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Artigo
Sob o espectro de Darwin
Por André Luís Ribeiro Ferreira
10/09/2006

Se nós olharmos os campos disciplinares como territórios, podemos dizer que os esforços interdisciplinares têm provocado transformações significativas no mapa das ciências sociais. Novos territórios têm sido construídos a partir de recombinações entre especialidades de disciplinas, principalmente com aquela que é considerada uma especialidade em franca expansão: a biologia evolutiva. Chamamos de abordagens biossociais as recombinações entre especialidades das ciências sociais e a biologia evolutiva. A história da sociologia nos mostra várias tentativas de diálogo com a biologia. Na década de 1920, sociólogos americanos darwinistas confrontavam-se com sociólogos de orientação radicalmente culturalista sobre a importância da biologia para se entender o comportamento social humano. No início da década de 1930, esse confronto havia arrefecido com o triunfo da perspectiva culturalista de Franz Boas e suas alunas Margareth Mead e Ruth Benedict. Um triunfo que foi muito mais ideológico do que científico, conforme nos mostrou Carl Degler em seu livro sobre a história do evolucionismo social. Razões ideológicas para recusar a explicação evolucionista não faltavam visto que ele se apresentava de maneira racista e sexista. Mas a explicação culturalista não se mostrou mais consistente que a perspectiva biossocial dos sociólogos darwinistas, apenas mais politicamente correta.

Nos anos 60, em função do grande avanço teórico experimentado pela biologia evolutiva, novas recombinações biossociais anunciavam a necessidade de introduzir a dimensão biológica para se entender o comportamento social humano. A repercussão dos trabalhos de primatólogos sobre o sistema social de primatas não-humanos e de etólogos sobre a evolução do comportamento social trouxe Darwin de volta para a teoria sociológica. Conforme atestamos na análise que fizemos de dois periódicos tradicionais de sociologia americana, o American Sociological Review e o American Journal of Sociology, são poucos, mas ilustrativos, os artigos e resenhas que desde os anos 60 reclamam da negligência dos sociólogos em relação a variável biológica e chamam atenção para as implicações sociológicas dos trabalhos de etólogos e primatólogos: “biólogos estão falando de sociologia”, alguns resenhistas afirmavam.

Se nos anos 1960 os sociólogos estavam tomando conhecimento dos avanços da ciência biológica, no começo dos anos 1970 as recombinações biossociais que, até então, tinham sido fundamentalmente construções a partir de especialidades da biologia em direção às ciências sociais, passam agora a ter também recombinações de especialidades das ciências sociais em direção à biologia evolutiva. Allan Mazur, Bruce Eckland, Pierre Van Den Berghe, Claude Fisher e Leon Robertson são alguns dos sociólogos envolvidos na tarefa de pensar uma abordagem biossocial, uma sociologia entre espécies, e de discutir as reflexões pioneiras, nesse sentido, dos antropólogos Lionel Tiger e Robin Fox, cujo diálogo com a etologia foi e ainda é duramente criticado.

Em meados da década de 1970, o diálogo incipiente entre a sociologia e as emergentes abordagens biossociais ganhou novos contornos pelo surgimento de uma nova e radical abordagem biossocial, a sociobiologia. O território sociobiológico pode ser demarcado pela aproximação entre os estudos etológicos, métodos da genética de populações e da teoria dos jogos e ecologia. Edward Wilson, autor da obra que representa o marco no surgimento dessa nova disciplina, Sociobiologia: a nova síntese, apresenta-a como uma explicação sistemática dos fundamentos biológicos dos comportamentos sociais. A sociobiologia enquanto abordagem biossocial pode ser vista como um esforço de síntese e de superação das barreiras entre as ciências naturais e as ciências sociais através de uma aproximação biológica dos comportamentos sociais dos animais e dos seres humanos.

Vista como uma tentativa suspeita de absorção das ciências sociais – sociologia e antropologia fundamentalmente - a sociobiologia enfrentou uma virulenta resistência nas ciências sociais. Na sociologia só fez reaparecer a biofobia dos sociólogos. Apenas três resenhas no American Journal of Sociology discutiram a proposta wilsoniana, que provocou amplas discussões na antropologia e psicologia. Mas ao longo dos anos oitenta um grupo de sociólogos começou a se interessar pela agenda de pesquisas aberta pela sociobiologia.Temáticas como a evolução da cooperação e fenômenos como incesto, crime, sexualidade adolescente e o diálogo entre as perspectivas sociológica e evolutiva das diferenças entre os sexos passaram a ter um tratamento biossocial. Ao longo dos anos oitenta e início dos anos noventa assistimos ao aparecimento de novas abordagens biossociais: a ecologia comportamental, a psiquiatria darwinista e a psicologia evolucionista, por exemplo. A agenda de pesquisas da psicologia evolucionista tem atraído alguns sociólogos. O foco dessa nova área de conhecimento é o estudo das características básicas das adaptações psicológicas humanas baseadas no conhecimento existente sobre evolução humana e modelos de pressões seletivas no curso do tempo evolutivo. As adaptações comportamentais e psicológicas que temos hoje foram selecionadas no nosso ambiente de adaptação evolutiva ancestral (AAE).

Os esforços biossociais de alguns sociólogos americanos criaram uma nova especialidade dentro do campo sociológico que vem sendo chamada de biossociologia. Alguns biossociólogos, como Allan Mazur, são declaradamente antievolucionistas enquanto Pierre Van Den Berghe, que no final dos anos setenta e início dos anos oitenta também fazia referências à biossociologia, era evolucionista e considerado um sociobiólogo por trabalhar com a agenda da sociobiologia. Esta diferença na “comunidade de biossociólogos” sugere que há mais resistências entre os sociólogos a uma perspectiva evolutiva do que a um diálogo com a biologia. Survey aplicado por Stephen Sanderson e Lee Ellis em membros da Associação Americana de Sociologia revelou que apenas 3,7% dos sociólogos americanos eram receptivos a sociobiologia e evolucionismo. Na interpretação de seus dados, os pesquisadores descobriram que os respondentes tinham uma visão fortemente antibiológica.

Embora a resistência dos sociólogos a um diálogo com a biologia persista, a criação da subseção Evolução e Sociologia na Associação Americana de Sociologia em 2004 constitui um acontecimento marcante na história da sociologia, pois tem como objetivo fundamental permitir que sociólogos possam legitimamente incorporar evolução e biologia em suas teorias e pesquisas. Talvez possamos dizer que o fato dessa seção ter hoje mais de 300 membros indica que uma nova etapa está sendo inaugurada no diálogo da sociologia com a ciência biológica. Parece que Darwin voltou para ficar.

André Luís Ribeiro Ferreira é graduado e doutor em sociologia pela Universidade de Brasília e professor de sociologia na Universidade Federal de Mato Grosso, campus de Cuiabá.