REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO


Editorial
Semiótica e Semiologia
Por Carlos Vogt
10/03/2006

O termo semiótica tem longa tradição de uso e sua antiguidade remonta ao médico grego Cláudio Galeno que viveu entre 131 e 201 da era cristã e cujas teorias influenciaram fortemente a medicina até pelo menos o século XVII. Nesse caso, semiótica, com a variante semiologia, designa a ciência dos sintomas em medicina e é sinônimo de sintomatologia.

 

O uso do termo semiótica para designar a ciência dos signos, correspondendo, nesse sentido, à lógica tradicional, foi proposto pelo filósofo inglês John Locke, no século XVII e, em seguida, retomado por Lambert, no século XVIII, como título da terceira parte da obra Novo Organon.

 

Entretanto, por iniciativas independentes, a semiótica, por um lado, na designação de origem anglo-saxã e a semiologia, de outro, na vertente neo-latina da cultura européia, vão ser propostas como disciplinas autônomas, no primeiro caso, pelo filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce que viveu de 1839-1914 e, no segundo, pelo lingüista suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913), cujo Curso de lingüística geral, publicado postumamente em 1916 por Charles Bally e A. Sechehaye, que haviam sido seus alunos, constitui o marco de referência da grande revolução teórica dos estudos na área.

 

A terceira e última parte da “Introdução” a essa obra fundadora da lingüística moderna, Saussure a dedica a refletir sobre o “Lugar da língua nos fatos humanos”, para daí anunciar, com feliz augúrio, o nascimento futuro da semiologia.

 

É conhecida a distinção entre língua e fala proposta por Saussure, no sentido de delimitar a língua como objeto de estudo da ciência lingüística.

         Enquanto a fala é um contínuo sonoro e a linguagem é heterogênea e múltipla de aspectos físicos, psíquicos e sociais, a língua, de natureza homogênea, formada de elementos discretos, constitui um todo em si mesmo, é um princípio de classificação, isto é, de ordenação e explicação dos fatos de linguagem. A língua é, assim, um objeto teórico, um constructo, um sistema cujos elementos integrantes e integradores são os signos. É, ao mesmo tempo, uma instituição social que se distingue de outras instituições, políticas, jurídicas, etc., pela natureza especial do sistema de signos que constitui.

 

Como escreve Saussure: “A língua é um sistema de signos que exprime idéias e, desse modo, é comparável à escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simbólicos, às formas de polidez, aos sinais militares, etc. É, contudo, o mais importante, desses sistemas.”

 

É nesse momento que, anunciando a nova ciência dos signos, o autor lança a semente do que viria a ser um dos mais profícuos campos de investigação dos comportamentos e das formas simbólicas das relações humanas no século XX e neste século, que já aos poucos se desdobra.

 

Diz o autor:

        

“Pode-se conceber uma ciência que estuda a vida dos signos no seio da vida social; ela seria parte da psicologia social e, conseqüentemente, da psicologia geral; nós a nomearemos semiologia (do grego sémeîon, “signo”). Ela nos ensinará em que consistem os signos e que leis os regem. Como ela não existe ainda, não se pode dizer o que ela será; mas tem direito à existência e seu lugar já está pré-determinado. A lingüística não é senão uma parte dessa ciência geral e as leis que descobrirá a semiologia serão aplicáveis a ela, fazendo com que a lingüística se ligue a um domínio bem definido no conjunto dos fatos humanos.”

 

Um pouco mais sobre o assunto nas duas páginas restantes dessa “Introdução” e é tudo o que aparece no Curso de lingüística geral referente à semiologia.

 

Mas o vaticínio lançado funcionou também como provocação científica e a partir daí toda uma escola semiológica, com identidades, diferenças, harmonias e disputas foi se consolidando na Europa e disseminando-se pelo mundo pela ação de intelectuais, estudiosos e grandes referências internacionais como o lingüista Roman Jakobson, o antropólogo Claude Levi-Strauss, a teórica da literatura Julia Kristeva, o semanticista e semiólogo Algirdas Julien Greimas, o ensaísta Roland Barthes, entre muitos outros que fizeram ou seguiram escolas de semiologia, lá, aqui, onde quer que se falasse de sentido, significação, signos e significância.

 

A outra vertente da moderna semiologia, designada mais especificamente pelo termo semiótica, tem, como dissemos, suas origens mais contemporâneas, na vasta obra do lógico e filósofo americano Charles Sanders Peirce.

