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Artigo
O Nobel e alguns “contos de fada”
Por Gabriel Pugliese
10/12/2014
Dizia Marie Curie, a respeito de seu ofício, que “um cientista (...) não é um mero técnico: é também uma criança que confronta os fenômenos naturais que o impressionam como faziam os contos de fada”. Com efeito. Mas essa imagem revela muito mais uma paixão pelo ofício do que um deslocamento do mundo. Refiro-me àquele “desejado deslocamento” em que o cientista concentrado em seu laboratório como um enclave, distante das disputas e das relações de força que regem a vida humana, produz sua ciência desprendido. O laboratório, esse recinto sagrado dos cientistas, também é um aqueduto das relações humanas mais prosaicas; a ciência que dele é resultado, escoa tal como ele se apresenta. A história da radioatividade e de Marie Curie é um bom exemplo dessas relações. Os bastidores dos prêmios Nobel de nossa recordista reverberam as relações de poder que produziram a sua história e de sua grande invenção-descoberta: a radioatividade.

Marie Curie é a única mulher que recebeu o prêmio Nobel em duas ocasiões (1903 e 1911). Além disso, também é a única pessoa que recebeu a láurea em duas áreas científicas distintas (1), em física e em química, respectivamente. Esse gigante sucesso faz dela uma das cientistas – senão “a” cientista – mais importante da história da ciência moderna. Madame Curie é, assim, uma legenda inspiradora de diversos cientistas – principalmente de mulheres que se “aventuram” em um mundo majoritariamente masculino como o das hards sciences. No entanto, essa legenda em que a cientista se tornou contribuiu para eclipsar o modo como sua luta desigual em favor da radioatividade se desenrolou em meio a inúmeros bloqueios, fissuras, ajustamentos que não somente fazem parte de sua história como também da história da radioatividade. Tudo se passa como se o resultado pudesse explicar o processo.  A história de Marie Curie torna-se, então, uma hagiografia, onde os seus prêmios Nobel representam, assim, tão somente a desembocadura cristalizada desse trabalho seletivo de contar a história dos vencedores. Nesse caso, também, Marie Curie é uma exceção e, sobretudo, um pretexto de “um conto de fadas”.  

1903 – “uma auxiliadora idônea”


O prêmio Nobel – criado em 1901 – interessante por conta do dinheiro que disponibilizava para os vencedores e, além disso, pelo glamour de sua publicidade, enviou, em 1903, uma carta endereçada a Pierre Curie na qual revelava sua indicação e de Henri Becquerel à láurea, por conta da descoberta da radioatividade (2). A carta, redigida e assinada por quatro conselheiros, afirmava que “aqueles dois homens, competindo com rivais estrangeiros, haviam trabalhado juntos e separadamente e purificado alguns decigramas daquele material precioso” (3).

Ora, as pesquisas com substâncias radioativas e o próprio conceito de radioatividade como um fenômeno geral proveniente dos corpos ativos, foram produzidos por Marie Curie.  De um lado, Becquerel, que era de uma linhagem de importantes cientistas na França, havia descrito a atividade do urânio como um fenômeno singular de hiperfosforescência, e batizado como raios becquerel em 1896. Retomou suas pesquisas, sob um novo registro, e auxiliou os Curie com recursos e publicações, somente depois que Marie Curie, em 1898, percebeu a mesma ação no tório e em novos dois elementos químicos ainda em vias de comprovação: o polônio, nome dado por conta de sua terra natal; e o rádio, batizado em consonância com o fenômeno geral. Do outro lado, Pierre Curie, no mesmo ano, havia abandonado suas pesquisas sobre eletricidade e magnetismo para auxiliar a esposa em sua empreitada com as substâncias radioativas, que se apresentava revolucionária no campo das ciências, afinal eram novos elementos químicos e um fenômeno de grandes proporções ainda desconhecidos.

Entre os anos de 1898 e 1903, a divisão sexual do trabalho organizou o trabalho “dos Curie”, o casal. Enquanto Marie dedicava-se a isolar quimicamente os materiais radioativos (polônio e rádio), Pierre dedicava-se a compreender a natureza dos raios.  Desse modo, ele ficava com o trabalho mais intelectualizado e vinculado ao trabalho da física – a ciência dos princípios – e ela desdobrava-se com o trabalho braçal de purificação e isolamento das substâncias radioativas, trabalho este vinculado à química, que a essa altura não tinha uma identidade certa e era tratada como “uma física de menor monta”. Ora, se o trabalho em conjunto do casal jogava Marie Curie para a borda do “pessoal da radioatividade”, fazendo o trabalho de cozinha, por outro lado, permitia à cientista a continuidade dos trabalhos.

