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Editorial
Rio Grande
Por Carlos Vogt
10/11/2016

Aqui, aquém, agora deste rio caudaloso de insignificâncias,

deposito a espada de criança.

Aqui, onde se agitam emblemas fortalecidos e sujos

do sangue dos combates duros,

aqui deposito a hora, o cavalo de pau, a armadura de

                                                                      [minhas lembranças.


Aqui, neste rio que não lembra o Tejo

e que não é maior que o rio que passa pela minha aldeia,

neste rio feito de imagem, celulóide, projeção e luz,

rio de batalhas memoráveis pelos feitos heróicos de generais

       [quiméricos,

divisor conspícuo de províncias convictas,

águas virgens de realidade

rios de bêbados em barcos sérios.

Aqui, como se conta, quase por nada

naufrágios rasos obstruíram o curso de históricas

                                                          [descobertas,

meninos proibidos de assistir ao filme impróprio

tomaram de assalto na noite erma o alçapão do assoalho

por trás da tela, na popa da aventura extrema,

fizeram correr, com a cena nua da atriz francesa

    [d’A chicotada,

rios infantes de esperma.

 

Rio Grande, não destes de fronteiras territoriais,

este de Minas e São Paulo, entre Igarapava e Minas Gerais,

tampouco o que corria caudaloso no Cine Santa Rita,

aquele que não dividia Sales de Oliveira de Orlândia

mas separava bandidos e mocinhos,

a linha de cima e a linha de baixo pelos trilhos da Mogiana

e, pelo mesmo leito seco de máquinas, passageiros,

comboios e litorinas,

heróis e mexicanos, os Estados Unidos e o México,

o México da Hispano-América

o Brasil da América Latina

São Paulo das treze listas

Sales de nunca mais.

 

Rio Grande, contudo,

feito das erosões da infância,

dos cursos caudalosos das enchentes de março

e dos outros meses anônimos em que houve cheias.

Rio teimoso

como o poema, às vezes, corre do mar para a terra

e na terra se embrenha

claro, poluído, claro

contraste de vida e de morte,

rio corrente, rio parado, rio de beleza feia.

 

Rio onde nunca vi boi morto nem outro cão emplumado,

rio que não corre da serra nem para ela se oferece,

rio em cinemascope, branco e preto, rio em cores,

águas prenhes do espanto da fruta que amadurece,

rio que vi com meu pai na roda dos pescadores

no bar do seu Armando.

Rio sem águas, rio de temas,

rio do não retorno,

roteiro de minhas noites,

eu menino,

eu meu pai, meu pai menino

córrego de interiores

curso de cinemas

rio de morros.


 * Este poema foi extraído do livro Poesia reunida. São Paulo: Landy Editora, 2008, p. 247-249.