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Reportagem
Ciência, mentiras e videotape
Por Yurij Castelfranchi
10/11/2006

Em 2001, Jan Hendrik Schön, pesquisador dos Laboratórios Bell, era considerado um jovem gênio da física. Com 31 anos de idade, já havia recebido dois prêmios internacionais e publicado cerca de 70 artigos científicos, alguns em revistas entre as mais importantes do mundo. Havia chegado ao ritmo vertiginoso de uma publicação, em média, a cada oito dias. Um trem-bala direto para o prêmio Nobel: “parecia que estávamos competindo com um deus”, lembram alguns cientistas da área. Num artigo sensacional, na revista Nature, o jovem anunciou poder construir um transistor do tamanho de uma molécula, feito de substâncias orgânicas, o que representaria uma revolução para a microeletrônica e para a nanotecnologia, com eventuais aplicações médicas e informáticas extraordinárias. No entanto, nos dados de Jan Hendrik Schön havia algo estranho. Os resultados pareciam demasiado perfeitos. Alguns físicos perceberam que os gráficos de três experimentos diferentes tinham uma parte idêntica. Schön declarou ter fornecido, por engano, a mesma figura. Logo em seguida, outras coincidências estranhas apareceram, em muitos trabalhos do rapaz. Um inquérito foi aberto. Schön declarou não ter cadernos de laboratório nem anotações. Disse ter deletado do seu computador os dados, e que as amostras dos experimentos tinham sido jogadas fora ou estavam danificadas. Um terremoto sacudiu a comunidade dos físicos: o “jovem deus” havia, simplesmente, mentido. A maioria dos dados tinha sido forjada. Os achados eram pouco mais que mentiras. Muitos dos artigos de Schön foram retratados pelas revistas que os haviam publicado. Ele foi demitido da Bell e, mais tarde, perdeu seu título de doutorado.

O funcionamento da ciência moderna se baseia, entre outras coisas, no esclarecimento detalhado de todas as hipóteses, metodologias, dados experimentais que sustentam cada afirmação, para que qualquer pesquisador da área possa repetir, ao menos em princípio, os raciocínios teóricos, os cálculos, as experiências citadas e conferir cada afirmação, confirmando ou refutando as conclusões. Tudo, então, deve ser registrado e comunicado. Quando os dispositivos de gravação e divulgação de hipóteses, indícios e dados não funcionam bem, as afirmações de um pesquisador não podem ser arquivadas como científicas. Se esse “videotape da ciência” não funciona, ou não é colocado à disposição (ou seja, se os dados parecem impossíveis de ser reproduzidos, se não há como verificar, repetir as experiências), então afirmação científica e mentiras podem formar um emaranhado difícil de destrinçar.

Mentiras antigas, pressões contemporâneas

Mentira na ciência não é novidade. Apesar do fato de que Robert K. Merton, entre os fundadores da sociologia da ciência, achou que “comunitarismo”, “universalismo” e “desinteresse” estivessem entre as normas fundamentais que geram o comportamento da comunidade acadêmica, desde o tempo de Galileu pode ser que os cientistas briguem, eventualmente trapaceiem e, às vezes, mintam descaradamente, modificando resultados, relatando experimentos que não efetuaram, descrevendo observações que nunca foram feitas. Fazem isso por várias razões: para que os dados sejam consistentes com a teoria em que acreditam, para embelezá-los e convencer mais facilmente os colegas, para marcar a prioridade numa descoberta, para ganhar as luzes do palco, dinheiro ou prêmios. Hoje, a competição entre pesquisadores em determinadas áreas virou acirrada, os interesses em jogo sobre algumas pesquisas podem ser enormes, e os tempos para marcar uma prioridade podem ser tão estritos quanto os ritmos da grande mídia. Como resultado, a discussão ética virou urgente.

