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Reportagem
Cronologia dos estudos do comportamento
Por Patricia Mariuzzo e Mariana Perozzi
10/09/2006
Algumas aranhas desenvolvem mecanismos para localizar suas presas. Formigas deixam rastros químicos por onde passam. As colméias têm uma única fêmea alimentada por milhares de abelhas operárias. O homem age racionalmente. Essas frases indicam alguns tipos de comportamento que, por definição, é o conjunto de ações que o animal realiza ou deixa de realizar. Ao longo da história, o homem tem tentado compreender o comportamento dos animais com o objetivo de entender seu próprio modo de agir.

Uma das primeiras linhas de estudo sobre o comportamento animal foi o behaviorismo, que se originou com Ivan Petrovich Pavlov (1849-1936), na Rússia, e com John Broadus Watson (1878-1958), nos Estados Unidos. Watson é considerado o "pai" do behaviorismo, tendo publicado em 1913 um artigo ("Psychology as the behaviorist views it") que é tido como o “manifesto behaviorista”. Nesse texto, Watson enfatizava que o objeto de estudo da psicologia seria o "comportamento" e não mais a "mente", e propunha que esta fosse uma ciência empírica, capaz de formular generalizações amplas sobre o comportamento humano, com experimentos passíveis de réplica em qualquer laboratório. Inicialmente bem recebido pela comunidade acadêmica, Watson foi aos poucos perdendo credibilidade, pois deixava de lado o estudo da subjetividade.

Outro importante nome dentro dessa corrente de estudo do comportamento é o de Burrhus Frederic Skinner (1904-1990). Foi ele quem sugeriu a divisão entre "behaviorismo metodológico" (nas bases de Watson, ignorando fenômenos como a consciência, os sentimentos e os estados mentais) e o "behaviorismo radical", proposto pelo próprio Skinner e caracterizado pela ênfase no comportamento como interação entre o sujeito e o ambiente. Na opinião de Sergio Dias Cirino, professor de psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e de seu aluno Rodrigo Miranda, há muita confusão entre essas duas vertentes, sendo que grande parte das críticas feitas ao behaviorismo radical se refere, na verdade, ao aspecto metodológico. “Atualmente o behaviorismo radical é bastante respeitado, principalmente, pela eficácia dos tratamentos terapêuticos baseados nele”, afirmam.

Cirino explica que, nos dias de hoje, o behaviorismo está passando por uma mudança de ênfase em seus estudos. “Até as últimas décadas do século XX, enfatizava a pesquisa experimental em laboratórios. Mais recentemente, estudos interpretativos sobre o comportamento verbal têm sido levados a cabo e mudado o cenário da produção científica behaviorista. Estudos comparativos entre as propostas de Skinner e de outros teóricos para o estudo da linguagem têm se apresentado como promissores”, diz. Para os pesquisadores da UFMG, um dos maiores conflitos do behaviorismo foi com o lingüista Noam Chomsky e suas concepções acerca da aquisição e produção da linguagem. “Chomsky fez duras críticas ao livro Comportamento verbal, de Skinner (1957). Para Chomsky, a linguagem é considerada inata no sujeito e para Skinner é um comportamento aprendido nas múltiplas interações do sujeito com a comunidade dos falantes”.

Os temas behavioristas continuam sendo ensinados como parte da psicologia experimental na maioria dos cursos de graduação em psicologia no Brasil, e também vêm sendo incorporados como ferramenta de análise complementar nas áreas de administração de empresas, letras, economia, meio ambiente, sociologia, educação, entre outros. O debate com a linguagem permanece como o mais relevante dentro dessa linha.

Embora o behaviorismo tenha nascido e se desenvolvido na área de estudos psicológicos com animais, os últimos artigos de Skinner mostram que ele levava em consideração uma seleção evolutiva do comportamento. Isso enfraquece uma dicotomia simplista geralmente observada quando se contrapõe o behaviorismo à etologia, disciplina que estuda o comportamento animal numa perspectiva biológica.

Pode-se considerar que a etologia tenha surgido com Charles Darwin (1809-1882), especialmente com o capítulo ‘Instinto’ de A origem das espécies (1859), no qual Darwin já indicava as principais estratégias de observação e interpretação do comportamento animal, sob a ótica evolucionista. Oficialmente, contudo, a etologia foi fundada pelo alemão Karl von Frisch (1886-1982), o austríaco Konrad Lorenz (1903-1989) e o holandês Nikolaas Tinbergen (1907-1988) que, em 1973, ganharam o Prêmio Nobel de Medicina, por suas descobertas sobre a organização de padrões de comportamento individuais e sociais.

