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Reportagem
A fitoterapia no SUS: contemplando a medicina integrativa
Por Tássia Biazon
14/09/2016

Em Goiânia (Goiás) funciona, há 30 anos, um ambulatório referência em fitoterapia e outras práticas medicinais alternativas e complementares no Brasil. O Centro de Especialidades em Práticas Integrativas e Complementares (Cremic) permite, por exemplo, tratar a artrite reumatoide com plantas colhidas no horto medicinal do local.

O centro, que recebe cerca de 200 pacientes por dia, dispõe de uma equipe multidisciplinar: médico, enfermeiro, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, assistente social, farmacêutico, terapeuta ocupacional, psicólogo, nutricionista, técnico de enfermagem e engenheiro agrônomo. Além de fitoterapia, homeopatia e acupuntura, tem outras práticas terapêuticas chinesas, como maxobustão e ventosaterapia, e indianas, como ayurveda e yoga.

O diretor técnico do Cremic, Danilo Maciel Carneiro, afirma que o centro é o único com esse molde no Sistema Único de Saúde (SUS). “Somos considerados pioneiros na inclusão dessas práticas, que antigamente eram chamadas de não alopáticas, posteriormente de alternativas e, hoje, integrativas na saúde pública”, relata. A medicina integrativa aborda todas as práticas terapêuticas: tradicional, complementar e alternativa.

Do conhecimento popular ao científico

As plantas sempre foram usadas para o tratamento de doenças. Os primeiros registros baseados no conhecimento tradicional datam de quase cinco mil anos, na China.

Entre os diversos tipos de medicamentos existentes, há aqueles obtidos exclusivamente com o uso de ativos vegetais, extraídos das folhas, caules, raízes, flores e sementes, os denominados fitoterápicos. Eles podem ser encontrados na forma de comprimidos, pomadas, géis, cremes, xaropes, tinturas, extratos e soluções.

Seus benefícios são variados, tratando, por exemplo, doenças infecciosas e alérgicas. “Observa-se a utilização de plantas para males crônicos como dores reumáticas. Porém, existem diversos produtos para dificuldades gastrointestinais e vias respiratórias”, explica Mary Ann Foglio, docente em farmacognosia da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unicamp, que compõe o Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas (CPQBA).

O coordenador da Comissão Assessora de Plantas Medicinais e Fitoterápicos do Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo, Luis Carlos Marques, afirma: “Há produtos que combatem osteoartrose, ansiedade, depressão, problemas hepáticos e outras doenças. Certamente, porém, os fitoterápicos são mais suaves que os sintéticos, o que nos leva a recomendá-los para determinados casos, reservando os sintéticos, mais potentes, (e também com maiores riscos) para outros”.

Embora haja benefícios, como todo medicamento, o fitoterápico deve ser utilizado com orientação médica. É errado pensar que o que é natural não faz mal. Quem nunca ouviu falar que a comigo-ninguém-pode ou a copo de leite são plantas tóxicas?

“Como nem sempre é possível determinar com precisão quais os componentes ativos e os tóxicos numa espécie, se a dose terapêutica fica muito próxima da dose tóxica, o produto é retirado de circulação”, explica Foglio. Segundo ela, um exemplo são os digitálicos, medicamentos para insuficiência cardíaca, mas que frequentemente causam efeitos adversos devido à toxicidade.

A fitoterapia e a legislação

A inclusão da fitoterapia no sistema de saúde se dá antes da criação do SUS. Na década de 1980, políticas, programas, resoluções, portarias e relatórios sobre a temática já apareciam. Em 2004, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), responsável por regulamentar todos os medicamentos, aprovou resoluções que culminaram na normatização do registro dos fitoterápicos, prezando pela qualidade, segurança e eficácia.

Em 2006, com a criação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (PNPIC), foi proposta a inclusão de diversas opções terapêuticas, como a fitoterapia. No mesmo ano, foi aprovada a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, objetivando “garantir à população brasileira o acesso seguro e o uso racional de plantas medicinais e fitoterápicos, promovendo o uso sustentável da biodiversidade, o desenvolvimento da cadeia produtiva e da indústria nacional”.

