da Saúde decidiu executar os dias nacionais de vacinação, comprou 20 milhões de doses de vacina contra a pólio. “ Em quatro anos, os casos de pólio praticamente zeraram no país”, exemplifica .

Bom funcionamento das secretarias de saúde, implantação adequada de políticas públicas e serviços de saúde melhor organizados são fatores necessários para a erradicação. A poliomielite é outra doença que deve sumir do mapa mundial, já tendo sido banida do continente americano na década de noventa. “No caso da pólio, a vacina persiste porque ela não foi erradicada em todos os países e as doenças hoje se transferem de forma muito rápida de um local a outro”, comenta Nascimento. Outras moléstias passíveis de serem erradicadas nas próximas décadas são sarampo, rubéola congênita e tétano neonatal.

No Brasil, foi apenas em 1980 – quando, de fato, começaram a circular os pacotes vacinais e criou-se a cultura de imunização no país – que a vacina passou a ser vista como um direito. Hochman é enfático ao dizer que houve avanços tremendos em relação à expectativa de vida, principalmente entre crianças, após a descoberta da vacina e introdução dos programas de vacinação. “O Programa Nacional de Imunização (PNI), de 1973, foi um sucesso em termos de políticas de vacinação e controle de doenças”, diz.

Segundo o pesquisador, o PNI possibilitou ao país controlar, principalmente por meio de vacinação infantil, doenças como difteria, tétano, coqueluche, caxumba, catapora, varicela e meningite. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) revelam que a taxa de mortalidade infantil caiu mais de 70% desde a década de 70, justamente período da implantação do programa. Em 2014, o Brasil atingiu a meta assumida no compromisso "Objetivos de Desenvolvimento do Milênio", da ONU, de reduzir em dois terços os indicadores de mortalidade de crianças de até cinco anos. O índice, que era de 53,7 mortes por mil nascidos vivos em 1990, passou para 17,7 em 2011. O desafio, conclui Hochman, é manter a cobertura vacinal forte e garantir que a sociedade continue entendendo a vacina como algo positivo e de direito.