“A contribuição de Lorenz foi mais teórica, pois ele forneceu um esquema de conceitos básicos para explicar o comportamento instintivo e aprendido dos animais. Já Tinbergen mostrou que era possível fazer trabalhos de campo, na natureza, sobre o comportamento animal”, afirma o psicólogo César Ades, professor da Universidade de São Paulo (USP) e membro Comitê Internacional de etólogos. Ele explica que a etologia foi, de um lado, bem acolhida por ressaltar a importância dos comportamentos instintivos, a determinação genética do comportamento e sua adaptação ecológica. De outro, recebeu críticas fortes, sobretudo as de Daniel Sanford Lehrman (1919-1972), por exagerar na ênfase sobre o instintivo, não levando suficientemente em conta os determinantes aprendidos do comportamento.

“O debate instintivo/aprendido permanece até hoje, mas acredito que houve um progresso enorme: hoje em dia, nenhum psicólogo negaria o papel das tendências herdadas e da origem evolutiva do comportamento e nenhum biólogo negaria que o comportamento decorre em parte da influência de fatores ambientais e da aprendizagem”, analisa Ades.

Para ele, os principais conflitos com a etologia se dão nas interfaces com as ciências sociais (com linhas da antropologia que rejeitam a comparação com animais e o pensamento biológico no caso humano) e também com certas tendências da psicologia. No interior da área, as divergências são poucas: “não surgem polêmicas sobre a importância de estudos de campo, de laboratório, estudos aplicados ou teóricos”, afirma Ades. Hoje, a etologia está inserida nos cursos de biologia, medicina veterinária, zootecnia e psicologia, indicando sua natureza multidisciplinar.

O pensamento etológico inspirou o surgimento de outras vertentes de estudo hoje independentes, como a sociobiologia. Seu principal representante, o biólogo norte-americano Edward O. Wilson (1929- ), propunha uma síntese entre biologia e sociologia, antes estudadas separadamente. A publicação de seu livro sociobiologia: a nova síntese, em 1975, suscitou grande controvérsia porque o autor assume que tanto homens quanto animais, vivendo em grupo, apresentam comportamentos comuns. Segundo a bióloga e antropóloga Gláucia Oliveira da Silva (ver artigo nesta edição), os sociobiólogos partem do princípio de que o modo de vida gregário é vantajoso para a adaptação dos seres ao meio ambiente. “Eles acreditam que cada indivíduo aja dentro de sua sociedade de forma a aumentar suas chances de sobrevivência e reprodução, bem como a de seus parentes mais próximos”, diz ela no livro O que é sociobiologia, de 1993.

Elementos da sociobiologia

Instituições como casamento, guerra e religião são vistos pela sociobiologia como produto de um condicionamento genético ou como parte de um processo adaptativo de certa população. Silva cita o exemplo usado pelos sociobiólogos que compara costumes da Índia pré-colonial e algumas espécies de aves e mamíferos: a prática feminina do casamento com homens das camadas mais ricas (hipergamia); infanticídio feminino nas castas mais altas; o fato dos machos grandes e maiores acasalarem com mais freqüência do que os menores e mais fracos. Para Eduardo Ottoni, do Departamento de Psicologia Experimental da USP, a sociobiologia é uma decorrência da aplicação do pensamento neodarwinista ao estudo do comportamento social. “O principal problema está na ênfase total nos genes como unidades de seleção, e não nos indivíduos, o que pode sugerir certo determinismo genético”, diz ele.

Um dos sociobiólogos que sofreu críticas na linha do determinismo genético foi Richard Dawkins, autor do livro O gene egoísta. Para Dawkins, a capacidade que os animais têm de fazer avaliações como a disputa por comida ou território é determinada geneticamente. As escolhas feitas no processo de acasalamento, por exemplo, não são conscientes, elas seguem ordens dadas pelo código genético do animal, código que foi construído ao longo do processo da seleção natural.

Para além das críticas que acusam os sociobiólogos de desumanizar o comportamento humano, um dos méritos desta abordagem foi questionar, por exemplo, o antropocentrismo vigente nas ciências sociais e afirmar que o homem também é regido por leis biológicas. De acordo com Ottoni, a sociobiologia também produziu ramificações teóricas que buscam entender o comportamento e a cognição numa perspectiva evolucionista, entre elas a ecologia comportamental e a psicologia evolucionista.