As diretrizes da política foram lançadas em 2008, no Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, buscando: promoção do uso racional de plantas medicinais e fitoterápicos, inclusão das plantas medicinais e fitoterápicos na lista de medicamentos da “Farmácia Popular”, implementação da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos no âmbito do SUS, atualização permanente da Relação Nacional de Fitoterápicos (Rename-Fito) e a Relação Nacional de Plantas Medicinais, e a criação e implementação do Formulário Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos. Em 2016, ao completar dez anos da implantação da política, foi lançado o documento que reúne a política e o programa.

O artigo “A política nacional de plantas medicinais e fitoterápicos: construção, perspectivas e desafios, publicado na Physis - Revista de Saúde Coletiva, informa que “a implementação da fitoterapia no SUS representa, além da incorporação de mais uma terapêutica ao arsenal de possibilidades de tratamento à disposição dos profissionais de saúde, o resgate de uma prática milenar, onde se imbricam o conhecimento científico e o conhecimento popular e seus diferentes entendimentos sobre o adoecimento e as formas de tratá-lo.”

Marques, do Conselho Regional de Farmácia, estima que, dos 5570 municípios brasileiros, cerca de 200 possuam instalados os programas de fitoterapia – o Ministério da Saúde não divulga os números. Segundo ele, há cerca de 400 medicamentos fitoterápicos registrados e comercializados no Brasil, a maioria feita com plantas importadas (como ginkgo biloba), exóticas aclimatadas no país (alcachofra) ou nacionais (barbatimão).

 

Ao todo, 12 plantas foram selecionadas para receber financiamento público em licitações, e incluídas no SUS como medicamentos. Eles estão especificados na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) de 2014, produzido pelo Ministério da Saúde, e atualizado em 2015. As plantas listadas são: babosa, alcachofra, isoflavona-de-soja, garra-do-diabo, unha de gato, espinheira-santa, hortelã, guaco, plantago, cáscara-sagrada, salgueiro e aroeira-da-praia.

"Se uma prefeitura quiser comprar, por exemplo, espinheira-santa, pode pedir recursos do SUS. Mas, se quiser comprar e oferecer valeriana (que não está na lista), tem que fazê-lo com recursos próprios”, destaca Marques.

Potencial pouco explorado

O Brasil detém a maior biodiversidade do mundo e das espécies vegetais. Embora com saberes tradicionais valiosos e numerosos, poucos são os estudos e informações sobre as plantas medicinais brasileiras. Logo, suas potencialidades estão longe de findarem. Quais espécies usar? Como preparar o medicamento? Quantas doses administrar?

A relação entre o saber popular e científico pode ajudar a resolver as questões. “Grande parte das pesquisas em plantas medicinais são fundamentadas no conhecimento popular, o que chamamos de pesquisa etnobotânica, que trabalha em conjunto com a etno-farmacologia”, diz a pós-doutoranda pela Faculdade de Farmácia da Unicamp, Michelle Pedroza Jorge, professora no curso de farmácia da Faculdade de Jaguariúna.

Sob a coordenação de Foglio e outros pesquisadores, Jorge desenvolve há 12 anos estudos no CPQBA com a espécie Arrabidaea chica, conhecida como Pariri. A planta, além de tingir a pele, também era utilizada pelos índios para o tratamento de feridas devido às propriedades cicatrizantes e anti-ulcerogênicas. “Estamos na fase clínica 1 e 2 do estudo, para verificar a eficácia no tratamento da mucosite oral (efeito colateral da radio e quimioterapia) em pacientes com câncer de cabeça e pescoço do Hospital de Clínicas da Unicamp”.

Este é um exemplo de que o processo certamente não é simples, mas o resultado tem potencial. “A inclusão das plantas medicinais no SUS auxiliará no tratamento de diversas doenças, além de resgatar o respeito da população pela natureza”, indica Jorge.