O caso do cientista sul-coreano Hwang Woo-suk, que forjou dados para afirmar ter produzido células-tronco humanas por meio de clonagem, é celebérrimo. Mas têm dezenas. No início deste ano, a revista Lancet teve que retirar o artigo de Jon Sudbø, dentista e oncologista do The Radium Hospital de Oslo. O pesquisador havia “descoberto” que alguns remédios podiam diminuir o risco de câncer oral, fazendo testes clínicos em centenas de pacientes que, porém, nunca existiram. Pouco antes, o escândalo do rofecoxib (também conhecido com o nome comercial de Vioxx ou Ceoxx) agitava a mídia mundial. Em 2004, a farmacêutica Merck havia retirado do mercado o remédio. Mas o problema não foi só anunciar que um dos mais vendidos anti-inflamatórios, largamente usado na terapia da artrite, podia aumentar o risco de ataques cardíacos. Foi descobrir, em final de 2005, que, de acordo com o New England of Medicine, pesquisadores que dispunham desde o ano 2000 de dados sobre pacientes vitimas de enfarte, haviam omitido tal informação na pesquisa que publicaram sobre o Vioxx.

“Por isso, pessoalmente não acho que o problema central seja o das fraudes”, comenta Giancarlo Sturloni, pesquisador da Escola Internacional Superior de Estudos Avançados de Trieste (Itália). “Mais importante me parece, por exemplo, a discussão sobre a legitimidade de esconder resultados de uma pesquisa, caso este seja o desejo de uma empresa patrocinadora. A questão não é tanto se o pesquisador mente ou não, mas sim o problema da transparência, da disponibilidade dos dados ao público, dos conflitos de interesse”.

Interesses em conflito

De acordo com um estudo publicado na revista Nature no ano passado, um terço, entre 3200 pesquisadores da área de medicina, entrevistados de forma anônima nos EUA, admitiu ter manipulado resultados ou trapaceado sobre metodologias, em muitos casos sob pressão de patrocinadores. Esconder pressões ou vantagens econômicas pessoais numa pesquisa é tão grave quanto forjar dados. Tanto que, em setembro de 2001, treze entre as mais importantes revistas médicas do mundo decidiram publicar todas o mesmo editorial para denunciar as pressões exercidas pelas indústrias farmacêuticas sobre o mecanismo de publicação científica. Alguns testes clínicos financiados por empresas privadas são executados sob contratos que proíbem que os pesquisadores publiquem seus resultados caso estes sejam desfavoráveis para os patrocinadores. Em 2003, o British Medical Journal também dedicou um número monográfico ao problema, com o título de “é tempo de desemaranhar os doutores e as companhias médicas”. As pesquisas financiadas com dinheiro público, mostrava um estudo na revista, têm chances de fornecer um resultado negativo sobre um novo produto farmacêutico quatro vezes maiores do que as pesquisas patrocinadas pelas indústrias. Os estudos desafervoráveis a novos remédios, quando financiados por privados, tendem a não serem publicados. Sturloni conta, num artigo, o caso de Betty Dong, da Universidade de Califórnia. Em 1990 a pesquisadora descobriu, em pesquisa financiada pela farmacêutica Boots, que um remédio para a tireóide produzido pela própria empresa não era mais eficaz que remédios análogos, mais baratos, produzidos pelas concorrentes. A Boots fez de tudo para impedir que a pesquisadora publicasse seus dados: o caso ficou público sete anos mais tarde, graças a um jornalista do Wall Street Journal. Numa época em que testar um novo remédio custa, em média, 500 milhões de dólares, e somente nos EUA as drogas receitadas pelos médicos custam mais de 150 bilhões de dólares por ano, médicos e indústrias farmacêuticas estão abraçados uns aos outros, diz o British Medical Journal, “como a cobra e o bastão” no célebre símbolo da arte médica.

Por isso, muitas revistas científicas exigem hoje que os autores façam uma declaração de todos os possíveis conflitos de interesse de tipo financeiros no âmbito da pesquisa que querem publicar. A American Medical Student Association também modificou o juramento de Hipócrates acrescentando o compromisso em “não aceitar dinheiro, presentes ou hospedagem que possam criar um conflito de interesse com a educação, a prática clínica, o ensino ou a pesquisa médica”. No entanto, os chamados “informadores científicos” (os que fazem propagandas de remédios em hospitais e consultórios) são um exército de centenas de milhares de homens e mulheres no mundo, e as farmacêuticas organizam e financiam mais de 300.000 entre congressos e cursos de formação, em muitos casos em luxuosos hotéis ou em localidades turísticas.