Um besouro não tóxico imita outro besouro impalatável (tóxico ou com gosto ruim) e esta semelhança em morfologia, coloração e comportamento aumenta as chances de sobrevivência do mímico ao confundir seus possíveis predadores. O trecho descrito poderia ser o resultado de um estudo de ecologia comportamental. Enquanto o behaviorismo lida com questões causais e mecanicistas de um comportamento, a ecologia comportamental busca os porquês, a história evolutiva e o significado adaptativo do comportamentos dos animais. Surgida na década de 70, essa abordagem usa testes de campo ou manipulação experimental para entender como determinado comportamento aumenta as chances de um indivíduo sobreviver e deixar descendentes. Num outro exemplo, uma certa espécie de formigas constrói ninhos em árvores usando um fio de seda produzida pelas larvas da colônia. Essas formigas tecelãs fazem, além do ninho principal, ninhos satélites na mesma planta ou em plantas próximas. “Este comportamento aumenta as chances de sobrevivência do patrimônio genético. Se a colônia ficasse concentrada num só ninho, ela poderia ser totalmente extinta por inimigos naturais das formigas”, explica Kléber Del-Claro, biólogo da Universidade Federal de Uberlândia e autor de um estudo sobre formigas tecelãs no cerrado brasileiro.

Já a psicologia evolucionista busca entender as capacidades cognitivas humanas da mesma maneira que entendemos a evolução de características anatômicas ou fisiológicas. O termo foi introduzido por Leda Cosmides e John Tooby em 1992. Segundo o pesquisador da USP Eduardo Ottoni, um conceito fundamental desta recente linha de pesquisa é o do “ambiente de adaptação evolutiva” da espécie. “Os humanos não evoluíram num ambiente igual ao que vivemos hoje. Tudo o que aconteceu depois do período neolítico (os últimos 10 mil anos) é muito recente em termos evolutivos para deixar marcas profundas na nossa natureza”, esclarece Ottoni. Segundo ele, esta “natureza humana” teria sido forjada no contexto dos grupos de caçadores-coletores, num tipo de vida semelhante ao de grupos remanescentes como os índios yanomami.

A agressividade humana é um dos temas estudados por psicólogos evolucionistas. Ottoni conta que estes psicólogos mostram, por exemplo, que o homicídio é, via de regra, uma prática de homens jovens, que assassino e vítima em geral se conhecem, que o homicídio de mulheres é um subproduto da violência doméstica, usada, por sua vez, como uma forma de controle. Para chegar a essas conclusões, pesquisadores como os canadenses Martin Daly e Margo Wilson, que recentemente realizaram palestras no Brasil, lançam mão de dados demográficos para testar hipóteses evolucionistas.

A visão evolucionista se debruçou também sobre a questão da diferença entre os sexos e as conseqüências disso na escolha dos parceiros. Homens e mulheres adotariam diferentes estratégias reprodutivas: os primeiros tentando sempre aumentar o número de parceiras sexuais com objetivo de aumentar as chances de seu sucesso reprodutivo; as mulheres adotando, por sua vez, uma postura mais seletiva, com investimento mais qualitativo. “A partir daí, é previsível que homens sejam menos fiéis que mulheres, e que cada gênero selecione seus parceiros segundo critérios diferentes”, sintetiza Ottoni. “Os estudos da área mostram padrões que independem da época ou cultura: homens escolhendo parceiras mais jovens e saudáveis, mulheres preferindo os melhores provedores”, completa.

As críticas à psicologia evolucionista vêm principalmente de teóricos culturalistas. Conforme explica Ottoni, para eles nossa cognição é modelada pelo contexto cultural em tal medida que as determinações biológicas se tornam irrelevantes. Como a cultura é quase ilimitadamente plástica, ilimitadas seriam também as nossas formas de pensar e agir sobre o mundo. “Eu diria que o modelo mais equilibrado sobre estas relações é oferecido pelos autores que defendem a idéia de coevolução genético-cultural, que tem uma visão dos dois sistemas de transmissão de informação como interdependentes”, afirma.

A despeito das concordâncias ou das discrepâncias históricas ligadas ao estudo do comportamento, as condutas sociais das espécies continuarão despertando o interesse dos teóricos. Afinal, assim como os homens, os chimpanzés têm capacidade de simbolização, demonstrando com isso, possuir uma 'cultura rudimentar' que inclui uso de ferramentas, invenção e transmissão de técnicas. Formigas demonstram cuidados com a prole, têm creches e utilizam calendários. Para ficar só em dois exemplos.