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Reportagem
Os soropositivos de ontem e de hoje
Por Flávia Gouveia e Patrícia Mariuzzo
10/05/2006

"Só me atemorizam meses de agonia, camas de hospital,a tez embaçada, o olhar dos outros". A frase acima está no livro A Doença, uma experiência (Companhia das Letras, 1996), onde o cineasta Jean-Claude Bernardet, mistura ficção e realidade para descrever seus primeiros meses depois que descobriu ser soropositivo. Vinte e cinco anos depois pode-se dizer que houve mudanças significativas em relação ao impacto da Aids na vida dos portadores do vírus, diminuição da discriminação explícita que, um dia, fez com que tivessem que enfrentar ao mesmo tempo uma doença que sabiam fatal, o isolamento e, muitas vezes, o abandono. Hoje, por conta dos avanços no tratamento dos sintomas, a Aids não é mais sinônimo de morte iminente, entretanto, segue como uma doença sem cura fazendo com que medos e mitos continuem latentes.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que, no Brasil, existem 600 mil pessoas infectadas pelo vírus HIV, das quais 200 mil sabem que são portadoras. É fato que a Aids deixou de ser uma doença dos chamados "grupos de risco" ou associada, sobretudo, aos homossexuais e usuários de drogas injetáveis, como no passado. A relação entre homens e mulheres, que era de seis para um na década de 80, é hoje de dois para um e em algumas regiões do país é equivalente.

Apesar dos números, é provável que muitos ainda desconheçam a condição de soropositivos de pessoas próximas. Segundo Silvia Bellucci, diretora do Centro Corsini referência nacional no tratamento da Aids, os portadores do vírus HIV que recebem acompanhamento se mantêm relativamente equilibrados em sua vida social, afetiva e profissional, o que difere do quadro vivido pelos primeiros portadores e doentes. Entretanto, muitos pacientes vivem os mesmos percalços de outrora, variando apenas a intensidade. "Eles têm um enorme receio de ter sua condição revelada. Vivem uma situação de alerta permanente, que pode aumentar a possibilidade do desenvolvimento da doença, se esses pacientes não estiverem sendo acompanhados adequadamente", diz.

Sentimento de culpa, rejeição e preconceito também podem acompanhar os soropositivos. A sociedade, por mais informada que esteja, afirma Bellucci, ainda demonstra sua incompreensão em relação à situação do portador. O preconceito e a discriminação existem e, como são atitudes politicamente incorretas, se manifestam de forma “escondida”. "A situação de quem tem HIV é difícil de ser vivenciada e exige um trabalho ininterrupto de vigilância física, mental e espiritual, para que a doença não se desenvolva", enfatiza.

O papel das ONGs

Boa parte desse acompanhamento é feito nas organizações de apoio aos portadores de HIV, que passaram a ser locais não apenas de orientação psicológica aos pacientes, mas centros de reunião de soropositivos politicamente ativos, mais integrados à sociedade e defensores de seus direitos. "Se no passado os soropositivos eram vistos como vítimas da doença, hoje eles vivem com uma qualidade de vida muito melhor, comportam-se como protagonistas na luta contra o vírus", explica José Carlos Veloso, presidente do Grupo de Apoio à Prevenção à Aids (Gapa). De acordo com ele, os medicamentos antiretrovirais utilizados desde 1996, com o surgimento das terapias combinadas, são muito mais potentes permitindo a redução da mortalidade e de doenças oportunistas. O tratamento da primeira geração de medicamentos exigia que o paciente tomasse ao menos 16 comprimidos por dia apenas para o controle do HIV, sem contar com os remédios para as doenças oportunistas, quando era necessário. Hoje, um soropositivo tem que tomar três ou quatro comprimidos por dia. Nos Estados Unidos já há tratamentos que exigem apenas um comprimido diário. Jean-Claude Bernardet conta que já teve problemas com efeitos colaterais, mas concorda que o tratamento é bem mais simples atualmente.

