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Artigo
A semiótica e os estudos literários
Por Lucia Santaella
10/03/2006

São muitas as origens da moderna semiótica. Em função dessa multiplicidade, existem várias correntes semióticas. Portanto, quando se fala em semiótica, a primeira questão que se deve colocar é de qual semiótica estamos falando. Tendo isso em vista, seria muito parcial tocar na relação proposta pelo título deste artigo, sem a preocupação de um esboço, mesmo que breve, das principais linhas teóricas e metodológicas da semiótica. Esse preâmbulo ainda se justifica porque, dependendo da corrente semiótica de que estamos tratando, difere a própria definição da semiótica, assim como diferem os conceitos e o modo como eles são aplicados a outros campos do saber, das produções e criações humanas, e no caso que agora nos diz respeito, à literatura.

O boom dos estudos semióticos emergiu na Europa, especialmente na França, nos anos 1960 e suas fontes vinham do Curso de lingüística geral de Ferdinand de Saussure (1916) e da obra lingüística do dinamarquês Louis Hjelmslev. Portanto, a emergência da semiótica coincidiu com a enorme repercussão que o estruturalismo obteve naquela e na década seguinte. De fato, nessa época, os estudos semióticos vinham de fontes estruturalistas. Por isso mesmo, para muitos, a semiótica se limita à semiótica estruturalista. Isso é um equívoco.

O legado do estruturalismo exerceu forte influência sobre outras áreas do saber, tais como a antropologia, a sociologia, a história, a psicanálise e a filosofia, uma influência, aliás, que gerou muitos debates e controvérsias. Ora, a área que está mais próxima da lingüística porque também lida primordialmente com a palavra, é a literatura. Não é de se estranhar que o primeiro campo da semiótica a se expandir para fora da lingüística foi o dos estudos literários, especialmente na semiótica da narrativa, da poesia e do discurso em geral. Sob esse aspecto, bastante influente até hoje é a semântica narratológica e de A. J. Greimas, baseada em um modelo actancial, inserido em uma teoria discursiva complexa que apresenta uma trajetória entre o nível profundo e o nível superficial do discurso. Ao longo dos anos, essa teoria foi evoluindo para uma gramática modal e aspectual que estende as ações narrativas para uma semiótica das emoções e paixões dos actantes.

Ainda nas décadas de 1960-70, sob o nome de formalismo russo, estavam recebendo ampla divulgação por todo o mundo ocidental os estudos que haviam sido levados a cabo no começo do século na então União Soviética e que o stalinismo silenciara por algum tempo. Os ideais de fundação de uma ciência da literatura, que nortearam esses estudos, não apenas apresentavam coincidências com os ideais da lingüística, como também vinham de fundações lingüísticas. Em função disso, alguns pensam que a semiótica literária se restringe às fontes estruturalistas e formalistas, o que também é um equívoco. Na própria União Soviética havia nascido, contemporaneamente ao formalismo, o Círculo de Bakhtin cujos trabalhos, voltados para o campo da literatura e da cultura, apresentavam distinções claras em relação ao formalismo. Foi também na União Soviética que, a partir do rico legado deixado pelos formalistas e Bakhtin, desenvolveu-se a Escola de Tartu cujas pesquisas tinham por escopo os fenômenos da cultura em geral.

Ainda por volta dos anos 1970, o vasto domínio de pesquisa semiótica deixado por C. S. Peirce começou a ser resgatado do esquecimento graças aos sinais de alerta dados por Roman Jakobson sobre a importância fundamental do trabalho de Peirce para o estudo dos mais diversos processos de signos. Embora Jakobson tenha sido um lingüista de formação, são conhecidas as suas contribuições para os estudos da literatura. É importante notar que foram os estudiosos da literatura os primeiros a explorar a semiótica de Peirce para dela extrair contribuições aos estudos literários.

Portanto, desde o início, a semiótica literária não se limitou ao estruturalismo. De outro lado, desde os anos 1970, o campo de pesquisas semióticas foi se expandindo cada vez mais, ao mesmo tempo em que a semiótica foi gradativamente deixando de ser uma corrente teórica prioritária nos estudos da literatura.

