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Comportamento, biologia e ciências sociais: um diálogo impossível?
Por João Azevedo Fernandes
10/09/2006

O auditório de um grande hotel da capital dos EUA estava lotado por uma platéia ansiosa. Era o dia quinze de fevereiro de 1978, e a Associação Americana para o Progresso da Ciência (AAAS) promovia um simpósio para a discussão da sociobiologia, nova disciplina da biologia comportamental que prometia construir uma ponte entre as ciências naturais e sociais, com base nos princípios evolucionários e darwinistas. Alguns de seus maiores defensores (como o biólogo evolutivo William D. Hamilton), e de seus críticos (como o paleontólogo e escritor científico Stephen Jay Gould), estavam presentes.

O clima era tenso. A sociobiologia era um sucesso de público, mas estava sendo tratada, por amplos setores da academia, como uma forma moderna de eugenia e de ciência reacionária. Quando chegou a hora da apresentação de seu fundador mais ilustre, Edward O. Wilson (renomado naturalista e maior autoridade mundial no estudo das formigas), o auditório foi invadido por manifestantes com palavras de ordem e cartazes, nos quais apareciam os símbolos nazistas. Como complemento ao protesto, o conteúdo de uma jarra d’água foi despejado na cabeça de Wilson.

Descontados o exagero e a inusitada violência da manifestação, é importante entendermos como uma questão científica pôde atingir um nível tão alto de radicalismo político. Por situar-se em uma fronteira epistemológica, o estudo biológico do comportamento humano sempre representou uma interface entre a biologia e as ciências sociais, sendo a história da controvérsia sociobiológica bastante reveladora quanto às possibilidades e limites das relações entre as duas áreas.

A sociobiologia nasceu como um ramo da ciência do comportamento animal (a etologia) que se interessa primariamente pelo comportamento social. Sua metodologia está fundada na utilização de modelos neodarwinistas aplicados aos dados tradicionais da própria etologia e da psicologia, combinados à ecologia e à genética de populações, buscando determinar como os grupos sociais evoluem e se adaptam aos seus ambientes. É uma disciplina francamente darwinista, no sentido de conceder importância central à evolução do comportamento social com base no mecanismo da seleção natural. A sociobiologia é o corolário de uma série de novas teorias e modelos sobre o comportamento e sobre a seleção natural formulados nos anos sessenta e setenta, sistematizados em duas obras de divulgação: Sociobiology: the new synthesis (1975), de Edward O. Wilson, e The selfish gene (1976), de Richard Dawkins.

Na origem da disciplina está a tentativa de se responder a uma das principais interrogações da ciência do comportamento: como é possível a cooperação e o altruísmo? Nesta tentativa a sociobiologia construiu uma poderosa crítica às explicações propostas pela etologia clássica a respeito dos comportamentos sociais. Homens como Konrad Lorenz e Nicolaas Tinbergen (entre outros), trabalhando em meados do século XX, adotavam uma noção rígida de “instinto” – entendido como um comportamento estereotipado e imutável – e na idéia de que a seleção natural atua não sobre as variações individuais, mas sobre grandes grupos de indivíduos, como as espécies e as raças.

As adaptações comportamentais seriam, neste ponto de vista, selecionadas com vista ao “bem-da-espécie”. Um exemplo disso era a explicação para o fato de que os combates entre indivíduos da mesma espécie assumem, muitas vezes, uma forma ritualizada, o que impede maiores danos e ferimentos. Isto era visto como uma adaptação para o benefício da espécie como um todo, sem nenhuma explicação dos mecanismos através dos quais os indivíduos poderiam retirar algum benefício desta fidelidade ao conceito (muito humano) de “espécie”.

A partir dos anos sessenta uma série de autores (como George C. Williams, John Maynard Smith, William D. Hamilton, Robert Trivers) passou a criticar esta perspectiva “holística” em alguns artigos seminais. A premissa básica desses trabalhos era – ao contrário da teoria do “bem-da-espécie” – realmente baseada no darwinismo: a seleção natural atua sobre os genes e sobre suas “máquinas de sobrevivência” que são os organismos individuais, e jamais sobre as espécies, raças ou classes sociais. Partindo deste princípio, qualquer discussão sobre as sociedades animais – incluindo as humanas – deveria fazer referência às vantagens auferidas pelos indivíduos.

Um exemplo típico do novo paradigma foi o estudo de John Maynard Smith, revelando que os combates ritualizados servem para que os indivíduos avaliem a força ou os recursos do oponente e possam fazer opções estratégicas, como lutar até a desistência do adversário mais fraco ou desistir perante um mais forte. Baseando-se na Teoria dos Jogos (um instrumento matemático desenvolvido nas ciências econômicas), Maynard Smith mostrou que os indivíduos buscam preservar a possibilidade de que seus genes possam ser beneficiados em uma ocasião mais propícia.

É claro que os animais nada sabem sobre genes: o que acontece é que a seleção natural eliminou aqueles indivíduos que simplesmente se atiravam ao combate sem uma avaliação de suas possibilidades de vitória, e que eventualmente acabavam por serem mortos, e aqueles indivíduos que sempre fugiam, privilegiando assim os genes que levavam os indivíduos a apresentarem um comportamento estratégico e oportunista. Isto acabou por se tornar um dos pontos básicos do raciocínio sociobiológico: os animais não agem por “instintos” (termo, aliás, ausente na maioria dos trabalhos de sociobiologia) imutáveis, mas antes têm a possibilidade de fazer opções dentro de uma gama herdada de comportamentos possíveis.