Ética nas publicações

No interior do jogo acadêmico, de acordo com pesquisadores da Organização Mundial de Saúde práticas não éticas incluem também a duplicação ou sobreposição de artigos (submeter ou publicar o mesmo artigo em mais revistas), ou a publicação “salame” (um trabalho é artificialmente dividido em pedacinhos pouco relevantes, para render mais publicações). Tais práticas, ainda que extremamente comuns, são claramente não éticas. Aumentam inutilmente o trabalho de revisão dos cientistas pareceristas, como também a energia e os materiais utilizados, produzindo informações duplicadas ou não relevantes. Além disso, fragmentam o conhecimento, dificultando seu acesso e uso por parte dos leitores. Enfim, o que é mais importante, tais práticas conferem uma vantagem para os pesquisadores menos honestos: no sistema atual acadêmico, onde é considerado melhor quem pública mais artigos, quem não se serve de tais truques corre o risco de desaparecer do mapa. Maiores ainda são os problemas éticos ligados à autoria dos artigos, onde práticas não éticas comuns incluem “autoria convidada” (para agradar pessoas importantes, para troca de favores ou para aumentar as chances de publicação, uma pessoa que na verdade não participou de forma relevante do trabalho assina o artigo), autoria “pressionada” (quando o líder de um grupo o departamento exige assinar trabalhos em que não participou); autoria “fantasma” (quando pessoas que contribuíram com o trabalho não assinam, por exploração injusta ou, ao contrário, porque querem esconder seu nome, filiação e conflito de interesses). Em 2004, a cientista Adriane Fugh-Berman, da Escola de Medicina da Universidade de Georgetown (EUA), recebeu, pela empresa britânica Rx Communications, a proposta de revisar e assinar como autora um artigo, praticamente já escrito por anônimos, sobre um remédio anticoagulante, o Warfarin. A Rx Communications (que se orgulha, em seu site, de dispor de uma equipe de "mais de 100 escritores especializados", capazes de produzir "desde resumos até manuscritos completos" de relatórios de testes clínicos), tinha sido contratada pela multinacional AstraZeneca para produzir artigos que mostrassem desvantagens ou efeitos adversos do remédio, sendo que a farmacêutica estava prestes a lançar uma droga concorrente Fugh-Berman se recusou a assinar o artigo.

Pouco tempo depois, descobriu uma versão muito parecida, assinada por outro pesquisador supostamente “independente”, e denunciou o fato.

Mentiras com pernas curtas… e longas mãos

Dizem muitos cientistas que as mentiras científicas têm pernas curtas: se o resultado de um pesquisador não pode ser replicado por outros, logo é desmascarada a fraude. Porém, em muitas áreas os experimentos podem ser tão difíceis e caros que a replicação é, na prática, quase impossível. Por outro lado, mentiras com pernas curtas podem ter mãos longas, e conseqüências graves. Se algumas conseqüências dos comportamentos não éticos são internas à comunidade científica (uma teoria que se demostra errada, um prêmio não merecido), outras tocam outras partes da sociedade (na forma de prejuízos econômicos: anúncios de descobertas podem ter conseqüências relevantes em bolsa, por exemplo). Algumas podem ser muito graves: por exemplo, no caso de um remédio declarado, injustamente, ineficaz e que, ao contrário, pode salvar vidas. Como fazer então se as pernas de uma fraude não são curtas suficientemente para serem inócuas?

Para alguns cientistas, no Brasil e afora, os mecanismos de auto-regulação da ciência devem ser aperfeiçoados, mas podem dar conta do problema. A mídia e a população devem ficar por fora do debate: ética da ciência, dizem, é coisa complexa, e deve se discutir somente no âmbito acadêmico. Giancarlo Sturloni tem uma resposta radicalmente oposta: “no momento em que uma pesquisa se torna atividade de domínio público, no sentido que são públicos os grandes recursos de que necessita, ou no sentido que suas aplicações, ou as questões levantadas, têm grande impacto na população, devem tornar-se públicos também os debates e os mecanismos para discutir ética, fraudes e conflitos de interesse”. O pesquisador, especialista em percepção e comunicação do risco tecnológico, lembra que nem a fraude de Hwang nem a de Sudbo foram descobertas por meio da revisão dos cientistas. E conclui: “controle e descoberta da fraude nem sempre são procedimentos internos à academia. Menos ainda podem ser internos os debates éticos”.