Já nos anos de emergência da semiótica na Europa, os projetos semióticos de Roland Barthes e outros abraçavam sistemas de signos além dos lingüísticos e literários, tais como cinema, pintura, comunicação de massa, moda, culinária etc. Também nos Estados Unidos, desde os anos 1960, Thomas Sebeok vinha dando passos firmes para a abertura de novos horizontes da semiótica: das estruturas textuais à comunicação em geral, da comunicação verbal à comunicação não-verbal humana, e, para além da comunicação humana, a comunicação animal e desta para a interdisciplina da biossemiótica, hoje em plena expansão em várias partes do mundo. Além de todos esses domínios do orgânico, com o desenvolvimento do computador e cultura digital, as máquinas e computadores até a inteligência artificial e vida artificial passaram a se constituir em um novo desafio para a pesquisa semiótica.

Quanto aos estudos semióticos da literatura, passada a grande repercussão da década de 1970, a despeito da variedade de suas tendências, a semiótica da literatura foi se tornando, cada vez mais, apenas uma entre outras modernas teorias da literatura. Embora não goze da mesma prioridade que a literatura lhe deu nos anos 1970, a relevância da semiótica para os estudos literários é até hoje indiscutível, o que pode ser medido pelo enorme volume de bibliografia existente em que a literatura é trabalhada tanto teórica quanto criticamente à luz de conceitos semióticos.

Tal é o caso, por exemplo, do conceito de iconicidade que encontra na literatura um campo privilegiado de manifestação. O ícone é, por excelência, um signo motivado que rompe com o princípio da arbitrariedade da língua. Na teoria dos signos de C. S. Peirce, responsável por ter notabilizado o conceito de iconicidade, o ícone é um signo que significa seu objeto porque apresenta semelhanças qualitativas com ele. Ora, um texto é tanto mais literário quanto mais a linguagem, ao manipular o potencial icônico da língua, é capaz de materializar nas próprias palavras aquilo sobre o que fala, transfigurando a convencionalidade em sentidos motivados que saltam à flor da pele das palavras. É sob o poder das analogias, no âmago da iconicidade, que a linguagem literária, na sua quinta-essência que é a poesia, chega a roçar as nervuras e os vincos secretos das coisas e dos ritmos vitais.

Além da possibilidade de penetração analítica nos meandros mais sutis das palavras, a teoria geral dos signos permite desenvolver relações de várias ordens entre a semiótica e a literatura. Estas são relações internas, estabelecidas nos limites da própria literatura, e que recebem o nome de literatura comparada, da qual uma regionalidade seria a semiótica da tradução, e relações externas, estas desdobradas em dois níveis: relações da literatura com as demais artes: música, pintura, escultura etc. e relações da literatura com outros sistemas de signos: jornal, fotografia, cinema, publicidade, televisão, hipermídia. Tudo isso é viável porque a teoria geral dos signos nos habilita a perceber as inter-influências e intercâmbios de recursos que um sistema de signos pode estabelecer com outros e que são chamados de processos intersemióticos. Sob essa lente, torna-se perceptível por que e como uma linguagem pode fecundar a outra, como a literatura pode fecundar o cinema e vice-versa, como a música pode fecundar a poesia e vice-versa. Enfim, o saber semiótico funciona como um passaporte de trânsito entre as linguagens e como um detector das forças nascentes da linguagem que encontram suas fontes privilegiadas na literatura.

Lucia Santaella é professora titular no programa de pós-graduação em comunicação e semiótica e coordenadora do programa de pós-graduação em tecnologias da inteligência e design digital (PUC-SP). Doutora em teoria literária pela PUC-SP e livre-docente em ciências da comunicação pela USP. É presidente honorária da Federação Latino-Americana de Semiótica e Diretora do Centro de Investigação em mídias digitais (Cimid), da PUC-SP. Organizou sete livros e, de sua autoria, publicou 28 livros, entre os quais incluem-se matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual, verbal (Ed. Iluminuras/Fapesp, prêmio Jabuti 2002) e a publicação mais recente Navegar no ciberespaço. O perfil cognitivo do leitor imersivo (Ed. Paulus, 2004).