REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Artigo
Sobre a beleza do feio e a sublimidade do mal
Por Márcio Seligmann-Silva
10/07/2006

O ideal do homem “belo e bom”, kalos kai agathos, na clássica formulação grega, é parte integral da visão de mundo antiga: o mundo é visto como harmonia, beleza, em uma palavra, como cosmos, e esta beleza seria o resultado da relação deste cosmos com o mundo das Idéias. Nesta concepção clássica do homem haveria uma relação de semelhança entre a beleza externa e o traço moral da bondade. O belo é tido em altíssima conta e é visto como parte de um universo bom e harmônico. Na filosofia de Platão, a beleza serve para indicar e recordar o mundo das Idéias. Em Aristóteles, por sua vez, a beleza do corpo é vista como o fruto da adaptação a um fim. Além disso, para ele “as coisas agradáveis e belas são necessariamente boas”, “tudo o que produz a virtude é necessariamente belo”. Entre os bens ele conta a saúde e a beleza do corpo. O belo seria uma espécie de sinal da virtude.

Neste universo clássico, marcado pelo culto do belo e da harmonia, também havia espaço para a apresentação da dor e das paixões terríveis, como vemos nas tragédias. As tragédias gregas, para recordar uma conhecida formulação de Nietzsche, são justamente um misto de apolínio (culto do belo e das formas “perfeitas”) e de dionisíaco (irrupção de uma força descontrolada, ruptura dos limites). Já as figuras feias – que têm como paradigma o Tersites da Ilíada de Homero – foram normalmente descartadas da tragédia e relegadas ao campo do cômico. Segundo a regra do decoro das poéticas clássicas, não se poderia nas tragédias apresentar pessoas não-nobres, ou seja, que estivessem fora do campo da “beleza-nobre”. A tragédia era definida aristotelicamente como “a imitação de homens superiores”. Estes conceitos de beleza e de bondade traziam consigo uma visão de mundo total: era filosófica, estética, mas também política. Os membros das famílias nobres, os heróis guerreiros, seriam os portadores das características de beleza e bondade. Já a comédia, para Aristóteles, era a “imitação de homens inferiores”, sendo que o “cômico consiste em um defeito ou em uma feiúra que não causam nem dor nem destruição”. Um exemplo deste fato seria justamente a máscara cômica, “que é feia e disforme sem exprimir a dor”.

No campo da história da arte cristã esse modelo clássico será mantido com algumas adaptações: com a doutrina do pecado vinculado ao corpo, o belo torna-se extremamente sublimado (sobretudo na chamada Idade Média), mas a relação entre o belo e o bem fica mantida. O mal e o seu sinal, ou seja, o feio, eram reservados nas representações cristãs para a apresentação do pecado, da tentação, do que deve ser evitado. Isto vale tanto para as representações bíblicas do mal, como para as imagens sacras e para as obras literárias, de Dante na sua Divina comédia a John Milton no seu Paradise lost.

É ao longo do século XVIII que essa equação foi sendo aos poucos abalada. As teorias artísticas do Iluminismo podem ser vistas como típicas criações de uma era de transição. Um autor-chave desta concepção como G.E. Lessing vai retomar no seu livro Laocoonte, ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia, de 1766 (publicado no Brasil pela Editora Iluminuras) as fórmulas clássicas aristotélicas, mas ao mesmo tempo insere importantes modificações nelas. Para Lessing cada modalidade das artes deveria adequar os objetos de sua imitação aos seus meios. Assim, caberia à literatura a imitação de ações, já as artes plásticas deveriam ter por objeto temas corpóreos, espaciais e não a narrativa de histórias. Seguindo esta máxima ele tenta explicar porque Homero, para ele o grande modelo do escritor, faz a descrição de Tersites na sua Ilíada. Lessing parte do pressuposto antigo de que os artistas devem imitar o belo para ensinar o bem. Como afirmava seu contemporâneo Johann Georg Sulzer em 1771: a essência da arte é a imitação do belo e a produção do sentimento de deleite. Mas este mesmo Sulzer reconhecia que o artista, para se manter fiel à natureza, deveria também apresentar o feio. Este seria um sinal emitido pelo artista “para evitar a entrada do mal” no coração dos espectadores. Portanto, um personagem como Tersites seria uma porta para a aparição do feio. Lessing acrescenta uma sutileza à sua leitura de Homero. Sua explicação é semiótica: Homero descreve Tersites em toda sua feiúra justamente porque sabia quais são os efeitos da descrição na literatura. Para ele “a feiúra exige muitas partes não apropriadas que nós devemos poder igualmente ver de uma só vez se nós quisermos sentir então o oposto do que a beleza nos faz sentir”. Através da descrição, Homero teria diluído o efeito da feiúra. O que nos importa aqui é a conclusão do autor: “aquilo que o poeta não pode usar por si mesmo, ele utiliza como um ingrediente para gerar e reforçar certos sentimentos mistos com os quais ele deve nos entreter na falta de sentimentos puramente agradáveis.”

