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Artigo
O Prêmio Nobel da Paz num sistema internacional anárquico
Por Carlos Frederico Pereira da Silva Gama
10/12/2014
No fim do século XIX, o sueco Alfred Nobel, inventor da dinamite e fabricante de armas, dedicou parte de sua fortuna a “compensar sua contribuição involuntária para o sofrimento dos homens”(1) criando uma fundação homônima que, anualmente, concede prêmios a pessoas e instituições que se destacaram nas áreas de química, física, medicina, literatura (posteriormente, também, economia). O mais importante foi dedicado à meta-síntese de seu criador, a busca “da paz”, que, em suas palavras, destina-se a quem “deverá ter feito mais ou melhor trabalho para a fraternidade entre as nações, para a abolição ou redução de exércitos permanentes e para conservação e estímulos de congressos de paz”(2).

Muitos indivíduos e organizações foram laureados desde a instituição do prêmio – que pode contemplar mais de um premiado no mesmo ano. Henry Dunant, fundador da Cruz Vermelha Internacional, recebeu seu prêmio quase meio século após ter criado (e posteriormente, deixado) a organização. Outros, como o presidente dos Estados Unidos Barack Obama e o primeiro-ministro da União Soviética Mikhail Gorbatchev, foram premiados no exercício de suas funções. Alguns, como o líder espiritual do Tibete, Dalai Lama, receberam seu prêmio longe de sua terra natal, no exílio.


Em outros anos, a honraria não foi concedida – devido à ocorrência de guerras mundiais, o Comitê Norueguês do Nobel (responsável pela escolha do prêmio) declinou em apontar merecedores. E candidatos óbvios – como o apóstolo da não-violência e líder da independência da Índia, Mohandras Gandhi – nunca receberam o prêmio. Gandhi foi indicado cinco vezes, a última delas dias após seu assassinato, em 1948. O Nobel da Paz daquele ano não foi concedido a ninguém, já que não costuma ser dado em caráter póstumo (a única exceção foi o secretário-geral da ONU Dag Hammarksold, morto em 1961 num acidente aéreo).

Dentre as instituições premiadas, destacam-se, além de organizações não-governamentais como a própria Cruz Vermelha (premiada três vezes) e a Anistia Internacional, organizações intergovernamentais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e órgãos que compõem o chamado sistema da ONU, caso da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).

A escolha do Prêmio Nobel da Paz é um evento político de grande magnitude. Envia um recado à comunidade internacional – um recado presente, quando um grande conflito se encerra, caso de Oscar Arias, presidente da Costa Rica laureado por seus esforços de negociações de paz bem-sucedidas na América Central. Por vezes, o recado se dirige ao futuro – caso do prêmio concedido a Al Gore e ao Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU. O prêmio pode também reconhecer uma longa trajetória de contribuições para a paz, caso de negociadores como o ex-presidente dos EUA, Jimmy Carter, e inovadores, como o pioneiro do microcrédito e fundador do Banco Grameen, Muhammad Yunus (Yunus e o banco foram premiados simultaneamente).

Sendo um prêmio inevitavelmente político, seu anúncio provocou inúmeras controvérsias ao longo do século XX, que se prolongam no presente. O secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger esteve no epicentro de uma delas, ao ser contemplado junto com o líder do Vietnã do Norte, Le Duc Thom, em 1973 – dois anos antes do fim da Guerra do Vietnã. Thom recusou receber seu prêmio ao lado da polarizadora figura de Kissinger. O presidente do Egito, Mohamed Anwar Al-Sadat, foi premiado juntamente com o primeiro-ministro de Israel, Menachem Begin, pela assinatura dos acordos de paz de Camp David, em 1978. Três anos depois, Sadat seria morto por integrantes do exército egípcio, alegadamente por causa do referido acordo.