O coquetel para o tratamento da Aids é composto por 16 tipos diferentes de medicamentos, separados por classes, sendo um deles injetável, usado como última alternativa em função da necessidade de ser aplicado duas vezes ao dia. Cada paciente tem um acompanhamento específico com uma composição de medicamentos dessas classes, mas normalmente o tratamento é contínuo e exige disciplina para que os comprimidos sejam administrados a cada 12 horas. Embora os efeitos colaterais associados tenham toxicidade mais baixa, algumas drogas provocam, de imediato, náuseas, diarréias, dores de estômago; enquanto outras causam o que os médicos chamam de efeito metabólico, como aumentar a incidência do diabetes, doenças do coração, perda de massa muscular, emagrecimento e mesmo deformidades decorrentes do acúmulo de gordura na região abdominal, conhecidas como lipodistrofia.

Mário Scheffer, coordenador do Grupo pela Valorização, Integração e Dignidade do Doente de Aids (Grupo pela Vidda), acredita que as maiores dificuldades hoje são a adesão ao tratamento e os efeitos colaterais, presentes em cerca de 30% dos pacientes. Ele ressalta, entretanto, outra mudança importante no tratamento dos soropositivos: "Atualmente, os médicos preferem retardar o início do tratamento para o momento em que se verifica um aumento da quantidade de vírus no sangue; assim, o paciente não precisa mudar imediatamente sua rotina após o diagnóstico e evita os efeitos colaterais dos medicamentos", completa.

Para combater a doença o governo oferece, gratuitamente, há dez anos, os medicamentos para o tratamento dos pacientes, graças ao Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids (PNDST/Aids). "O grande trunfo do Brasil no tratamento contra a Aids é a distribuição gratuita de medicamentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que atende hoje 170 mil pacientes", afirma Scheffer. Apesar de inegáveis, os resultados do PNDST ainda não livram os portadores das dificuldades de serem atendidos pelo serviço público. Há 20 anos atrás Bernardet dizia: "O que vai me matar não é a doença, é a rede que está se fechando em volta de mim, salas de espera, os corredores dos serviços públicos, o médico de quem desconfio". Segundo ele, ainda hoje o tratamento pelo serviço público é difícil. "Os soropositivos têm que fazer exames de sangue periodicamente e isso, às vezes, pode demorar de dois a três meses nos postos de saúde ou hospitais públicos. Faço minhas análises de sangue pelo convênio", admite.

Discriminação no trabalho persiste

Desde o diagnóstico, Jean-Claude Bernardet não escondeu sua condição de soropositivo. Professor aposentado da Escola de Comunicação e Artes da USP, ele acredita que não sentiu tanto o impacto do preconceito pelo fato de atuar no meio universitário. "Bem antes de publicar o livro, todos já sabiam e me apoiaram", conta ele. Esse não é, entretanto, a regra. O acesso à informação foi importante para diminuir o preconceito em relação a portadores do vírus HIV, mas há ainda muitos casos de discriminação, sobretudo no ambiente de trabalho. Apenas no estado de São Paulo, existem atualmente 170 ONGs de apoio contra ações discriminatórias. Elas oferecem serviços jurídicos de defesa dos soropositivos prejudicados por seus empregadores, como os pedidos de reintegração ou de indenizações. O Gapa recebe aproximadamente cinco novos casos de discriminação no trabalho por semana e desde sua criação, em 1985, acumula cerca de 3 mil reclamações desta natureza. Já o Grupo pela Vidda registra 15 casos por mês.

Além da legislação trabalhista contra a discriminação em geral, os soropositivos se apóiam na Lei Estadual 11.119, que proíbe toda e qualquer discriminação contra pessoas vivendo com Aids, seja no aspecto profissional, pessoal ou social. A Lei, de 12 de julho de 2002, de autoria do deputado Roberto Gouveia, do PT de São Paulo, pode levar o infrator a processos no âmbito administrativo, civil e criminal. Se praticada por empresas ou entidades de direito privado, a punição ocorre em forma de multa, referente a 10 mil vezes o valor nominal da Unidade Fiscal do Estado de São Paulo (UFESP) vigente (equivalente a R$ 13,93 em 2006).