A teoria dos “sentimentos mistos” introduziu ao longo do século XVIII uma paulatina superação da estética da imitação que estava intimamente ligada à manutenção da entronização clássica do belo. Mais e mais passa-se a valorizar uma retórica das emoções fortes, do impacto, em oposição à retórica racionalista que ainda submetia o campo das artes ao dever de ensinamento e educação do público (seguindo o mote da Arte poética de Horácio: “aut prodesse volunt aut delectare poetae”, “os poetas querem ser úteis ou deleitar”). Lessing na sua análise da descrição homérica de Tersites, assim como Sulzer na sua teoria do uso do feio como admoestação, ainda seguem esse preceito da arte como educadora. Mas eles já estavam conscientes do que se passava no campo do estético, ou seja, eles pressentiam o fim da era da valorização da arte em função de sua fidelidade para com a natureza-bela. Quando Lessing, no Laocoonte, conclui a sua análise de Tersites com as palavras: “se a feiúra inofensiva pode ser ridícula então a feiúra prejudicial é sempre terrível”, ele já indicava um outro conceito-chave na teoria da estética (e que sintomaticamente fica de fora do seu Laocoonte, no seu limite, por assim dizer), a saber, o conceito de “sublime”. (com relação a este conceito cf. os capítulos iniciais do meu livro O local da diferença, Editora 34, 2005; bem como o link para o artigo "Arte, dor e kátharsis ou variações sobre a arte de pintar o grito".

Este conceito de sublime tem uma origem na retórica clássica. O principal tratado antigo sobre esse tema é o Sobre o sublime, do primeiro século d.C., de um autor que ficou desconhecido para a posteridade. Neste tratado, o autor apresenta o sublime como o resultado de maior impacto que o poeta pode atingir. Ele valoriza aqui mais “a grandeza com alguns defeitos” do que “a mediocridade correta”. Trata-se da poética da comoção em oposição à da frieza. Para o autor anônimo “o sublime é o ponto mais alto e a excelência, por assim dizer, do discurso”, ele gera o arrebatamento por meio de uma “força irresistível”. No século XVIII este conceito foi amplamente debatido. Ele foi apresentado por alguns autores como sendo uma espécie de ápice do belo. Para outros, no entanto, o sublime era o oposto do belo, assim como na visão clássica de Lessing o cômico era o oposto do trágico. Mas o interessante desse novo conceito de sublime que nasce então é que ele justamente supera essa divisão entre o cômico e o trágico. Se, como vimos, Lessing via na feiúra inofensiva o ridículo, ele anunciava também que existe uma feiúra prejudicial que seria sempre terrível. Na primeira versão de seu texto ele acrescentou a essa definição da feiúra prejudicial terrível que ela seria “sublime”.

Edmond Burke foi o principal teórico desta noção de sublime no século XVIII. No seu tratado de 1757 sobre este conceito ele o definiu de um modo que não deixa dúvidas quanto à sua proximidade com o conceito de trágico: “As paixões que pertencem à auto-preservação relacionam-se com a dor e o perigo; elas são simplesmente doloridas quando as suas causas afetam-nos de modo imediato; elas provocam deleite quando temos uma idéia da dor e do perigo, sem, no entanto, encontrarmo-nos em tais circunstâncias. ... Tudo o que excita tal deleite eu denomino de sublime. As paixões pertencentes à auto-preservação são as mais fortes de todas as paixões”. O feio ao invés de ser contido no campo do cômico ou da descrição que o atenua, é tratado por Burke como um dos meios de gerar essa emoção radical do sublime. Esse conceito teve ampla recepção entre os principais teóricos das artes do século: Diderot, Moses Mendelssohn, Kant, entre outros, vão tentar esmiuçar essa nova concepção de deleite estético ligada à exploração da dor, do perigo, do feio, em uma palavra, das manifestações da morte e da nossa pequenez diante dela.

Diderot, em uma carta a Sophie Volland, caracteriza esse conceito de modo a destacar o elemento “misto” dessa paixão, que põe lado a lado o belo (normalmente representado na estética do XVIII pela mulher) e as aparições da morte (significadas normalmente pelo homem): “Efeitos poderosos sempre nascem da mistura do voluptuoso e do terrível, por exemplo, uma bela mulher semi-nua oferecendo-nos uma poção deliciosa nas caveiras sangrentas de nossos inimigos. Este é o modelo de tudo que seja sublime. Temas como este, que fazem a nossa alma derreter de prazer e tremer de medo. A combinação destes sentimentos mergulha-nos em um estado extraordinário e é a marca do sublime que ele nos abale de um modo excepcional”. Aqui fica claro em que medida o sublime mistura temas ligados à beleza, ao feio, ao terror e ao medo. Nele sexo e morte se encontram. Uma nova concepção de fantástico também se anuncia aqui. Os romances góticos, com destaque para o Frankenstein de Mary Shelley, assim como o gênero da narrativa fantástica de um modo geral, é uma decorrência dessa estética do sublime. No século XIX Goya, Caspar David Friedrich, Turner, Arnold Böklin e autores como Victor Hugo (autor do famoso texto “Do Grotesco e do sublime”), E.T.A. Hoffman, Adalbert von Chamisso, Baudelaire (não apenas autor das Flores do mal, mas também o grande teórico da caricatura e do cômico), Stevenson, Nietzsche, entre outros, deram continuidade a esta tradição do sublime. No século XX esse conceito vai ser central na teoria de Walter Benjamin, Adorno, Jean François Lyotard, entre outros. Bataille, Freud e a releitura destes autores por Julia Kristeva levaram a uma revisão do conceito de sublime a partir dos anos 1980, que passa a ser diferenciado da noção de “abjeto”. Na teoria do século XVIII esse conceito de abjeto era pensado ainda sob o signo do conceito de “asqueroso”. Para Lessing ele representava o limite que deveria ficar de fora do campo das artes. Agora podemos dizer que ocorre mais ou menos o contrário: o “belo” foi expulso do campo do estético. Agora acreditamos mais na “beleza” do feio e na “sublimidade” do mal.

Márcio Seligmann-Silva é professor do Departamento de Teoria Literária, Instituto de Estudos da Linguagem, da Unicamp.