Mesmo considerando o baixo custo dos fitoterápicos, a grande quantidade de matéria-prima, a tradição do seu uso e a consonância com o PNPIC, Danilo Carneiro, do Cremic, avalia que a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos é pouco expressiva. “Esses programas são ainda tímidos, pequenos, carecendo de apoio do Ministério da Saúde”, analisa.

Uma das medidas do governo foi instituir no SUS, em 2010, a Farmácia Viva, com a finalidade de realizar “o cultivo, a coleta, o processamento, o armazenamento de plantas medicinais, a manipulação e a dispensação de preparações magistrais e oficinais de plantas medicinais e fitoterápicos”. Uma Farmácia Viva que se destaca e nasceu antes da medida fica em Fortaleza, Ceará. Porém, elas permanecem escassas. Também é pequeno o número de profissionais de saúde que dominam a fitoterapia. Uma das capacitações oferecida pelo SUS foi um curso a distância em 2012, com a participação de 300 médicos brasileiros.

Outro incentivo é quanto aos cursos superiores que contemplem a fitoterapia e que invistam em pesquisa. O ambiente acadêmico possibilita o levantamento de informações e constrói novos conhecimentos científicos. “Com certeza temos mais de 200 teses esperando aprovação para serem utilizadas na saúde pública”, afirma Carneiro.

O artigo “As monografias sobre plantas medicinais, publicado na Revista Brasileira de Farmacognosia, indica que as monografias sobre plantas medicinais surgiram na Alemanha, no início do século XIX, país que hoje lidera a produção de fitoterápicos no mundo.

A relação entre indústria e pesquisa

Embora muitos produtos naturais tragam benefícios, informações imprecisas sobre as plantas medicinais e os fitoterápicos prejudicam o setor. “Devido à falta de tradição de uso de medicamentos fitoterápicos no Brasil, aliado a muitas empresas de má-fé que vendem produtos sem nenhum controle de qualidade, criou-se muita preocupação relacionada aos benefícios e riscos que os mesmos podem trazer”, atesta Foglio.

A pesquisadora ressalta que seu grupo de pesquisa tem produzido dados capazes de colocar produtos fitoterápicos no mercado, mas ressalva: “Para tanto, necessitamos de empresas dispostas a trabalhar com eles”, pois há pequena participação da indústria em pesquisa e desenvolvimento na área no Brasil. Visto o tamanho da flora do país, era de se esperar uma expressiva farmacopeia brasileira.

Antes da Lei 13.123/2015, que dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético e conhecimento tradicional, havia muita dificuldade para as empresas trabalharem com produtos de plantas nativas, pois era exigida autorização prévia de acesso ao patrimônio genético. “Empresas como Natura e Aché foram multadas, em valores altíssimos, devido às discussões do que era pesquisa e bioprospecção. Com a nova lei, existe a expectativa que se estabeleça uma parceria mais profícua entre universidades e empresas para o desenvolvimento de produtos de origem natural”, analisa Foglio.

O processo de industrialização formula composição padronizada, comprova os efeitos terapêuticos e evita contaminações. A produção de um novo medicamento fitoterápico, obrigatoriamente, deve atender às normas da Anvisa. “Pode levar muitos anos desde a descoberta de um produto até seu desenvolvimento que possibilite a produção padronizada, considerando a grande variabilidade de componentes que uma espécie vegetal poderá apresentar conforme seu fenótipo”, revela a pesquisadora, que atua na identificação e isolamento de princípios ativos.

Há inúmeras barreiras para a produção de fitoterápicos, como a falta de elos da cadeia de desenvolvimento, a burocracia com as patentes, dentre outros. “Anualmente são lançados um ou dois, feitos geralmente de plantas exóticas”, informa Marques. O laboratório Aché se destaca, com equipe especializada em fitoterápicos. Entre as novidades no mercado, destacam-se agente cicatrizante feito com barbatimão (Fitoscar, da Apsen); tratamento da osteoartrite e artrite reumatoide feito com açafrão-da-terra (Motore, da Aché); e distúrbios de memória, feito com bacopá (Cognitus, da Sanofi).