Esse elemento familiar, ao mesmo tempo paradoxal e produtivo, reverbera diretamente no prêmio Nobel de 1903. Se, na primeira indicação, Marie Curie não consta na láurea, apesar dos méritos serem reconhecidamente dela, tanto no que toca à radioatividade quanto ao “isolamento do material precioso”, por outro lado ele também está na base do fato consumado de ela ter vencido o prêmio. Nessa tônica, Pierre, em 1903, envia uma carta em resposta à comissão do Nobel em Estocolmo: “se é verdade que pensam seriamente em mim, desejo muito ser considerado juntamente com madame Curie, com relação à nossa pesquisa sobre corpos radioativos (...) Não acha que seria mais satisfatório, do ponto de vista artístico, se fóssemos associados dessa maneira?”.

De fato, a ironia do “elemento artístico” sugerida por Pierre Curie – que sempre fazia questão de lembrar que as pesquisas eram de sua esposa – foi considerada. O prêmio Nobel de 1903 ainda hoje (oxalá, ainda bem) é o único que três cientistas receberem a láurea dividida em dois: metade para Henri Becquerel “em reconhecimento aos serviços extraordinários que ele tem desenvolvido pela radioatividade espontânea”, e metade para o casal “em reconhecimento aos extraordinários serviços que eles têm desenvolvido com suas pesquisas conjuntas sobre o fenômeno da radiação descoberto pelo professor Becquerel”.  No discurso de entrega do prêmio, Marie Curie foi tratada como assistente dos dois “vencedores” e concluiu: “O grande sucesso do professor e da madame Curie (...) nos faz ver a palavra Deus à uma luz totalmente nova: ‘não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea’”.

1911 – “A polonesa destruidora de lares franceses”

Em janeiro de 1911, já consagrada como madame Curie, a cientista acabara de conseguir a purificação química do radium e os cálculos de suas propriedades. Havia publicado no ano anterior um dos livros mais importantes do início do século, o Tratado de radioatividade. Já reconhecida pelos feitos no mundo científico, Marie Curie não precisava provar nada mais. Por mais triste que fora a morte de Pierre, em 1904, esta havia lhe dado certa autonomia: ela se transformou, assim, na única porta-voz autorizada dos elementos radioativos, enquanto a radioatividade como um fenômeno da física havia se transformado, nas mãos de Rutherford e Soddy, numa questão atômica. Nenhuma questão sobre os elementos radioativos, para ter respaldo, poderia deixar de passar por seu crivo. De fato, quanto mais Marie Curie fazia proliferar os elementos radioativos que eram a sua base material da radioatividade, mais a radioatividade fazia proliferar madame Curie.

No entanto, as coisas não foram tão simples nem lineares assim, e envolvem tanto a xenofobia de uma França cercada pelo “caso Dreyfus” quanto a política sexual então reinante. Marie Curie, mais ou menos a partir de 1909, se envolveu amorosamente com outro homem, o cientista francês Paul Langevin, que foi um pupilo de Pierre. Paul era casado e tinha filhos. Por isso, ambos mantiveram o romance em sigilo. No entanto, em 1911, viajaram juntos para Bruxelas, onde participaram do primeiro congresso de Solvay, onde Marie Curie foi nomeada para calcular as medidas para a produção industrial do rádio. No mesmo congresso, Marie descobriu que havia sido indicada para o Nobel daquele ano, só que dessa vez em química. De volta à França, sofreu um ataque da imprensa, que divulgou todas as cartas que ela escreveu a Langevim, cartas essas divulgadas pela esposa do cientista, que ainda deu declarações sobre a cientista para os jornais chamando-a, entre outras coisas, de polonesa destruidora de lares.

Como havia ficado com a cadeira de Pierre Curie na Sorbonne, Marie enfrentou a expulsão violenta da universidade por traição à memória do marido. Sem mais, sua casa também foi apedrejada, de modo que suas filhas (4), ainda crianças, tiveram que ser escoltadas até a casa de amigos. Houve ainda um pedido de extradição à Polônia, revogado com ajuda de alguns amigos. Sabia-se que nada disso aconteceria a um homem. Cientistas como Einstein – que inclusive foi um dos que apoiaram enfaticamente Marie Curie – tinham alguns filhos “bastardos” e nunca receberam um tratamento desses. O próprio Langevim, por exemplo, tinha sido indicado, no mesmo período, para o prêmio Gegner de ciências, e recebeu o prêmio com a esposa ao seu lado.

Enquanto isso, por conta desse “escândalo”, Marie Curie recebia uma carta da Academia de Ciências de Estocolmo para que abdicasse de receber o prêmio Nobel. A essa carta ela responde: “Vocês dão a entender (…) que, se a Academia de Estocolmo tivesse sido alertada, provavelmente teria decidido não me dar o prêmio, a não ser que eu pudesse explicar publicamente o ataque de que fui objeto. (…) Devo, portanto, agir de acordo com as minhas convicções (…) A ação que vocês aconselham seria um grande erro de minha parte. Na verdade, o prêmio foi concedido pela descoberta do polônio e do rádio. Acredito que não há nenhuma relação entre o meu trabalho científico e minha vida privada (…) Não posso aceitar a ideia, em princípio, de que o valor do trabalho científico deva ser influenciado por difamações e calúnias acerca da vida privada”. Após essa carta de resposta, finalmente recebeu o seu segundo prêmio Nobel e fez questão de frisar em seu discurso que o isolamento do rádio forneceu provas para confirmar a sua hipótese de que a radioatividade era uma propriedade atômica. Fez questão, inclusive, de desfazer verbalmente o equívoco de 1903, devolvendo sua assinatura às descobertas.

Mais um conto de fadas...
Em 1995, os restos mortais de Marie Curie foram transferidos para o Panteão de Paris, numa cerimônia nobre por conta do centenário da radioatividade, o que a tornou a primeira mulher a ser enterrada lá por “méritos próprios” - segundo as palavras do então presidente da França, François Mitterrand, que ainda fez questão de frisar toda a sua “raridade”, a única mulher que recebeu o Nobel em duas oportunidades, e ainda em duas categorias distintas. Até meados de 1995, a famosa inscrição do frontão do Panteão era para ser tomada realmente ao pé da letra: “aos grandes homens a pátria reconhecida”. Doce ironia. A França deposita as cinzas de uma mulher polonesa após sessenta anos de sua morte no templo dedicado aos “homens da pátria”.

As pesquisas de Marie Curie não só mudaram toda a física e a química do período, como boa parte das relações entre homens e mulheres na ciência, na primeira metade do século XX. Mudanças ocorreram na medicina, com a radioatividade aplicada e a possibilidade da cura do câncer; e até na economia quando o rádio passou a ser o elemento químico mais caro do mundo. Logo, várias partes do mundo foram povoadas com dois elementos químicos, uma nova composição da matéria, outras substâncias químicas decorrentes da radioatividade, uma diferente medicina, uma movimentada economia e, em meio a tudo, uma representante feminina “de peso” na história das ciências.

O “Caso Marie Curie” foi realmente “excepcional”, porque a singularidade das relações que perpassaram a prática científica o constituiu dessa maneira. Em um território tradicionalmente masculino, Marie se destacou, mesmo com as dificuldades suplementares que o feminino encontrava na prática científica. Diferente de tantas outras “aventureiras” na ciência, ela conseguiu visibilidade e a “causa” de tal façanha é encontrada hoje em seus resultados: os prêmios Nobel, que a eternizaram na história das ciências. Mas esse produto, de uma história tão real e tão desigual, tende a explicar retroativamente todos os acontecimentos, fazendo com que pareça um bonito conto de fadas com uma beleza que não está exatamente nas conquistas de sua heroína mas, ao contrário, na trajetória de luta incansável de uma cientista chamada Marie Curie.

Gabriel Pugliese
é doutorando em ciência social (USP) e professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf).


Notas

1.  Linus Pauling recebeu o Nobel em química e o prêmio da paz.
2. Para se ter uma ideia, todas as honrarias dadas pela academia de ciência francesa durante o ano não chegavam perto da quantia em dinheiro destinada pelo prêmio Nobel. De modo que o prêmio não era tão prestigioso entre os cientistas quanto outros prêmios, mas tinha um apelo financeiro e publicitário bem maior.
3. Todas as referências do presente texto, assim como uma descrição mais detalhada dos acontecimentos, estão disponíveis em Pugliese, Gabriel. Sobre o Caso Marie Curie. A radioatividade e a subversão do gênero. São Paulo: Alameda, 2012.
4. Eve Curie, biógrafa da mãe e escritora renomada, e Irene Curie, vendedora do prêmio Nobel em 1935.