 

Preocupado em estabelecer uma relação necessária entre ciência e filosofia, formula o método pragmático, buscando, assim, propor um método científico para a filosofia. Quer dizer, um método capaz de conferir significado às idéias filosóficas em termos experimentais. As opiniões e o estabelecimento de sua verdade constitui o objetivo fundamental do método científico. Ao pragmatismo cabe responder pela determinação experimental do significado das idéias ou conceitos intelectuais.

 

O pragmatismo, proposto, assim, como um método científico para determinar o significado de conceitos intelectuais, é também a negação do intuicionismo cartesiano e da idéia de que o pensamento possa interpretar-se a si mesmo. É só em termos de signo que ele se efetua e, desse modo, é visto como complexamente estruturado numa relação triádica: significa alguma coisa para alguém de alguma maneira.

 

Segundo Peirce, “um signo, ou representamen, é algo que, sob certo aspecto ou de algum modo, representa alguma coisa para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um signo melhor desenvolvido.”

 

Ao signo assim criado Peirce denomina interpretante do primeiro signo.

 

Sendo relacional o pensamento, a tarefa do pragmatismo é estabelecer a natureza dessa relação, isto é, determinar o significado dos signos.

 

Daí a afirmação de Peirce de que “a lógica, em sentido geral, é (...) apenas outra designação da semiótica, a quase necessária ou formal doutrina dos signos.”

 

A partir do caráter triádico do signo, Peirce divide a semiótica em três ramos: o da gramática especulativa, segundo a denominação de Duns Scotus, na idade média, ou da gramática pura, como ele próprio a chama, que tem como objetivo “determinar o que deve ser verdadeiro a propósito do representamen utilizado por toda inteligência científica para que possa incorporar um “significado”; o da lógica, propriamente dita, isto é, da “ciência formal das condições de verdade das representações”; o da retórica pura, cujo objetivo é “determinar as leis em obediência das quais, em toda inteligência científica, um signo dá surgimento a outro e, especialmente, um pensamento provoca outro.”

 

Nesse sentido, a semiótica é sinônima não só da lógica, mas também da teoria lingüística e a tripartição acima apontada equivale aos níveis de análise, consagrados metodologicamente, da sintaxe, da semântica e da pragmática.

 

Peirce propõe uma série de classificações para o signo, sendo a mais conhecida a que o considera em sua relação com o objeto e o caracteriza como ícone, índice ou como símbolo.

 

Em Peirce, tudo é múltiplo de 3, assim como para Saussure e para os estruturalistas que vieram depois dele os sistemas de signos são binários e se organizam em posições dicotômicas.

 

Na linha da semiótica de inspiração lógica é preciso lembrar a forte influência exercida por Frege, em particular sua distinção entre sentido e significado, os trabalhos de Russel e de Carnap e a sistematização que a ela deu outro lógico e filósofo americano nos anos 1930, Charles Morris.

 

Seguindo essa mesma orientação, mas incorporando o conteúdo dos estudos etológicos desenvolvidos nos EUA e na Europa, a semiótica voltou-se também para a vida animal – a zoosemiótica – e teve em Thomas Sebeok um ativo e profícuo militante intelectual.

 

Outros grandes nomes marcaram o desenvolvimento da semiótica e da semiologia, entre eles Ernst Cassirer, Karl Bühler e Eric Buyssens.

 

Língua, literatura, moda, culinária, comportamento animal, música, pintura, jogos, rituais, regras sociais, parentesco, tudo, enfim, que, por algum modo, passou a ser percebido como sendo em si significante e sendo o que não é, isto é, sendo, simultaneamente outra coisa que si mesmo, tendo, pois, um significado, passou também à categoria de objeto semiológico ou semiótico.

 

A confirmação do mundo desgarrado em símbolos, eles próprios do mundo desgarrados, vagando em imagens de onipotente simultaneidade, confirmou também à semiologia um papel crucial no desenvolvimento crítico dos nossos simulacros de realidade, vale dizer, de suas representações e das múltiplas formas de apresentação dessas representações.

 

O presságio de Saussure concretizou-se e se a semiologia não se constituiu em ciência, no sentido estrito do termo, produziu, contudo, um conjunto sistemático de estudos sobre o homem, suas ações e seus significados que não é possível não levar em conta quando se pretende, senão responder, ao menos formular com alguma consistência as perguntas, não metafísicas, mas pragmáticas, sobre os sentidos da vida, suas direções e as constantes sistemáticas de suas variações históricas, culturais e mesmo biológicas.