As duas últimas edições não fugiram à regra e foram eivadas de circunstâncias políticas dramáticas. Em 2013, a Organização para a Proscrição de Armas Químicas (OPAQ) recebeu o Nobel da Paz por sua controversa atuação na guerra civil da Síria. Dois países dos BRICS e membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, a Rússia e a China, bloquearam tentativas dos EUA de autorizar o uso da força na Síria junto à ONU, como ocorrera no conflito na Líbia, em 2011. Confrontados com o anúncio, em agosto, feito pelo secretário de Estado norte-americano John Kerry, de que armas químicas teriam sido usadas na Síria e que isso equivalia a cruzar uma “linha vermelha” para a intervenção armada dos EUA na região, Rússia e China abriram negociações para retirar as referidas armas do conflito, invocando o princípio multilateral da proscrição do uso destas (criado durante a Primeira Guerra Mundial, quando seu uso foi generalizado). A negociação foi tornada possível via OPAQ. Mesmo sem o fim do conflito na Síria, as armas químicas começaram a ser retiradas do país e uma intervenção armada dos EUA foi evitada em 2012 – motivando a premiação da OPAQ. Em 2014, porém, ocorreria uma intervenção dos EUA na região, justificada para combater o “Estado Islâmico” /ISIS, grupo insurgente que controla territórios na Síria e no Iraque. Ironicamente, o presidente Obama, além de ter sido eleito para “tirar as tropas de Afeganistão e Iraque”(3), foi ele próprio laureado com o Nobel da Paz, em 2009.

A ativista paquistanesa pelos direitos das mulheres e pela universalização da educação, Malala Yousafzai, tornou-se uma personalidade internacional ao sobreviver a um ataque armado dos Talibãs, em 2012. Seu nome, já aventado para receber o Nobel da Paz em 2013, acabou sendo contemplado na premiação de 2014 – fazendo de Malala a pessoa mais jovem (17) anos a receber o Nobel da Paz na história. Mesmo sendo uma candidatura dotada de amplo reconhecimento internacional, ela teve que dividir sua honraria. Questões geopolíticas e etárias motivaram, em parte, a concessão com outro ativista, o indiano Kailash Satyarthi, defensor dos direitos das crianças, que lutou contra o trabalho infantil e a escravidão. A concessão simultânea dos prêmios promoveu um “equilíbrio” simbólico de poder suave (soft power) das duas potências nuclearizadas do Indostão, bem como de “gênero” e de faixa etária(4) (ênfase nos direitos das crianças e no combate ao trabalho infantil via um premiado de meia-idade, junto à mais jovem premiada da história, uma adolescente defensora do direito das meninas à educação).

Num sistema internacional anárquico, um prêmio como o Nobel da Paz depende de inúmeras circunstâncias e clivagens que dificultam traçar padrões e fazer previsões. Para além de seu caráter inexoravelmente político, cabe lembrar, ainda, que a paz foi ressignificada desde o começo do século XX – da interrupção do uso da força armada entre estados soberanos via conferências de paz para dinâmicas de violência da vida cotidiana, imbricadas com a soberania, como as que sofreu Malala e contra as quais ela soube resistir.

O anúncio do prêmio, no começo de dezembro, marca um ritual de promessa e resignação. Muito há de ser feito pela causa da paz num sistema anárquico. Conquistas são relativizadas a posteriori. Não obstante, a paz persiste um ideal regulador nas relações internacionais, ainda que de Sísifo.


Carlos Frederico Pereira da Silva Gama é professor de relações internacionais da PUC-Rio.



NOTAS

1- Citado em Gama, C. F. and Lopes, D. B. "Bem me queres, mal me queres: ambivalência discursiva na avaliação canônica do desempenho da ONU". Rev. Sociol. Polit. online. 2009, vol.17, n.33, pp. 157-173.

2- www.nobelpreis.org/portugues/index.htm

3- www.nytimes.com/2008/07/15/us/politics/15text-obama.html?pagewanted=all&_r=0

4- Para uma discussão crítica dos conceitos de “criança” e “infância” nas relações internacionais, vide Tabak, J. (2009). "As vozes de ex-crianças soldado: reflexões críticas sobre o programa de desarmamento, desmobilização e reintegração das Nações Unidas". Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica.