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Reportagem
Semiologia médica perde campo para tecnologias
Por Germana Barata
10/03/2006
Descrever a dor é um ato que precisa ser interpretado primeiro por quem a sente e, depois, pelo profissional de saúde. A experiência e a descrição da dor são extremamente particulares e podem variar de acordo com as circunstâncias, as condições psicológicas, sociais, econômicas e culturais do paciente. A análise desses elementos durante a entrevista médica é o primeiro e mais importante passo para o diagnóstico e para a definição de exames complementares e tratamento a ser indicado. No entanto, a entrevista com o paciente tem sido relegada, em troca de uma confiança excessiva na enorme gama de exames e tecnologia disponíveis. Além do prejuízo à relação médico-paciente, a prática tem elevado os custos de saúde.

A entrevista inicia-se pela identificação do paciente, descrição de sua história clínica e do motivo que o levou a procurar cuidados médicos. O processo segue com uma série de questões específicas que o médico realiza para elucidar pontos importantes: descrição do início do sintoma e a sua cronologia, localização e caracterização dos sintomas, intensidade, fatores precipitantes, fatores agravantes, fatores de alívio. O médico indaga também se um problema similar já ocorreu previamente e como foi resolvido.

“O uso efetivo da história do paciente e do exame físico são responsáveis por 70 a 90% do diagnóstico. Os exames complementares apenas servem para confirmar e dar alguma informação adicional”, enfatiza Aldo Peixoto, professor de medicina interna da Universidade de Yale (EUA). Segundo o especialista, os recursos de tecnologia são desastrosos quando empregados para substituir a anamnese (entrevista) e o exame físico.

Peixoto participa de um movimento ainda incipiente na medicina, mas que tem recebido novas adesões, em busca de uma revitalização da semiologia médica. “A semiologia pura, também chamada semiologia ‘desarmada’, vem sofrendo um processo de desprestígio em algumas escolas, em detrimento das disciplinas pautadas nas especialidades médicas”, lamenta Rosemeri Maurici da Silva, professora do curso de medicina da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) e uma das autoras do livro Semiologia para o estudante de medicina Unisul, 2005.

Um dos reflexos dessa desvalorização pode ser presenciado nas consultas médicas, nas quais as entrevistas duram em média 15 minutos. Celmo Celeno Porto, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás e autor do livro Semiologia médica, acredita que esse tempo jamais deveria ser inferior a 20 minutos, podendo chegar a duas horas em casos mais complexos. Seja pela má remuneração ou pela negligência do profissional, isso não tem sido feito, o que leva ao aumento das chances de erro no diagnóstico e de pedidos desnecessários de exames.

Em 2000, a média de exames realizados para cada cem consultas no sistema privado carioca era de 120, conforme afirma Arlindo de Almeida, presidente da Associação Brasileira das Empresas de Medicina de Grupo (Abramge), ao jornal O Globo (9/5/2005). Cinco anos depois, esse número pulou para 270, sendo que 30% sequer são retirados dos laboratórios. Segundo o Ministério da Saúde, o número de exames laboratoriais recomendado por cada cem consultas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) é de 50.

Outro reflexo da negligência com a relação médico-paciente é a insatisfação dos pacientes com a medicina tradicional que, em resposta, migram para a chamada medicina alternativa, a exemplo da homeopatia, isto porque essas terapias valorizam a anamnese e o quadro geral do paciente, incluindo o psicológico. Amarylis Zaldúa Triana, em artigo no periódico Cultura homeopática, de 2004, sugere que a semiologia homeopática pode enriquecer o olhar semiológico biomédico. A precisão de um “retratista”, defendida por Christian Samuel Hahnemann (1755-1843), idealizador da homeopatia, é constituída a partir do raro, peculiar e característico para se alcançar a individualização dos sintomas. Triana lembra que a entrevista médica atenta não apenas para a descrição dos sintomas pelo paciente, mas também para a comunicação não-verbal (ou corporal, como expressões faciais, gestuais etc), paralingüística (como a informação é transmitida) e as representações sociais que surgem e que fazem parte do senso-comum – conceitos emprestados da lingüística. “Acredito que outras semiologias, outras racionalidades médicas, como também outros olhares terapêuticos têm muito a contribuir na formação dos médicos”, diz a especialista.

Obstáculos

Do lado oposto da semiologia, encontram-se sistemas computacionais que têm auxiliado o diagnóstico médico, colocando à disposição do profissional da saúde sintomas que selecionados levam a alguns diagnósticos. Um exemplo é o Lepidus desenvolvido entre 1996 e 2000 no Laboratório de Sistemas Neurais (SIsNE) do Departamento de Física e Matemática da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP, que armazena cerca de 1130 doenças e 400 sinais e sintomas. No sistema o médico insere os sintomas descritos pelo paciente e recebe como resposta uma lista de possíveis doenças, das mais prováveis às menos prováveis. Peixoto acredita que esses programas facilitam a decisão dos profissionais de saúde e, portanto, melhoram sua relação com o paciente e, por conseguinte, a cura fica mais fácil de ser alcançada. “Embora haja entusiasmo e o recurso seja bem-vindo, a interação entre paciente e médico não é somente um encontro científico onde uma queixa vai ser codificada em um programa de computador”, lembra Roberto Henrique Heinisch, do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). De acordo com o especialista, alguns pacientes têm dificuldades para expressar suas necessidades e os médicos, para codificá-las e, portanto, “as incertezas e os imprevistos deste encontro muitas vezes não estão previstos nas redes neurais, algoritmos e linguagens dos programas de computador utilizados”.

Uma dessas incertezas que se coloca é a descrição popular de sintomas, que podem ser desconhecidos dos médicos e mais ainda dos softwares. Avexame, rebuliço na dona do corpo, sapituca e arrocho (veja significados no final do texto), são alguns termos populares que descrevem sintomas. Alguns deles são agrupados em glossários para facilitar a compreensão médica. Por outro lado, os especialistas de saúde devem estar atentos às informações e demandas que surgem frente ao enorme fluxo de informação a que a população está exposta.

Dentre os meios de comunicação, a internet permite uma busca selecionada, muda a relação com a doença, suas representações e descrições, tornando os pacientes menos passivos em relação aos profissionais da saúde. Segundo Celmo Porto, na segunda-feira a demanda dos consultórios médicos varia de acordo com o que disser o Fantástico (programa exibido pela Rede Globo) no domingo à noite, referindo-se aos quadros apresentados por Dráuzio Varella sobre problemas de saúde que acometem grande parte da população (entre eles obesidade, tabagismo, enfarte e gravidez). Porto acredita que a informação obriga os médicos a ficarem permanentemente atualizados para que possam se posicionar quando o paciente colocar suas questões.

Amarylis Triana defende a formação de médicos que possam refletir sobre o alcance do instrumento semiológico, diagnóstico e terapêutico. “E também recobrar o que é digno de ser recobrado, historicamente, no interior da sua própria racionalidade, aquele ‘ olhar clínico’, que dava importância ao signo semiológico, mas ampliado à luz dos conceitos do signo atuais”.


Alguns termos populares de sintomas

Arrocho: sensação de aperto no tórax

Avexame: sensação de desconforto ou dor moderada e difusa na face anterior do tórax, quase sempre acompanhada de palpitações.

Rebuliço na dona do corpo: cólica uterina. Movimento ativo do feto.

Sapituca: crise nervosa com agitação psicomotora. Crise de desfalecimento, desmaio ou mesmo convulsões.