A seleção natural favorece aqueles comportamentos que difundem os genes de um indivíduo não apenas ao aumentar o número de seus próprios descendentes, mas também os de seus parentes próximos, como irmãos e irmãs, que possuem muitos dos mesmos genes. É isto que explica, em parte, a existência de indivíduos estéreis em várias espécies (como formigas e cupins): eles ajudam a reproduzir cópias de seus genes através de indivíduos aparentados férteis, como a rainha em uma colméia.

A evolução também permitiu o surgimento de comportamentos altruísticos dirigidos a indivíduos que não partilham os mesmos genes, o chamado altruísmo recíproco. A seleção favoreceu aqueles comportamentos baseados na estratégia do “olho por olho”, privilegiando os genes que levam os indivíduos a ajudarem não aparentados na medida, e somente na medida, em que exista uma expectativa de reciprocidade por parte do indivíduo que recebe o benefício.

Os indivíduos que sempre agiram de forma totalmente egoística, nunca retribuindo os benefícios recebidos, acabaram por não receber mais benefícios, deixando de produzir novas cópias de seus próprios genes. Contudo, sempre que houver a possibilidade oportunista de se auferir algum benefício, sem a devida reciprocidade, é esperado pela teoria sociobiológica que surjam indivíduos abertamente egoístas. Características humanas como a ética, a religião ou as leis possuem, para a sociobiologia, uma profunda razão de ser em termos de seleção natural: elas surgiram como mecanismos de punição aos indivíduos que procuram fugir da reciprocidade, fornecendo uma base para a vida social em uma espécie cuja principal adaptação é a produção de cultura.

A sociobiologia tornou-se o paradigma dominante nos estudos do comportamento social dos animais. Contudo, as tentativas dos sociobiólogos em se utilizar desses esquemas teóricos para explicar comportamentos e instituições humanas, como o ciúme e o adultério, ou a monogamia e a guerra, foram claramente rechaçadas pelas ciências sociais, especialmente por antropólogos como Marshall Sahlins e Clifford Geertz. Afinal, a sociobiologia negava alguns princípios que foram básicos para a constituição das ciências sociais como área do conhecimento.

Dentre esses princípios está a constatação de que os homens apresentam óbvias semelhanças de comportamento no interior dos grupos sociais e diferenças marcantes entre os vários grupos. Estas diferenças entre os grupos não podem estar associadas a uma suposta diversidade biológica (como queriam as teorias racio lógicas do século XIX), dados os inúmeros casos conhecidos de rápida mudança social e de trocas culturais entre grupos bem distintos. Além disso, a biologia contemporânea demonstrou que a maior parte da diversidade biológica se dá entre indivíduos, e não entre populações ou “raças”.

Por outro lado, as crianças nascem, em todos os lugares, com as mesmas características e capacidades, e com as mesmas potencialidades em termos de desenvolvimento. Este é o princípio conhecido como unidade psíquica da humanidade. Ora, as crianças são semelhantes, mas os adultos diferem em um alto grau. Como uma “constante” (a unidade biológica) não pode explicar uma “variável” (as diferenças entre os grupos), as ciências sociais tendem a considerar que a “natureza humana” não pode ser a causa da organização mental dos humanos adultos, de seus sistemas sociais, de suas culturas e de suas mudanças históricas. Essas características devem ser adquiridas culturalmente, pelas crianças, no decorrer do desenvolvimento.

Para muitos cientistas sociais, a nova biologia do comportamento, quando aplicada aos humanos, desconsiderava a diversidade cultural, naturalizava comportamentos e instituições ocidentais e confundia processos evolucionários de natureza cultural e histórica com a evolução darwiniana. Como disse Clifford Geertz, “a sociobiologia é um programa de pesquisa em degeneração, fadado a se esgotar em suas próprias confusões”.

O fato é que a oposição humano/animal é algo profundamente inscrito no pensamento ocidental, e a visão que temos sobre os animais é o fator constituinte básico da visão que temos sobre os homens. O dualismo clássico da tradição ocidental (mente/corpo; humano/animal; natureza/cultura) reflete-se na divisão de trabalho das disciplinas acadêmicas, ou seja, ciências naturais/ciências sociais.

Desta forma, é certo dizer que os sociobiólogos foram com demasiada sede ao pote, e pagaram um preço bem alto por isso. A esperança dos fundadores da sociobiologia era a de que seus modelos se tornassem dominantes também nas ciências sociais, mas a sociobiologia acabou sendo percebida como mais uma forma de darwinismo social. Os cientistas sociais desconsideraram a revolução científica no estudo do comportamento, temendo a utilização política da biologia, que trouxe, no passado, conseqüências terríveis para a humanidade, como a eugenia e o nazismo.

É verdade que a idéia de que somos como uma folha de papel em branco, uma tábula rasa, não mais se sustenta, tendo em vista a constatação de que muitos comportamentos humanos possuem uma base biológica. Não obstante, é também verdade que uma efetiva incorporação desse conhecimento ao estudo do comportamento humano somente ocorrerá quando este puder se articular com a noção de que o nosso ambiente é a cultura, e de que isso torna o homem uma espécie necessariamente distinta das outras. O campo continua aberto para o diálogo, mas precisamos, talvez, de uma nova revolução.

João Azevedo Fernandes é professor do Departamento de História, Universidade Federal da Paraíba.